Índice de Capítulo

    Fazia alguns minutos que estava se encarando no espelho.

    O quarto era pequeno e simples, com paredes de madeira ressecadas e uma janela aberta que deixava entrar a luz pálida do fim de tarde.

    Os olhos estavam fundos. As olheiras, escuras. O rosto tinha arranhões, com o olho direito levemente inchado e um corte ressecado no canto da boca.

    Virou de costas, sentindo a dor fisgar. Lá estava ela: uma mancha roxa se espalhava pela parte de trás das costelas, provavelmente quebradas. Cortes, hematomas e rasgos de todos os tipos também estavam presentes na pele.

    Voltou à cama. O chão de madeira rangia sob os pés descalços. Ignorou as notificações do sistema que pulsavam no canto da visão. Ficou ali, parado, encarando o chão.

    Eu quase morri.

    Uma simples constatação.

    Minhas memórias… estavam sumindo. Eu senti. Eu ia esquecer as poucas memórias que tinha. Como eu ia saber que morri? Que deixei de existir?

    Levou a mão ao peito.

    Apertou com força. Sentiu os lábios contorcerem, as narinas dilatarem. A vista começou a arder.

    Fechou os olhos com força.

    Tudo o que restou foi respirar fundo e se recompor.

    Uma camisa de camponês, limpa e dobrada, o esperava ao lado de uma muda de roupas. Ele a vestiu como quem cumpre uma tarefa, puxando o tecido sobre os ombros ainda suados e colando aos músculos doloridos.

    Eu fui descuidado. Achei que artes marciais modernas, força de vontade e coragem seriam suficientes.

    Mas a verdade nua e crua era outra: ele não tinha feito um plano. Não tinha se preparado.

    E isso quase custou sua vida.

    O sistema piscou mais uma vez.

    Eu não mereço essa recompensa, mas vou fazer bom uso dela.

    Antes de decidir, deslizou para a próxima tela.

    Estava mais forte. O progresso era visível. Suas artes marciais estavam próximas do nível intermediário. Mas, na prática… não foi o bastante.

    Nem chegou perto de ser suficiente.

    Lembrou de seu dom, que o manteve focado mesmo quando a dor era insuportável, permitindo que criasse estratégias e se adaptasse durante as lutas. E do título, que impediu sua queda contra oponentes cuja diferença de força era gritante.

    Mas ainda assim, não era o bastante.

    Não faço ideia do que seja esse tal de ‘Coração de Ehdoton’, e agora não preciso de outro dom. Mas técnica nova? Isso eu sei usar.

    Selecionou o Fragmento de Memória Vermelha.

    O sistema reagiu imediatamente. Um latejar atravessou sua cabeça, como se algo estivesse sendo reescrito em sua mente. O corpo absorveu os movimentos antes mesmo de compreendê-los. Um novo estilo. Um novo arsenal.

    Ele reconheceu os padrões, mesmo que nunca os tivesse praticado antes, e um sorriso surgiu em seu rosto.

    Se eu tivesse isso naquela luta… teria feito aquele cara suar.

    Nova notificação.

    [Alerta! Você recebeu o direito de uma análise corporal! Deseja iniciar a análise?]

    [Aceitar] [Recusar]

    Se isso me ajudar a não morrer da próxima vez… tá valendo.

    Aceitou. E se arrependeu no mesmo segundo.

    Seu corpo travou. Uma espécie de pulso elétrico percorreu sua espinha, derrubando-o da cama.

    Enquanto se contorcia no chão, tudo era escaneado.

    [Iniciando análise corporal…]

    [Analise corporal completa!]

    [Escrevendo um relatório…]

    [Relatório completo!]

    Porcaria de sistema… Caralho!

    Ergueu a cabeça com dificuldade, encarando os resultados numa tela translúcida.


    Densidade óssea: acima da média.
    Capacidade respiratória: comprometida temporariamente por trauma torácico.
    Força muscular: elevada para sua categoria de peso.
    Flexibilidade: nível excelente.
    Reflexos neuromusculares: altamente desenvolvidos.

    Lesão nº 1: região do joelho direito apresenta microfissura patelar e inflamação no tendão patelar, além de micro estilhaços de ossos quebrados na região interna. Prognóstico: pode comprometer a locomoção a médio e longo prazo sem tratamento adequado.

    Lesão nº 2: fratura incompleta nas costelas 8 e 9 do lado esquerdo. Prognóstico: pode afetar a amplitude de movimento e flexibilidade, exigindo repouso e tratamento.

    Potencial físico atual: equivalente a um Pujante Avançado – 1 Estrela.
    Potencial físico máximo estimado: Pujante Experiente – 3 Estrelas.

    Observação: lesões internas estão impactando negativamente o desenvolvimento.
    Dom ativo e título em uso compensam parcialmente as limitações atuais.
    Recomendação: não depender exclusivamente desses recursos para compensação estrutural.


    Pelo que entendi, meus atributos e habilidades podem compensar o lado ruim dessas lesões, mas essas soluções só estão quebrando um galho. Uma hora ou outra, a conta vai chegar. E o que caralhos são esses termos de pujantes?

    Estava lutando em um mundo que não entendia. Sem saber como funcionavam os pujantes. Sem saber o básico sobre os magos.

    Era como lutar com uma venda nos olhos, em um campo minado.

    Rolou pelo chão, encarando o teto de madeira.

    Porra. Pelo visto, vou ter que estudar.


    As ruas estavam vivas.

    Tecidos coloridos se esticavam por entre os postes, bandeirolas balançavam com o vento morno, e crianças corriam com pequenos instrumentos de madeira nas mãos, imitando guerreiros e magos em uma guerra invisível. Lojas abertas, música tocando de longe e o cheiro doce de frutas caramelizadas misturado com o de pão recém-assado.

    A cidade pulsava com expectativa.

    Hazan andava ao lado de Aurora, com as mãos nos bolsos e os olhos escaneando os arredores com curiosidade contida.

    Era de tarde, logo depois da reunião que tiveram com os líderes da Pena Azul.

    Ela suspirou com um sorriso leve.

    — É o Festival do Despertar. Acontece uma vez por ano, sempre na metade do ciclo anual. Começa amanhã e dura dez dias.

    — Dez dias? — ergueu as sobrancelhas.

    — Sim. Foi criado pela própria Guilda Pena Azul pra movimentar a cidade. Tem peças teatrais, uma competição de luta, eventos de caridade… Ah, e avaliação gratuita de potencial mágico e pujante. Muita gente vem de fora só por isso.

    Hazan virou o rosto e a encarou por alguns segundos. Assentiu em silêncio, como quem agradece pela informação, mas não quer prolongar o assunto.

    Continuaram caminhando em silêncio. A cidade inteira parecia diferente, mais viva, mais esperançosa.

    Foi então que ouviram alguém gritar ao longe:

    — Ei! Você aí! Hazan!

    Ele virou no reflexo e, antes que pudesse entender o que era, pegou o objeto com a mão. Uma suculenta e avermelhada maçã. O homem que jogou acenou.

    — Valeu pela lenha outro dia, rapaz! Salvou meu estoque!

    Hazan ergueu a maçã num gesto de agradecimento e deu uma mordida.

    — Você realmente vai fazer isso? — perguntou Aurora, erguendo uma sobrancelha.

    — Para, não começa — respondeu ele, falando de boca cheia. — Tá achando que tá envenenada? Paranóica.

    — Eu tô falando da Beatrice, idiota.

    Ele engoliu devagar. O gosto da maçã desceu amargo, apesar de doce.

    — Ah… isso.

    A expressão mudou. O sorriso de canto desapareceu. Ele assentiu uma vez, firme. Não havia mais como adiar.


    Mansão dos Ignis.

    O portão era alto, feito de aço, e com o brasão da família cravado no centro. Dois soldados estavam de guarda.

    — Somente Hazan pode entrar — disse um deles, estendendo o braço à frente de Aurora.

    Hazan a observou por um segundo, então deu um passo à frente, direto para o guarda.

    — Sai da frente.

    — Senhor, ordens são ord—

    Hazan apenas manteve o olhar firme.

    O guarda desviou o olhar primeiro.

    — Pode… podem entrar.

    Dentro do terreno, havia um caminho de mármore branco, cercado por flores e muita grama.

    — Aí, Hazan! Lembra de mim? — disse um rapaz de cabelos desgrenhados, com um sorriso amistoso.

    O encarou por um momento, puxando em suas memórias alguma interação com alguém daquela aparência. Demorou um tempo até perceber que se tratava de Baelor, um dos três soldados que havia ultrapassado em uma corrida frenética da primeira vez que conheceu as ruas de Ariasken.

    — Você anda sumido, espero que esteja bem. — Hazan acenou com a mão, sem parar de andar. — Tô ocupado agora, a gente se vê por aí.

    Baelor ergueu as sobrancelhas, mas não disse mais nada. 

    E pensar que era o Hazan… Não acreditei quando Ronan me contou. Acabei de me recuperar e coisas interessantes estão acontecendo. Parece que minha missão vai ser divertida, Marcan e Edrin não vão acreditar. Mas, antes…

    Assim que eles passaram, voltou-se para os soldados com uma feição séria.

    — Que eu saiba, apenas a entrada de Hazan foi permitida pela marquesa.

    — D-desculpe, segundo-tenente, nós…

    — Relaxem. — Sua feição suavizou. — Com o olhar feroa daquele cara, como eu poderia julgar vocês?

    Os soldados exibiram sorrisos aliviados. Baelor lançou um último olhar para a dupla.

    Além disso, a marquesa já havia previsto que Aurora viria junto com ele.

    Os dois seguiram caminhando pelo jardim. Era um espetáculo à parte. 

    A varanda da chácara era ampla, com cortinas finas que dançavam ao vento. Beatrice estava sentada com elegância em uma cadeira de madeira escura, segurando uma xícara de porcelana com uma das mãos, enquanto a outra guardava um leque preto e vermelho no colo. O bule ainda soltava vapor sobre a mesa de vidro. Ao lado dela, estava Ronan, agindo como um guarda-costas pessoal.

    Hazan e Aurora se aproximaram. Beatrice ergueu os olhos e sorriu.

    — Ora, que surpresa mais agradável. Sirvam-se, por favor! O chá está delicioso! — disse, com a voz suave, a mão apontando para as cadeiras vazias à frente.

    Seus cabelos ruivos exibiam um brilho bonito sob a luz do sol, e seu vestido vermelho escuro trazia um ar elegante e convidativo.

    — O capitão da Guarda Escarlate perseguindo um civil. A marquesa poderia compartilhar a sua opinião sobre isso?

    — Um “civil”? — A mulher indagou, contendo a vontade de rir.

    Aurora jogou um cartão de identificação sobre a mesa.

    — Oh… então vocês conseguiram novas identidades com a Pena Azul. Isso é bom. Vai facilitar as coisas entre nós.

    A polariana franziu a sobrancelhas, cruzando os braços.

    Beatrice ajeitou a xícara com um gesto ensaiado e um sorriso de víbora em seu rosto.

    — Antes disso, o que acham de se sentarem?

    Nenhum dos dois se moveram.

    — Claro, como quiser. De qualquer forma… — Colocou a xícara de chá na mesa e juntou as mãos num sinal de negociação. — Acredito que acabar com a maldição de Algêros faz parte do interesse dos dois. E eu tenho o método perfeito para isso.

    Hazan e Aurora arregalaram os olhos.

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