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    A noite não trouxe descanso.

    Quando abriu os olhos, o quarto já não existia mais. Nada além de um vazio sem fim, o mesmo espaço etéreo do qual tinha se acostumado com a presença da estranha entidade conhecida como Arconte.

    Mas ela não estava presente.

    O peso veio de repente. Uma pressão bruta, sem forma, mas com a solidez de uma montanha.

    Desabou sobre as costas como se quisesse esmagar até os ossos. 

    Fragmentos de memórias, sussurros de súplicas, choros de desespero e gritos de agonia. Eles estavam mais altos dessa vez.

    As pernas cederam. Os braços tremeram, tentando sustentar o impossível.

    O maxilar travou, os dentes rangendo para conter o grito que ardia na garganta.

    Parecia que o próprio mundo o empurrava contra o chão.

    O corpo pedia para desistir. O instinto não deixou.

    Resista! Aguente! Um segundo de cada vez!

    Diante dele, o vazio piscou. Uma tela se formou na escuridão, fria e impassível. 

    As letras apareceram com a clareza de um soco:

    [Atualização de Missão]

    [Título: “Sede Inabalável – Suplício”]

    [Descrição: Não mais sustentado por correntes, o Monólito dos Lamentos agora repousa somente sobre você. Cargas de memórias fragmentadas, vozes distorcidas e obsessões que não são suas o esmagarão sem trégua.]

    [Novo Prazo: 7 dias.]

    [Dias restantes: 6 dias.]

    [Recompensas: ???]

    [Penalidade por falha: Extinção completa do interesse do Arconte, perca parcial de memórias e atributos.]

    Memórias.. e atributos? Eu vou perder os dois!?

    Até aquele momento, o sistema sempre tinha jogado com sua vida como moeda de troca. Era simples, quase justo: faça ou morra.

    Já tinha se acostumado com essa regra cruel, mas aquilo era totalmente diferente.

    Se essa missão vem daquela entidade, então ela provavelmente faz as regras, e não o sistema.

    E se aquela entidade queria arrancar suas memórias à força caso falhasse… era porque havia algo que não podia descobrir.

    Não se tratava só de perder a força que tinha conquistado, para ele, isso era irrelevante. Atributos podiam ser recuperados.

    Mas e se perdesse o pouco que o fazia ser quem era?

    Será que ainda manteria a mesma tenacidade? A mesma fome pela sobrevivência? O mesmo ímpeto para resistir?

    Os rostos daqueles com quem criou laços, as cicatrizes que comprovavam seu esforço… e os instantes felizes com Rafaela na terra.  

    Se perdesse até isso, o que aconteceria?

    Mais uma vez, as correntes que mantinham o monólito levemente suspenso se romperam, e o peso caiu de uma vez.

    Não era apenas físico. 

    Não havia comparação possível com qualquer carga que já tivesse sentido antes. 

    Era como se o próprio ar tivesse se transformado em concreto, pressionando sua pele, esmagando seus ossos, esmagando até mesmo o espaço dentro da mente. 

    Hazan arfou. 

    Mais uma vez, o instinto primal de ceder veio primeiro. Curvar-se, cair de joelhos, ceder de uma vez.

    Mas não caiu. Permaneceu em pé, ainda que dobrado, ainda que cada músculo tremesse como um galho prestes a se partir.

    A dor se espalhava por todo o corpo.

    Gritava nos nervos, arrancava pedaços da respiração. 

    E no meio daquilo, imagens surgiram. 

    Lembranças que não tinha chamado, mas que vieram em forma de frustrações.

    A máscara de ferro de Naron, o amarelo brilhante dos olhos o encarando como se fosse um inseto.

    E o som seco da lâmina de Ronan, tão rápido que nem sequer vira a trajetória. A feição tranquila demonstrava o quanto confiava que poderia acabar com Hazan a qualquer momento.

    Sempre existiriam pessoas mais fortes. Isso nunca foi um problema. O mundo se dividia entre os que estavam à frente e os que tentavam alcançar. 

    Sabia disso. 

    Só que, naquela noite no velho galpão, percebeu o quanto ainda era pequeno. Não diante de Naron, nem de Ronan, nem de qualquer outro. 

    Pequeno diante de si mesmo.

    E diante das memórias que desejava acima de tudo.

    Será que eu tenho o que é preciso?

    O peso não respondeu. A dor não respondeu. Só esmagavam.

    Mas Hazan, mesmo quase sem ar, encontrou a própria resposta.

    Se suportar esse maldito peso por uma noite inteira significa avançar um passo… não, meio passo, já é o bastante! Eu só vou perder se desistir. E eu não pretendo fazer isso.

    Então ficou.

    Não havia técnica, não havia truque. Apenas o ato cru de resistir. Cada segundo parecia um grão de areia caindo, mas cada grão pesava como uma rocha inteira. 

    O tempo deixou de ter forma. Era apenas agonia alongada, um deserto sem horizonte. 

    Quando a primeira noite terminou, foi o mesmo que piscar. Quando percebeu, já estava de manhã.

    O corpo não descansou. A mente, muito menos. A única liberdade foi sentir os ombros sem a pressão esmagadora.

    Um alívio breve, envenenado pela certeza de que voltaria. E pior: voltaria por seis noites seguidas.

    E foi nesse instante, quando respirou fundo e pensou que poderia relaxar, que o medo verdadeiro se instalou.

    Não era o medo da dor. Ele já conhecia a dor. Era o medo de não aguentar. O medo de, na terceira ou quarta noite, quebrar de vez.

    Não era assim antes. Quando o prazo era de trinta dias, o peso parecia suportável.

    Ele confiava na paciência, no tempo, na própria disciplina. Achava que venceria no longo prazo.

    Mas quem garantiria que resistiria até o fim? Quem garantiria que a próxima noite não o esmagaria por completo?

    Nada.

    As perguntas vinham, entorpecendo-o com dúvidas e sentimentos negativos.

    Mas perguntas não venciam nada. Perguntas não moviam um único músculo.

    Lembrou das horas intermináveis de tortura infligidas por Eros, a estátua viva que o dilacerara em sua primeira provação. 

    Hazan sorriu, não por alívio, mas por algo mais sombrio: a paciência que tinha forjado naquele inferno se tornara a base fundamental para não ceder durante todos os momentos de desespero.

    Por enquanto… eu só vou permanecer firme.


    Rapaz, esse lugar é todo pomposo…

    Dava pra ver o sol refletindo um brilho dourado nas fachadas das casas e vitrines das lojas.

    Ruas largas, limpas, ladeadas por carruagens de diversos tipos e tamanhos. 

    Soldados dos Ignis patrulhavam em duplas, armaduras reluzindo, sempre em passos firmes e olhares atentos. 

    Hazan caminhava entre as vitrines, observando a diferença gritante que existia dali para o centro da cidade. 

    Casas de pedra clara alinhavam-se em ruas largas e impecavelmente limpas, com varandas adornadas por flores coloridas. Lanternas de ferro pendiam sobre calçadas de paralelepípedos, iluminando fachadas ornamentadas. 

    Jardins bem cuidados espreitavam por entre portões baixos, exalando aromas de lavanda e alecrim. Cavalos engomados trotavam lentamente, acompanhados por nobres bem vestidos. 

    O murmúrio distante de fontes e risadas elegantes completava a atmosfera serena e refinada do bairro.

    Algumas pessoas, vestidas de forma mais sofisticadas, o olhavam com desdém, franzindo o nariz. Outras, olhavam com curiosidade, mas todas desviavam do seu caminho.

    Ele parou, encarando o endereço no bilhete escrito por Cassandra, e então comparou com o letreiro dourado na fachada da alfaiataria.

    Atelier de Lumélia… Tem que ser aqui.

    As portas eram de madeira clara polida, com janelas amplas exibindo manequins com roupas finas, e tecidos cuidadosamente dobrados. 

    Assim que entrou, percebeu que o interior era ainda mais bonito do que a fachada.

    O ar cheirava a madeira e um toque adocicado de algum tipo de perfume. Manequins de madeira exibiam vestidos e ternos impecáveis, alguns com bordados delicados e elegantes. 

    Prateleiras guardavam tecidos finos enrolados em cilindros, com cores que iam de tons pastéis a azuis profundos. 

    Mas haviam prateleiras superiores, que guardavam tecidos mais grossos e escuros, lembrando escamas.

    Antes que pudesse absorver tudo, um borrão azul-acinzentado cortou o ar. Uma ave elegante, maior que uma calopsita comum, voou em sua direção. 

    Ergueu os braços, pronto para se proteger, mas a ave passou reto, pousando com graça em um cabide de roupas. Seu olhar curioso, quase inteligente, parecia avaliá-lo, como se já conhecesse o caráter do intruso.

    — Não esperava receber clientes tão cedo — disse uma voz feminina, doce, mas firme. Um sorriso iluminava o rosto dela, mas ao encarar Hazan de cima a baixo, a expressão murchou. — Vejo que você está no lugar errado. Isto não é uma ferraria.

    Ele franziu as sobrancelhas.

    — Estou no lugar certo. E já tenho um bom ferreiro.

    A mulher surgiu de trás do balcão. Pequena, quase delicada à primeira vista, mas com postura firme e segura. 

    Seus cabelos negros, lisos e brilhantes, combinavam com o batom escuro dos lábios, enquanto os olhos âmbar penetrantes examinavam cada detalhe ao redor sem hesitar.

    O que tornava sua presença ainda mais impressionante não eram apenas a elegância ou o olhar feroz, mas as marcas de sua história: uma grande cicatriz de corte atravessava seu belo rosto, do canto da boca até a têmpora, e o braço direito que lhe faltava.

    O lado ausente não diminuía em nada sua presença. 

    A manga correspondente era presa ao ombro por uma fita de couro trançada, que cruzava diagonalmente o peito e terminava em um pequeno nó decorativo na lateral, com detalhes em renda preta e vermelho discreto. 

    Hazan tirou da bolsa sua velha camisa junto com o bilhete.

    — Cassandra me enviou.

    No instante em que o nome foi proferido, a ave soltou um grunhido irritado e atacou, bicando sua cabeça várias vezes. 

    — Ei! Porcaria, é assim que tratam um cliente aqui!? — reclamou o lutador, balançando os braços na tentativa de afastar o animal irritado.

    — Brisa! — Lumélia chamou, firme. 

    A ave voltou, pousando em seu ombro e recebendo alguns grãos como recompensa.

    — Me perdoe por isso, ela não esperava ouvir esse nome tão cedo. — Ela o encarou. — E eu também não. Você foi enganado. Cassandra não tem direito de me cobrar favores.

    Hazan não se moveu. Apenas jogou a bolsa de moedas sobre a mesa e tirou a camisa da bolsa.

    — Então me diga quanto vai cobrar pra cuidar disso aqui.

    Lumélia olhou para as moedas, o interesse piscando em seus olhos por um instante, mas rapidamente substituído pelo profissionalismo. 

    Ela encarou o estado patético em que estava algo que sequer podia ser chamado de roupa.

    Rasgos em várias partes, buracos, e a cor praticamente desbotada. Aquilo parecia mais com um pano de chão de uma taverna qualquer do que algo que poderia ser vestido.

    — Tire a camisa — pediu a moça, fazendo um gesto com a mão.

    Hazan franziu o cenho por um instante, mas obedeceu. Ela soltou um assobio baixo ao observar as cicatrizes e o físico marcante dele.

    — A maioria dos nobres tem vergonha de mostrar o corpo quando tiro as medidas… mas você… não — comentou Lumélia, puxando a fita métrica com precisão sobre o peito de Hazan. — Estica os dois braços, e mantenha-os assim. Nossa, você tem braços fortes, garoto. Só precisa comer mais.

    — Eu como o suficiente, garota.

    — Quieto. Tenho idade para ser sua mãe — retrucou ela, arqueando uma sobrancelha.

    Brisa, empoleirada no ombro de Lumélia, soltou um grunhido baixo e rápido, como se estivesse rindo da provocação. 

    Num movimento ágil, a ave voou até a outra ponta da fita métrica, esticando-a com precisão, ajustando exatamente o ângulo que Lumélia precisava. 

    Hazan piscou, surpreso. Era como se a ave soubesse cada passo do processo, antecipando os movimentos da dona.

    Lumélia anotou as medidas em seu caderno com a mão esquerda, enquanto Brisa segurava firmemente a fita com as garras, mantendo tudo esticado sem vacilar.

    — Espere um minuto… — murmurou ela, franzindo a testa e olhando ao redor — Tenho certeza que estava por aqui…

    Deixou o lutador com os braços estendidos no meio da sala e entrou num corredor de manequins. Mas sua ave foi mais rápida, voando pelo corredor e tirando dentre os cabides uma camisa preta. 

    — Conforme as suas medidas, essa aqui deve bastar. Seda importada de Sohen. Duas moedas de ouro.

    — Não. Só quero que restaure esta. — Hazan apontou para a camisa velha.

    Lumélia revirou os olhos.

    Maldita Cassandra… Some por anos, finge não me conhece, e acha que pode me conquistar enviando um bonitão desses no meu horário de trabalho? Que piada.

     — Escuta, garoto, eu sou o tipo de pessoa que prefere fazer as coisas com perfeição. Mas fazer isso com essa camisa significa perder um tempo muito precioso. Então por que exatamente eu deveria aceitar o seu pedido? 

    Hazan inclinou a cabeça, um sorriso provocador nos lábios.

     — Então você tá me dizendo que não consegue?

    Ela estreitou os olhos, uma ponta de sorriso feroz surgindo.

    — Sou totalmente capaz. Mas não vale a pena desperdiçar meu trabalho em algo que não trará retorno.

    Nenhum dos dois pretendia ceder. E, enquanto se encaravam, um ruído de algo rachando ecoou. Um som baixo, mas notável o suficiente para Hazan prestar atenção.

    Ele olhou para cima a tempo de ver a prateleira pender, pesada demais, ameaçando cair sobre Lumélia. 

    Num movimento quase automático, Hazan avançou. Suas mãos se fecharam ao redor da madeira antes que a prateleira pudesse despencar totalmente. 

    O peso era considerável, mas ele segurou firme, sentindo a madeira ranger sob a pressão.

    Lumélia recuou um passo, o coração disparado, mas não deixou de lançar-lhe um olhar misto de surpresa e irritação.

    — Você… — começou ela, mas Hazan apenas franziu as sobrancelhas.

    — Você se machucou? — Ele perguntou, num gesto natural, reposicionando a prateleira com cuidado. O ranger diminuiu à medida que a madeira se encaixava de volta.

    Aquela é uma prateleira reforçada e de encaixe… Tinha vários tecidos pesados ali, que vieram de diversos tipos de animais dos campos bestiais. Só a madeira em si pesaria pelo menos uns sessenta quilos, e ele a pegou com uma única mão…

    Após um momento de silêncio, Lumélia respirou fundo:

    — Venha comigo. Se eu gostar do trabalho que realizar para mim, farei qualquer pedido seu de graça. 

    Hazan estreitou os olhos.

    — Tem caroço nesse angu, senhora.

    — Eu sou a única nessa cidade inteira que iria aceitar um pedido tão absurdo, de qualquer maneira.

    Ele deu de ombros.

    — Beleza… vou confiar dessa vez, mas adianto que odeio golpista.

    Lumélia sorriu, com o olhar ainda afiado mostrando que não se deixava abalar tão facilmente.

    — Você vai me mostrar o que sabe fazer de melhor.

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