Capítulo 51 - Quando Foi a Última Vez?
Embora estivessem surpresos, a dupla não recuou diante daquela afirmativa.
Vindo de alguém como Beatrice, a cautela era maior que a curiosidade.
Entretanto, a marquesa sabia exatamente como usar suas cartas.
— Sabiam que o tráfico de escravos em Wurid é bastante eficiente? — A pausa foi calculada. — Contratos falsos, registros “oficiais”… e pessoas certas para fazer com que a lei trabalhe a favor deles. — Tomou um pequeno gole de chá. — Um leilão com vocês dois, por exemplo… certamente causaria um alvoroço.
Hazan bateu com a mão na mesa, tremendo a mesa e a xícara.
— Escuta aqui, você tentou me transformar na babá de luxo do seu filho mimado, e eu ainda não te soquei por isso.
— E, pelo que sei — Aurora continuou —, fazer negócios com traficantes de escravos sendo uma Marquesa é crime passível de execução em praça pública. Então, por que acha que merece nossa confiança?
Beatrice manteve o sorriso.
— Oh, meus queridos… — O tom era doce. — Creio que houve um mal-entendido. Eu jamais me envolveria em algo tão vulgar. Como nobre, minha responsabilidade é com esta cidade e com o meu povo.
— Vai mesmo mentir assi-
— Mas… — Beatrice interrompeu Aurora — acusar um membro da nobreza sem provas… isso, sim, é passível de morte. — Sua voz, antes suave, agora carregava um peso frio. — Seja razoável, sua maldita bárbara.
Aurora planejava responder ao insulto, mas Hazan avançou primeiro, apontando o indicador na direção de Beatrice.
— Você tá indo longe demais.
Swin!
Um leve ardor surgiu na bochecha do rapaz. Quando levou a mão, encontrou um fino corte.
— Ops, parece que minha mão escorregou — disse Ronan, com um sorriso calmo. A lâmina da espada sequer tinha saído da bainha.
Aurora apoiou a mão no peitoral do lutador. Apesar de seu olhar estar fixo em Ronan, sua voz dirigia-se ao seu companheiro:
— Não vale a pena.
Beatrice abriu o leque devagar, o estalar da armação ecoando pelo jardim.
— Eis minha proposta: investiguem a Confraria da Sorte para mim. Tragam-me informações valiosas, provas de seus crimes, e eu usarei o “Método de Rompimento da Mana” para acabar com a maldição de Algêros.
— Isso se esse tal “método” realmente existir — retrucou Hazan.
Ela apoiou os cotovelos na mesa, juntando as mãos.
— Vocês têm até o fim do festival para pensar. Quando voltarem, darei uma demonstração valiosa da conjuração. — Fechou o leque com um estalo. — Imaginem a liberdade de finalmente se separarem. Pelo que sei, vocês não estão juntos porque querem, não é?
Lufadas gentis de vento sopraram pela varanda da chácara. A dupla se encarou em silêncio, até que ambos balançaram a cabeça negativamente.
Hazan cruzou os braços, encarando a nobre.
— Isso ainda parece um péssimo negócio. Não vamos fazer isso.
Beatrice apenas sorriu.
— O melhor dos negócios sempre parece péssimo para quem não tem escolha.
O sol lançava luzes douradas na madeira das docas, refletindo no casco escuro e imponente do navio de carga que dominava a paisagem.
Velho, mas sólido, com mastros altos e cordas tensas.
Parecia ter visto mares distantes e tempestades mortais.
Os homens no convés e na doca trabalhavam sem descanso, carregando e descarregando caixotes.
O mar, naquele dia, estava de um azul profundo e limpo, salpicado de pontos de luz que dançavam com o movimento das ondas.
Aurora caminhava na frente, os olhos sempre afiados. Hazan seguia a poucos passos atrás, o queixo erguido e os olhos varrendo o cenário.
Seu andar era despreocupado na superfície, mas não dava para dizer o mesmo de sua expressão.
No convés, um homem com o rosto inchado e o olho roxo, murmurou algo para os colegas, enquanto observava Aurora de relance.
— É ela… aquela maldita polariana. Não acredito que ela teve coragem de voltar aqui!
— O quê? Achou que ela teria medo de voltar? — O sorriso do marujo alargou-se. — Foi você que apanhou naquele dia, tudo porque elogiou aquela obra de arte em forma de bunda, hehe!
Os dois colegas caíram na gargalhada, enquanto o homem ferido se recolhia de vergonha. Todavia, eles se calaram ao sentirem um estranho arrepio.
Do outro lado do cais, eram observados por um homem de olhos alaranjados, no qual acompanhava Aurora.
Não houve palavra, apenas um passo lento e calculado do lutador, aproximando-se o suficiente para que os marinheiros sentissem a sombra cair sobre eles.
Hazan manteve os braços soltos ao lado do corpo, mas o peso do olhar era tão firme que obrigou eles a abaixarem a cabeça.
Os outros, vendo a cena, trocaram olhares e voltaram ao trabalho.
Aurora ignorou o incidente, focando-se no homem que observava a movimentação de longe. Estatura média, mas ombros largos, braços de marinheiro veterano. Alisava a barba grisalha com calma.
— Ah… — disse ele, com voz rouca, quando ela se aproximou. — A encrenqueira viajante está de volta.
— Os seus homens procuraram briga primeiro — retrucou ela com um olhar firme.
Ele arqueou uma sobrancelha e sorriu de lado.
— Mas você há de convir: semanas no mar, sem nada além de peixes e velas… — girou o queixo em direção a um dos homens, que arriscava galanteios a uma jovem. O estalo do tapa ecoou, arrancando dele uma gargalhada bêbada. — Viu? Alguns sabem ler o vento… outros só aprendem quando ele os derruba.
Aurora manteve o olhar sério.
— Da última vez que vim, você estava fedendo a álcool e não respondeu às minhas perguntas. Está sóbrio agora, capitão?
O comandante a observou como quem mede o valor de uma joia rara.
— Que olhar gelado, minha jovem!— falou, apoiando a mão na barriga. — Pode me chamar de Capitão Berg, e estou ao seu dispor! — Ele fez uma referência, uma imitação porca de um nobre.
Aurora tirou um panfleto do bolso, o qual mostrava o preço de viagem para o navio de carga. Um quarto custava 50 moedas de ouro. Sem mais, nem menos.
— Eu quero reservar um quarto.
— Claro, mas… você tem o dinheiro?
— 50 moedas não são nada.
— 250 moedas, você quer dizer — ele corrigiu.
Aurora estreitou os olhos, inclinando levemente a cabeça.
— Sabia que ganância mata?
Ele riu baixo.
— Menina, não é o ouro que eu cobro. É o risco. O Mar Rubro já engoliu navios com o dobro das velas do meu. Depois da Grande Aproximação, até mesmo lufadas poderosas de vento podem afundar a gente. Só insanos e corajosos se lançam nele. Se quer viajar com minha tripulação, vai ter que pagar o preço da insanidade.
Hazan, que até então se mantinha em silêncio, avançou um passo, inclinando-se levemente para frente.
Seu olhar encontrou o do comandante por um segundo, sem qualquer ameaça verbal, apenas um aviso silencioso de que estava ali, atento.
O comandante retribuiu o olhar, mas manteve o sorriso, como se apreciasse a tensão.
Aurora, sem desviar os olhos dele, apontou o indicador para seu peito.
— Vai precisar de mais sorte do que coragem, se acha que alguém vai pagar 250 moedas de ouro para viajar nessa pilha de madeira podre — finalizou, virando de costas e indo embora.
O comandante, ainda na amurada, murmurou com um sorriso:
— Ah… mas elas vão sim…
O vento soprou mais forte, agitando as cordas e velas.
Naquele mesmo dia, decidiu treinar, mesmo recebendo recomendações de Agnis para ficar em repouso.
E, de fato, as escoriações, hematomas, fraturas e feridas em todo o corpo ainda eram recentes.
Mas sua mente não o deixava em paz.
As dores constantes já haviam se tornado companheiras íntimas, tão presentes que estranhava quando cessavam.
Calçou as botas e percorreu os mesmos trinta quilômetros diários pela cidade. O caminho era praticamente automático.
Entretanto, não ousou atravessar os subúrbios.
A lembrança da derrota recente ainda permanecia intacta, e as esquinas da cidade pareciam sussurrar que ele não era suficiente.
Depois da corrida, veio a rotina de sempre: flexões, abdominais, polichinelos explosivos, socos no ar, joelhadas curtas, uma lista interminável de sequências de Boxe e Muay Thai.
O corpo estava sempre demonstrando sinais de que estava no limite.
Os braços que tremiam a cada repetição, os estalos nas articulações, a visão que escurecia de vez em quando.
Essa dor fazia sentido. E era o único idioma que entendia com clareza.
Quando terminou, duas notificações pairavam na frente de seus olhos.


O sistema está mais presente desde que “cumpri” a última missão. Se eu continuar nesse ritmo, 20 dias devem ser o suficiente para alcançar o nível intermediário.
Encarou o punho cheio de calos, cerrando-o com força.
Um passo de cada vez. Eu consigo.
Pousada do Seu Randolf
Naquela noite, os clientes notaram que algo estava errado. Hazan não respondia como de costume.
Normalmente, quando algum bêbado se arriscava com comentários atravessados, o cozinheiro sempre tinha uma resposta na ponta da língua, ou até mesmo um tom rebelde que fazia a taberna explodir em gargalhadas.
Mas nada disso aconteceu. Ele apenas ignorava, o olhar distante, como se nem ouvisse. Alguns chegaram a se entreolhar, confusos.
Desde que começara a trabalhar ali, algo mudara na pousada. A comida ficou melhor, não porque fosse um cozinheiro realmente excepcional, mas porque cozinhava com o intuito de fazer as pessoas sorrirem.
Os pratos podiam ser simples, mas traziam um sabor e aconchego que levavam vários clientes para momentos nostálgicos de suas vidas.
Foi assim que Hazan conquistou os clientes mais antigos de Randolf, e fidelizou novos clientes com a promessa de sempre comerem algo saboroso e barato.
Randolf, sempre atrás do balcão, já sabia: foi Hazan quem trouxe vida para aquele lugar.
E mesmo sem dizer isso, sua risada mais alta sempre vinha depois das respostas atravessadas que o cozinheiro dava para alguns clientes.
Dentro da cozinha, Alice logo percebeu a ausência do Hazan de sempre. Não era só o silêncio: havia algo no ar, uma barreira invisível que não sabia como atravessar.
Tentou o caminho mais simples.
— Bom trabalho hoje — disse, esperando o sorriso habitual.
Recebeu apenas um aceno seco, quase automático.
Aquilo a fez travar por um instante, mas continuou. Às vezes, quando duvidava do tempero, chamava por ele:
— O que acha desse molho?
— Tá bom.
— E essa carne?
— Serve.
Respostas curtas, soltas no ar.
Sentiu um amargo nos lábios, e uma pressão desconfortável no peito. Apesar disso, decidiu que seria melhor deixá-lo em paz.
Para o lutador, a maldita lesão no joelho e a pontada insistente na costela eram só lembretes de que o tempo não estava a seu favor.
Aquela Arconte… falou como se me conhecesse. Como se soubesse de onde vim. Droga… talvez essa seja a única chance de arrancar respostas sobre quem eu realmente sou.
Não posso desperdiçar. Essa missão precisa ser concluída, custe o que custar.
Aurora já deixou claro: o navio está fora de questão. Vamos precisar estudar as rotas mais curtas para a capital, e comprar montarias. Mais risco, mais gastos. Mas não tem jeito. Já ficamos tempo demais presos nessa cidade.
Assim que ela terminar de coletar informações e recebermos a última parcela do pagamento da guilda, nós vamos embora.
Os rostos vieram à mente sem que chamasse por eles. Dois irmãos, um sonhando em ser forte, a outra só querendo ver a família sorrir.
Aspen e Lunna.
Depois Liara, tentando ser a irmã mais velha que nunca teve. Cassandra, que emanava confiança e um senso natural de proteção.
Pequenos desejos, mas tão pesados quanto qualquer dor que já tinha enfrentado.
E no meio disso tudo… a pousada.
O cheiro da cozinha, o barulho dos pratos, o sorriso de Alice toda vez que acertava o tempero.
As risadas altas de Randolf, enchendo o lugar como se fossem parte da mobília.
Não só estava melhorando suas habilidades na cozinha, mas aprendendo a viver com uma rotina. E, de alguma forma, estava gostando disso.
Mas o problema de se acostumar com o que é bom é que, cedo ou tarde, ele escapa por entre os dedos.
Sabia que teria que ir. Que tudo aquilo não passava de um intervalo, uma pausa antes da próxima tempestade.
E uma parte de si odiava o quanto essa ideia parecia inevitável.
Perdido nesse turbilhão, só percebeu tarde demais quando o fio da faca cortou seus dedos mais de uma vez.
O sangue pingava lento, tingindo de vermelho a tábua de madeira e manchando as cenouras em pedaços irregulares.
Mas não se importou.
— Ei! — Alice largou a colher de pau e pegou a mão dele, assustada. — Hazan, presta atenção!
Segurou firme a mão dele, o cenho franzido. Pequenas sardas pontilhavam suas bochechas, e o tom castanho dos olhos parecia arder de preocupação.
— Você não tá nem prestando atenção no que faz! Já é a terceira vez que corta o dedo essa semana, poxa… — Ela amarrou um pano limpo ao redor do corte.
— É só um arranhão. — Hazan puxou a mão de volta com um gesto frio.
Alice arregalou os olhos. Ficou paralisada por um instante, depois entrelaçou os dedos atrás das costas e desviou o olhar para um canto qualquer da cozinha, mordendo o lábio.
O silêncio entre os dois ficou pesado.
Então, do nada, ela pegou uma frigideira do balcão e tentou acertar seu parceiro de cozinha.
Ele se esquivou no reflexo, arregalando os olhos.
— Você ficou maluca?!
— Maluco tá você! — Alice respondeu com as bochechas coradas. — Vai na Dança Lunar comigo.
— Hã? — Hazan franziu o cenho, meio confuso, a mente ainda meio longe.
— Fala que sim!
— Alice, eu-
— Fala. Que. Sim.
Hazan soltou um suspiro cansado.
— Tá bom, sim.
Alice piscou, surpresa, como se não tivesse esperado que ele realmente aceitasse. O rosto se acendeu de vermelho e parecia que fumaça escapava pelas orelhas. Rapidamente, agarrou a bandeja de pratos pronta e saiu da cozinha sem olhar para trás, quase tropeçando no batente da porta.
Hazan ficou parado, segurando a tábua de cenouras, ainda sem entender o que tinha acabado de acontecer.
Quando voltava para pegar os pratos novos, Alice sequer o encarava nos olhos. E quando a pousada fechou, ela terminou de organizar a cozinha e foi a primeira a retornar para seu quarto.
Hazan e Randolf ainda precisavam cuidar da limpeza e do resto da organização.
— Vai na frente, Randolf — disse Hazan, quando já passava da meia-noite. — Precisa descansar essa coluna.
Randolf soltou uma risada breve, mas não se moveu.
Esticou a coluna, olhou ao redor e, quando teve certeza de que estavam sozinhos, aproximou-se devagar. Sua mão pousou firme no ombro do rapaz.
— Eu sou grato por tudo o que tem feito aqui.
O jovem franziu o cenho, surpreso com a seriedade no tom dele. — Eu só fiz o que qualquer um faria.
— Não, meu filho… eu realmente sou grato. — A voz de Randolf era firme, mas havia um brilho nos olhos dele que não estava acostumado a enxergar.
Era diferente do riso caloroso do dono da pousada, diferente da figura sempre enérgica que enchia os corredores de vida.
Hazan abriu a boca para retrucar, pronto para responder com a ironia habitual, mas as palavras morreram antes de alcançar a língua.
Algo naquele olhar simplesmente o paralisou.
Randolf se inclinou levemente, soltando um longo suspiro.
— Você carrega algo pesado, filho. Não sei o quê, e não vou fingir que entendo. Mas já vi esse olhar em homens muito mais velhos do que você. Homens que passaram por guerras, que voltaram com feridas não cicatrizadas.
O silêncio de Hazan foi a única resposta.
— Me diga… — continuou Randolf, sem pressa — quando foi a última vez que descansou de verdade?
Aquela pergunta o acertou de forma estranha.
Um peso diferente brotou em seu peito, não de raiva ou cansaço, mas de algo que não sentia há muito tempo: alguém se importava.
De repente, flashes voltaram. Os olhares confusos das pessoas que afastara com grosserias.
A expressão aflita de Alice quando cortou o dedo na cozinha, e o seu cuidado especial quando passava a faixa que ela sempre tinha pronta, só por precaução.
Um cuidado genuíno.
E agora, aquele homem mais velho, de barba cheia e linhas de expressão que denunciavam uma longa vida, olhava para ele do mesmo jeito. Olhos de alguém que queria ajudar, mesmo sem saber como.
Um homem que encontrou dor ao ver outra pessoa sofrer.
Decidiu não responder. Afinal, nenhuma resposta poderia explicar o que estava sentindo.
Randolf não insistiu. Apenas deu dois tapinhas firmes em suas costas.
— Pense nisso, filho. E vá descansar. Eu termino as coisas por aqui.
Hazan desviou o olhar, tentando se recompor. Decidiu não discutir. Seus passos ecoaram pelo corredor silencioso até alcançar a porta do quarto. Quando a mão tocou a maçaneta, percebeu que não era só o corpo que estava cansado.
A maçaneta girou.
A porta se fechou com um clique suave.
E o silêncio engoliu tudo.
Encostou a testa na madeira da porta por um instante. Depois caminhou lentamente até a cama.
Sentou-se. O colchão rangeu sob o peso de um corpo cansado.
A luz da lua invadia o quarto pelas frestas da janela, desenhando sombras pálidas no chão. Tirou os sapatos devagar, sem olhar. Deitou-se de lado, os olhos abertos.
Sem expressão.
Sem sono.
Só o vazio.
Porque o que vinha a seguir…
…não era descanso.
E sim uma missão que precisava cumprir.
Um meio-sorriso torto surgiu.
— Foi mal, Randolf. Descansar é coisa de morto. E eu ainda não cavei a minha cova.
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