Índice de Capítulo

    — E se ele acabar cruzando com aquele sujeito? — Agnis indagou.

    Calista arqueou uma sobrancelha, sentada em sua cadeira com os pés apoiados na mesa. — Hm… se estiver falando daquele cara… Isso complica as coisas pro nosso querido novato. 

    Ele assentiu, mesmo com o olho tremendo e a testa latejando. Aquilo ali, aquela desgraça de postura, era a líder de uma guilda inteira.

    Suspirou, porque, honestamente, já não sabia mais o que era pior: a pose ou o fato de que ela ainda era incrivelmente eficiente daquele jeito.

    — Você lembra do estado do subúrbio quando pisamos aqui há cinco anos?

    — Um caos completo — ela respondeu, sem hesitar. — Um ninho perfeito para criminosos se esconderem.

    — Eles começaram a se aglomerar, e depois se dividiram em grupos — completou. — Roubo, lutas clandestinas, casas de apostas… todos tentando marcar o território de alguma forma.

    — E a gente não podia entrar com força total. — Calista cruzou as pernas, entrelaçando as mãos atrás da cabeça. — Havia gente demais vivendo ali. Uma ofensiva direta teria varrido inocentes junto daqueles vermes.

    Houve uma pausa. 

    — Então ele apareceu.

    Naron… — sussurrou Agnis, com uma expressão que beirava entre a curiosidade e o medo. — O homem que unificou os subúrbios em um único dia.

    — É engraçado, todas as informações que temos sobre ele se baseiam em rumores, menos essa. Por que acha que os bandidos o protegem tanto?

    — Eles o seguem, iguais cães submissos. Os subúrbios deveriam ser um lar que acolhe o povo de Ariasken, mas ao invés disso, é um antro de criminosos subjugados por uma única pessoa.

    — E mesmo assim, o lugar parece mais pacífico do que antes dele chegar — Calista acrescentou. — Dizem que ele impõe regras, apesar das atividades criminosas. 

    Agnis suspirou.

    — Então… O que você acha?

    Calista ficou em silêncio por um momento, o semblante fechado.

    — O que eu acho? Hazan é forte. Determinado. Mas se ele der o azar de encontrar aquele cara…

    Ela se levantou, apoiando as mãos na mesa e encarando Agnis com seriedade:

    — Vamos torcer pra isso não acontecer. — Seu rosto expressou uma tristeza dramática. — Nosso novato não tem chance contra um Pujante Experiente, ele seria completamente obliterado…


    Em meio à névoa de poeira e silhuetas destruídas, a figura encapuzada ergueu-se do trono.

    Hazan mal teve tempo de pensar.

    Num piscar de olhos, o homem de máscara de ferro surgiu na frente dele, movendo-se numa velocidade que não deveria pertencer a alguém com quase dois metros de altura.

    Antes que pudesse reagir, os dedos do homem fecharam-se ao redor de seu pescoço.

    — Se dá algum valor para a sua existência medíocre, vai parar de causar problemas para a confraria e nunca mais pôr os pés nos subúrbios. Você entendeu?

    A mão apertou.

    [Cotovelada!]

    O rosto do mascarado sequer se moveu.

    — … Se essa é a sua resposta.

    Bam! Crack!

    O chão rachou assim que as costas de Hazan afundaram com um estrondo. Antes que a poeira baixasse, já voava pela sala, capotando pelo piso sujo.

    Se recuperou em pouco tempo, levantando-se com a respiração ofegante.

    Já tô cansado da luta contra aqueles desgraçados, e agora tenho que lidar com esse cara… Pra sair dessa, preciso entender contra quem eu estou lidando!

    Com um rosnado abafado, encurtou a distância, fingiu um soco, flexionou os joelhos e enrijeceu o tronco.

    [Chute baixo!]

    O golpe acertou em cheio a parte interna da coxa, um ponto sensível que faria qualquer um sofrer.

    O homem arqueou levemente o corpo, e Hazan viu uma brecha. Seus olhos brilharam com determinação.

    [Joelhada!]

    Bam!

    ?!

    Seu joelho parou no ar.

    O homem havia segurado a investida com uma mão só.

    Os dedos apertaram com uma firmeza assustadora, suficiente para erguer Hazan do chão como se fosse um brinquedo mal articulado.

    — Ah… Me perdoe — disse ele, a voz rouca e entediada. — Achei que havia uma poeira na minha perna, e acabei me distraindo.

    Os olhos amarelados por trás da máscara cintilaram, demonstrando que ainda não tinha acabado. 

    Ergueu o jovem o mais alto que conseguiu.

    Merda, ele não vai-

    De repente, tudo girou.

    Crack!

    Seu corpo foi arremessado mais uma vez contra o chão, lascas de pedra voando para todos os lados.

    Antes que pudesse sequer processar o que estava acontecendo, a mão robusta o agarrou pela cabeça, erguendo-o com facilidade.

    — Vamos tentar mais uma vez — disse o mascarado, colocando-o no chão com um cuidado quase afetuoso.

    Ele… me colocou de pé? Meu corpo inteiro dói, não sei quanto tempo vou durar. Preciso diminuir essa diferença!

    Hazan cerrou os dentes e girou o quadril em um chute alto. Visava atingir o queixo. Precisava abrir espaço entre eles e criar uma estratégia.

    De fato, o golpe atingiu em cheio, mas não surtiu qualquer efeito.

    — Derrotou sessenta homens com essa força? Isso é um pouco decepcionante, garoto.

    O lutador rregalou os olhos e buscou recuar, mas Naron o agarrou pelo ombro, cerrando o punho.

    — Vou te dar mais uma chance.

    O punho cavou-se direto em seu estômago.

    O mundo piscou em branco.

    Hazan foi arrastado para trás, as botas derrapando pelo chão, até atingir uma viga de madeira que rachou com o impacto.

    Ele caiu de joelhos, arfando.

    Ele não é técnico. Não tem estilo. Só força.

    Mas era uma força que zombava da lógica de combate.

    Ergueu-se outra vez. Usou a mobilidade do boxe para se movimentar ao redor dele.

    [Jab!] [Direto!] [Gancho!] [Cruzado de esquerda!]  

    Nada.

    O homem andava em linha reta, ignorando todos os golpes.

    Por que esse cara é tão forte!? Preciso fugir, mas o que eu faço!? Não posso falhar nessa missão! Eu tenho que fazer alguma cois-

    Flexionou os joelhos na intenção de se afastar, mas seu rosto foi agarrado.

    — Vamos passear um pouco.

    E então Naron se moveu. Com uma explosão de solo sob os pés, flexionou os joelhos e disparou.

    Começou com a parede do galpão sendo ultrapassada, pedaços de madeiras voando para todos os lados. 

    Mas não parou ali.

    Vieram mais paredes. Uma, duas, três casas abandonadas, completamente ultrapassadas.

    Quando o mundo enfim parou de girar, Naron estava no topo de um pequeno monte.

    Lá embaixo, havia uma escadaria quase sem fundo, uma estrutura que estava presente em boa parte dos subúrbios.

    Centenas de degraus de pedra, velhos e gastos, mergulhavam ladeira abaixo.

    Segurava Hazan pela cabeça, o corpo do rapaz já mole, coberto de arranhões, o sangue escorrendo pelas têmporas. Sua madíbula estava aberta, mole, escorrendo um sangue rubro e viscoso.

    Mais adiante, dava pra ver um pequeno pedaço das casas bonitas que faziam parte do centro de Ariasken. 

    As luas e as estrelas brilhavam, alheias à brutalidade.

    — Que vista bonita, não acha?

    A voz saiu tranquila, quase amistosa.

    — Se ao menos você fosse forte o suficiente para aproveitá-la…

    Esperou. Esperou por uma resposta, uma reação. Esperava que Hazan fosse muito mais do que os rumores diziam. Mas tudo o que ouviu foi o som das tosses úmidas do jovem, seguidas de catarro e sangue.

    — Isso é uma pena, mas não se culpe tanto. A fraqueza não é uma escolha, é uma sentença. E você nasceu condenado. Da próxima vez, saiba o seu maldito lugar.

    E então, com um gesto displicente, Naron soltou.

    A primeira quina atingiu suas costas com um som oco. A segunda, a lateral do crânio. A terceira, o ombro, e ali o corpo girou, saindo do eixo e rolando pelos degraus.

    Seus membros se contorciam em ângulos errados. Em certo ponto, bateu de peito, parando por um breve segundo, só para o próprio peso empurrá-lo de novo.

    A cada impacto, um som diferente. 

    A escadaria parecia não ter fim.

    Quando finalmente parou, foi mais por misericórdia da gravidade do que por resistência própria. Ficou jogado de lado, a perna presa entre dois degraus, o rosto virado para cima.

    Um filete de sangue escorria do nariz até a boca, e o peito arfava em espasmos, como se o corpo ainda não tivesse entendido que devia parar.

    O mundo girava. A visão escurecia.

    De barriga para cima, com os olhos fixos num céu turvo, uma notificação cintilou na borda da sua visão:


    — Hazan! — gritou Lunna, correndo até ele com o coração disparado. Aspen veio logo atrás, puxando a irmã com firmeza pelo braço.

    — Devagar, Lunna! — murmurou.

    — Eu vou curar ele! — gritou a menina, pousando as mãos sobre o peito dele com os olhos cheios de lágrimas.

    — Você não pode! Esqueceu como ficou doente depois de curar só uns hematomas naquela fortaleza!? — O elfo confrontou.

    Aurora se aproximou, aproximando o indicador dos lábios e pedindo silêncio. 

    Ambos obedeceram.

    Ela se ajoelhou ao lado do corpo, os olhos frios analisando cada ferida.

    Essas marcas… Ele levou golpes diretos, praticamente no corpo todo. A distribuição dos hematomas indica que vieram de todos os lados.

    Ela moveu o tecido da camisa rasgada de Hazan e observou a coloração escura em seu abdômen.

    Fraturas internas. Alguém muito forte fez isso.

    Instintivamente, Aurora se levantou, ficando entre Hazan e os irmãos.

    — Fiquem atrás de mim. Agora.

    Foi quando ele surgiu.

    — Aurora… — disse a voz grave e calma.

    Naron.

    Sua presença fazia o ar parecer mais denso. Observava eles do alto da escadaria.

    — Se você dá algum valor à sua própria vida medíocre… se afaste dele.

    Aurora não recuou.

    — O que exatamente ele fez? Podemos remediar isso, eu estou disposta a negociar.

    Naron não respondeu de imediato. 

    — Mas eu não estou.

    Antes que Aurora pudesse dizer mais, outra voz ecoou.

    — Nossa, quantas pessoas querendo o Hazan! Ele é do tipo popular?

    Sentado casualmente sobre um muro de pedra, estava um homem com cabelos longos e desgrenhados presos num rabo de cavalo. 

    A armadura metálica com detalhes escarlates brilhava sob a luz pálida, e uma capa longa dançava com o vento, ostentando nas costas o símbolo da Casa Ignis: um punho cerrado envolto em chamas.

    O capitão da Guarda Escarlate deu um salto leve e caiu com suavidade.

    — Ordens são ordens. Hazan vem comigo. Prometo cuidar bem dele!

    Aurora podia sentir a Aura opressora daqueles dois. Mas enquanto a Aura de Ronan parecia se expandir e brilhar, a de Naron era um poço sem fundo.

    Eram forças muito além do que podia enfrentar.

    Ela olhou para Hazan inconsciente, e depois para os irmãos. Eles pareciam assustados, estavam ainda mais oprimidos pela presença daquelas duas figuras poderosas, mas a preocupação com o lutador ainda se mantinha intacta.

    Isso é realmente irritante…

    Aurora mordeu o lábio inferior e deu um passo à frente. Retirou lentamente as adagas das bainhas, cujo emitiram um cintilar azulado.

    — Nenhum de vocês vai tocar nele — ameaçou a polariana, empunhando as adagas com uma promessa de dor.

    Silêncio.

    Então, uma nova voz se ergueu:

    — Faço dessas palavras as minhas.

    Aurora virou-se com o cenho franzido. Um homem de aparência miserável se aproximava: barba rala e mal feita, cabelo bagunçado, roupas sujas como se tivesse dormido em uma vala.

    — Um mendigo? — murmuraram Aurora e Ronan ao mesmo tempo.

    Uma veia pulsou na bochecha do homem.

    Lunna arregalou os olhos, surpresa.

    — Sr. Hadrian!?

    — Passei dias vagando por esses malditos becos, espanquei tantos criminosos que perdi as contas… Mas finalmente encontrei você.

    Os olhos de Hadrian brilharam em um verde incandescente, e ele desembainhou sua espada lentamente.

     — Naron, você está preso em nome da Pena Azul.

    Naron deixou escapar uma risada seca, arrastada e profunda.

    — Que conveniente… A Guarda Escarlate e a Pena Azul, os cães bem treinados da nobreza, todos aqui… reunidos. Isso é um presente dos deuses? Posso exterminar ambos aqui e tomar o controle da cidade.

    Ronan levou a mão à barriga e começou a rir alto.

    — Hahahahaha! Ai… espera, me dá um segundo, isso foi demais.

    O capitão limpou uma lágrima do canto do olho, ainda sorrindo.

    — Olha, eu adoraria ver onde isso ia dar, mas sejamos realistas… lutar aqui só vai dar prejuízo pra todo mundo, e tenho certeza que vocês sabem disso.

    Ele se virou para Aurora, para Lunna, Aspen e Hadrian.

    — Vocês me devem essa, hein?

    Ronan então pisou com força no chão. Um redemoinho azulado de Aura explodiu sob seus pés, levantando uma cortina espessa de poeira. Naron levou um passo atrás, parcialmente cego.

    Quando a poeira baixou, já não havia ninguém.

    Silêncio.

    Naron permaneceu parado. A brisa soprou entre os escombros.

    — Você nem tentou impedi-los, hein? Podia ter um pouco mais de autonomia, “Naron”.

    O mascarado não respondeu.

    — Nada? Bah… você é péssimo em improvisar.

    Ronan caminhou até ele, deu dois tapinhas em seu ombro, como se parabenizasse um bom ator.

    — Continue com o bom trabalho.

    O homem continuou em silêncio. Ronan suspirou.

    — É… às vezes, eu acho que devia me soltar mais.

    E desapareceu em um borrão escarlate. Eventualmente, o mascarado também se moveu.

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