Capítulo 49 - Memórias.
Paz.
Gaivotas entoavam seus cantos enquanto sobrevoavam um cais envelhecido. Uma delas mergulhou em rasante, emergindo com um peixe cintilante entre o bico. A água era tão clara que dava para ver o fundo.
Os dedos apertavam com firmeza o cabo da vara de pesca, embora não houvesse sinal algum de movimento na linha. A outra mão subiu até a boca, abafando um longo bocejo.
Droga… essas gaivotas tão roubando todos os meus peixes.
Os pés balançavam lentamente na beirada do cais, pequenos, soltos, tentando tocar a água. Acima, o céu era um campo sereno de azul, embora houvessem rastros do fim da tarde. As nuvens passavam devagar, empurradas por uma brisa suave que acariciava a pele.
— Ah… Isso aqui tá pacífico demais.
Era quase estranho.
Sempre correndo de um treino pra outro, sempre buscando uma nova meta pra alcançar. Disputava torneios, aprendia o que podia, vivia cercado de pressão e objetivos… E o pouco tempo que sobrava pra algo assim, tão simples quanto pescar, parecia sempre escorrer pelos dedos.
Mas naquele dia, tudo era diferente.
Não sabia o motivo.
Só… estava ali.
Sem pensar em treinar. Sem obrigações. Sem metas. Sem o peso constante no peito que nunca sabia explicar.
Naquele instante, estava livre.
Se fosse reclamar de alguma coisa, talvez fosse da maldita falta de peixes.
Tava com esperança de comer sardinha… mas pelo visto quem mordeu a isca foi minha expectativa.
Foi então que os passadores da vara começaram a girar, e a linha se esticou rapidamente. As mãos apertaram a empunhadura num reflexo, o corpo inclinando-se para trás,
— M-merda, esse é dos grandes!
Puxava com força, o cabo rangendo entre os dedos. A tensão era real, e o desafio também. Ajeitou a postura, ficando de pé e firmando os pés na madeira.
— Eu tô quase lá…!
— Hazan?
A linha afrouxou da mesma forma que tinha se tensionado.
Merda, eu perdi ele!
Mas por algum motivo, isso não era mais tão importante.
Hazan virou o rosto, e viu.
Rafaela.
Estava de pé na entrada do cais, trajando roupas casuais. Uma camisa branca leve, colada ao físico treinado, calças bege dobradas até a canela, e sandálias simples. O cabelo preso, com o rosto trazendo o olhar tranquilo de sempre.
— Rafaela…? — Piscou, surpreso. Os olhos tentavam confirmar o que viam.
— Por que essa cara? — Ela sorriu, cruzando os braços com calma. — Até parece que viu um fantasma.
A voz dela era suave e familiar.
— Hã… É, eu também não sei — murmurou, desviando o olhar. Sua expressão vagava, procurando algo que já não lembrava ter perdido.
Sentia-se estranho. Como se houvesse uma pergunta importante a ser feita… mas que, naquele instante, simplesmente não importava.
Rafaela se sentou ao lado dele, as roupas casuais balançando levemente com a brisa. Por um instante, tudo parecia eternamente calmo.
O som das gaivotas ao fundo, o barulho sutil das ondas sob o cais, o pôr do sol pintando o céu com cores que só um dia perfeito poderia oferecer.
— Isso é pacífico demais… — murmurou ela, aproveitando aquele momento precioso.
Hazan a observou de relance… e riu. Uma risada leve, inesperada, que saiu sem pedir permissão.
— Hahaha… É claro. Acho que agora eu entendo por que estou assim.
Ela levantou uma sobrancelha, fingindo surpresa.
— É mesmo? Vai me contar?
Ele estendeu a mão à frente, desejando tocar aquele cenário surreal. O mar, o céu, a brisa. Tudo tão sereno… tão distante daquilo que costumava conhecer.
— É que… eu sinto que não fui feito pra isso.
— E pra quê você acha que foi feito, então?
A resposta veio em um sussurro.
— Eu não sei.
A sinceridade ali não era desesperada, mas honesta. Aceitava que não tinha todas as respostas para os sentimentos complicados que guardava dentro de si.
Rafaela pousou a mão no ombro dele. Era um toque reconfortante.
— Você é mais do que pensa ser, Hazan — falou, exibindo um sorriso raro e acolhedor. — Sempre foi. Cuidar de você… ver quem você está se tornando… Adivinha só? É a melhor parte.
Aquelas palavras não deveriam afetá-lo tanto. Mas afetaram. Mais do que esperava. Virou o rosto, discretamente, limpando um cisco imaginário dos olhos.
— Nem sempre sou o melhor sobrinho do mundo…
— E nem eu, a melhor tia — respondeu com um riso discreto. — Mas você continua tentando, não é? Sempre tentando. Sempre lutando. Porque é isso que você é. Um lutador.
Lutador.
A palavra ecoou dentro dele.
Aquele que luta. Que insiste. Que não aceita ficar no chão.
Mas havia algo de errado com ela. Algo deslocado.
Lutador…?
É isso o que eu sou?
E então veio a dor. Uma pressão repentina nas têmporas. Ainda assim, o mar continuava calmo. As gaivotas ainda cantavam. E o céu… seguia sereno.
Sereno demais para ser real.
Abaixou a cabeça por conta da dor, instintivamente procurando alívio, mas o que encontrou foi o oposto.
Seu reflexo tremia na superfície. Esperava ver o rosto de sempre, jovem, cansado talvez… mas ainda seu.
Não era.
O mar escureceu. E o reflexo nele surgiu nítido.
Começou pelos olhos, completamente vazios. Os lábios ressecados, rachados. Os cabelos caíam em mechas grandes e descuidadas, colando-se ao rosto. O torso, nu, exibia uma paisagem de cicatrizes. Sua expressão transmitia uma máscara agressiva que escondia o cansaço.
Esse… sou eu?
A vara o puxou com violência. Mas dessa vez, não havia força para resistir.
O corpo cedeu, sendo tragado pela água fria.
A gravidade parecia maior ali embaixo. Seu corpo não o obedecia como deveria. Nem mesmo o impulso do desespero bastava para levá-lo à superfície.
E quando tentou gritar, o som não veio. Apenas bolhas que subiam em direção a superfície.
Naquele breu, fragmentos flutuavam. Vitrais partidos que representavam memórias estilhaçadas.
Sabia muito bem do que se tratava todas aquelas memórias.
Começou com um templo antigo. Grande o suficiente para ser usado como arena. Duas estátuas de mármore escuro lutavam para ceifar sua vida em um teste cujo a tortura durou horas intermináveis.
Eros e Thanatos? Por que agora isso parecia incerto?
[Fragmentação em processo…]
1%…
4%…
12%...
Esses momentos eram marcantes por serem dolorosos. Como quando enfrentou Edg■rd em um observatório em chamas.
23%…
29%…
35%…
Entretanto, a dor não era sua única amiga naquele mundo. Aprendeu a se importar com dois irmãos, que apesar das brigas e discordâncias, eram inseparáveis.
O olhar medroso e desconfiado de A■p■n. O jeito extrovertido e engraçado de ■unn■. O jeito tímido que L■ara tentava cuidar de Z■r■ e Ras■■d. E uma mãe que tornou um velho orfanato em um lar de verdade para todos eles.
46%…
50%…
53%…
Sumiram. Mas algo tinha existido para realmente sumir em primeiro lugar? Esse sentimento era irritante.
Curiosamente, essa irritação o lembrava da companhia ranzinza, mas verdadeira, de Au■■■■.
E também do maldito abismo que a salvou naquela masmorra.
O momento em que agarrou a mão trêmula e fria da p■lari■na, puxando-a no último segundo, em um misto de adrenalina e preocupação.
64%…
67%…
E quando recebeu seu primeiro emprego numa pousada, sua maior preocupação era a comida. Usar suas habilidades para tornar a comida o mais deliciosa possível era a prioridade.
Ás vezes, buscava ensinar os donos algumas de suas técnicas. Isso culminava em momentos hilários, como R■■d■lf sorrindo com o rosto sujo de farinha, parecendo um fantasma. E quando Ali■■ mostrava seu cozido de carnes com um sorriso inocente de satisfação, o coração aquecia de orgulho.
70%…
Mas por que sentiria orgulho? Não existia motivos para isso. Mas aqueles momentos, aquelas pessoas, por algum motivo o atraiam.
Tentou segurar o que restava. Qualquer coisa. Um som, um rosto, um nome. Mas quanto mais agarrava, mais se perdia.
78%…
Isso é estranho… Eu sinto que existe algo que eu deveria fazer a todo custo… Mas por que esse sentimento parece tão irrelevante agora?
84%…
88%…
92%…
Espera… quem sou eu mesmo? Por que eu estou aqui? Por que eu estava lutando tanto? Que se dane, isso não importa agora…
94%…
96%…
99%…
[Alerta! Uma entidade desconhecida interfere no sistema! Forçando o encerramento do processo de fragmentação! Esta ação pode resultar em danos psicológicos irreversíveis!]
Algo rasgou a inércia daquele vazio.
Uma mão enorme, feita de sombras, o agarrou sem permissão e suavidade. Arrastou-o para fora daquele oceano de entorpecimento com uma força que não parecia seguir leis naturais. Uma violência indiferente.
O ar invadiu os pulmões. Hazan arfou, tossindo, tentando entender onde estava, o que ainda era real.
O cenário… familiar, mas distorcido. Os galhos antigos formavam a mesma cúpula de antes. O chão, ainda o mesmo espelho rachado.
Reconhecia aquele lugar.
A estrutura negra estava lá, suspensa por correntes de marfim que desciam do teto. Só que dessa vez, não estava suportando dela.
— Eu estou… decepcionada, Hazan — a voz surgiu, um sussurro que arranhava. — Usei o pouco que me restava. Sacrifiquei meu karma… e tudo pra trazer de volta isso?
Ele não respondeu. Nem conseguia. Ainda estava tentando entender se estava vivo… ou se aquilo era só mais uma forma de morte.
— Uma criança fraca. Patética. Afogada nas próprias dúvidas.
A arconte surgiu, ainda a mesma silhueta feminina rodeada por sombras.
— Eu esperava algo diferente de você. O tipo de sentimento que queima mesmo sem um propósito. Mas você…
Ela fez uma pausa, encarando-o com profunda decepção, e então balançou a cabeça. Percebeu que não existia motivos para gastar mais palavras.
A impotência doía no peito. Achava que tinha morrido. Achava que tudo tinha terminado ali, num suspiro engolido pela água.
E no entanto… ela o trouxe de volta.
Não por misericórdia.
Mas por puro interesse.
— Chega — disse ela, virando-se. — Achei que você me serviria. Mas estou entediada. Vamos encerrar isso aqui.
Ela levantou a mão, e uma notificação surgiu diante de seus olhos:
[A Arconte deseja encerrar a “Missão Pessoal: Sede Inabalável” antes do prazo estipulado de 30 dias. O Flagelo concorda com essa requisição?]
[Sim] [Não]
— O que vai acontecer comigo? — Hazan perguntou, quase sem voz.
Ela parou.
— O que está feito… está feito. Não posso desfazer isso, embora tenha sido um desperdício.
Aquilo doeu mais do que qualquer golpe. Em silêncio, ele se ergueu. Andou até a estrutura negra, observando os fragmentos distorcidos de memória que lutavam para ganhar espaço.
[Você recusou a requisição da Arconte! A “Missão Pessoal: Sede Inabalável” irá continuar enquanto a Arconte não perder o interesse!]
A sala silenciou.
Dava para ver o sorriso perverso surgindo atrás do véu.
— Isso… isso sim é interessante. — Ela deu um passo à frente, com entusiasmo doentio. — Quer continuar mesmo depois de tudo? Depois de fracassar? De provar que é só mais um ser humano medíocre, refém de um contrato que sequer lembra de ter feito?
Não havia determinação ou qualquer brilho em seu olhar. Apenas o resquício de algo que jamais poderia ser apagado.
Obsessão.
Hazan agarrou aquela estrutura com as próprias mãos, erguendo-a acima dos ombros. O peso era o mesmo da última vez. Tudo o que podia aguentar e um pouco mais.
— Você me trouxe de volta porque quis. Eu vou usar isso.
Ela gargalhou.
— Então vamos mudar os termos!
Estalou os dedos, e de repente, as correntes que sustentavam a estrutura se desfizeram com um estalo. A estrutura negra começou a descer, o peso inteiro sendo distribuído
— Sete dias — ela disse. — Só isso. E agora, você vai sustentar tudo… sozinho. Este, Hazan Carvalho, será o seu suplício!
O impacto o jogou de joelhos. As veias saltaram. Os ossos doíam com o contato. Não sabia se duraria um minuto.
Mas sabia que tinha que tentar.
Não.
Ele tinha que conseguir.
Porque se era para fracassar, que fosse com os dois pés fincados na queda.
E com os olhos ainda firmes no peso que decidiu carregar.
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