Índice de Capítulo

    Barracas coloridas se amontoavam pelos becos, o cheiro de carne assada e vinho barato se misturava ao incenso da Igreja de Unitas, onde o Sacerdote Elios e Almira ofereciam orações e uma porção de comida para cada cidadão.

    Os risos das crianças se perdiam no burburinho da multidão.

    A Praça Central estava especialmente cheia naquele dia.

    No centro, um grande palco de madeira erguia-se sobre todos, cercado por bandeiras azuis com a pena azul, o emblema da guilda. 

    Era ali que, ao cair da tarde, aconteceria a abertura do festival.

    Durante o dia, outros espetáculos ocupavam o espaço. 

    Atores mascarados encenavam feitos de Leônidas Ignis, o herói da Era de Prata. 

    Um dos dramas mais aplaudidos contava a lenda do dia em que ele marchou sozinho contra dez mil soldados do Reino de Solud, e não matou ninguém. 

    Em vez disso, subjulgou-os com um poder tão esmagador que nenhum ousou erguer a espada. 

    Mas todos sabiam que aquilo era apenas o prelúdio. 

    A verdadeira atração aguardava coberta por um véu de seda no centro do palco: o Obelisco do Despertar. 

    Um monólito de cristal translúcido de cor azul-céu, com uma base de madeira escura onde estavam entalhados vários símbolos mágicos.

    Ao entardecer, o sino da igreja tocou e a multidão silenciou. O véu foi retirado, revelando o Obelisco em toda sua glória. 

    — Chegou a hora! — anunciou Calista, com um sorriso que iluminava seu rosto. — Os jovens promissores da nossa cidade finalmente serão revelados!

    Ela apontou para o Obelisco à frente. — Este é um reagente mágico. Quando você encosta sua mão, as runas ressoam com suas veias de mana ou aura, medindo seu potencial.

    — Se tiver potencial para aura, uma constelação aparecerá na superfície! Se for para mana, serão círculos mágicos! O nível de detalhes dos desenhos revela o quão alto é o seu talento! — Calista exclamou, estendendo os braços.

    Ela deu uma risadinha astuta, aproximando-se dos jovens com aquele sorriso de quem já tinha visualizado várias moedas caindo em seu bolso.

    — Ah, e vejam só — continuou, piscando para um grupo — se algum de vocês quiser assinar um contrato de exclusividade como desbravador… digamos, da Guilda Pena Azul… não custa nada me avisar, temos benefícios exclusivos que podem ser discutidos em particular…

    Alguns jovens ficaram tentados pela proposta daquela mulher esbelta.

    Com um estalo de dedos, Calista voltou para o centro do palco improvisado do Obelisco, como uma caçadora que tinha acabado de lançar a isca.

    Um a um, os jovens de Ariasken subiam no palanque. O cristal se iluminava, círculos e constelações surgindo conforme afinidades se revelavam. 

    A cada reação intensa, olheiros de guildas de outras cidades surgiam iguais abutres, oferecendo promessas tentadoras: treinamento em bibliotecas maiores, armas mais raras, bolsas de estudo em academias distantes.

    Calista deixou que Mirna gerisse o Obelisco enquanto observava de longe com um sorriso quebrado.

    — Todo ano a mesma coisa… A gente investe, prepara o festival, dá tudo… e quem colhe são eles.

    Agnis suspirou, assentindo:

    — Guildas maiores sempre vão ter mais a oferecer. Podemos ser fortes, mas o que realmente importa é a estrutura. Jovens são atraídos pelas oportunidades e curiosidade de conhecer o mundo.

    Calista, porém, manteve o olhar firme, um sorriso orgulhoso escapando:

    — Não importa. Esse ano ganhamos Hazan e Aurora. Graças a masmorra que eles limparam mês passado, obtivemos grandes lucros, hehe!

    Então foi a vez dos irmãos.

    Aspen e Lunna discutiam baixinho, cutucando um ao outro para decidir quem subiria primeiro.

    Lunna, com um olhar desafiador, se adiantou.

    Ao encostar a mão no Obelisco, uma explosão de luz percorreu o cristal. 

    Não apenas círculos azuis se formaram, mas também constelações douradas, ambas brilhando com intensidade.

    O público ofegou. Afinidade alta com aura e mana.

    A dragoniana tinha o luxo de escolher, e seria abençoada em ambos os caminhos.

    Por um instante, as pessoas não sabiam como reagir.

    Alguns franziam a testa, trocando olhares desconfiados, lembrando-se de antigos preconceitos contra dragonianos. 

    Outros permaneceram em silêncio, braços cruzados, sem deixar transparecer se admiravam ou apenas observavam, esperando um deslize.

    No ar pairava aquela tensão sutil: o brilho da jovem atraía olhares e esperança, mas também desconfiança e julgamento.

    Quando Aspen subiu, o coração parecia preso à garganta. 

    Queria ser um pujante, queria sentir o calor da aura queimando em si. 

    Eu já me decidi! Se eu quero proteger aqueles que são importantes para mim, a aura é o melhor caminho!

    Encarou Lunna uma última vez, que retribuiu com um sorriso caloroso. Com a confiança renovada, estava pronto para o passo mais importante.

    Mas ao encostar a mão, o cristal se incendiou em círculos mágicos detalhados que surgiram em várias camadas.

    E lá no canto inferior, uma pequena constelação praticamente apagada.

    A praça vibrou com gritos de euforia: mais um mago promissor para Ariasken! 

    Mas Aspen desceu cabisbaixo, os olhos fixos no chão.

    No instante em que tocaram a madeira do palanque, olheiros o cercaram, junto de Lunna, disputando quem ofereceria mais. 

    Aspen respirava pesado, e sequer conseguia ouvir tantas propostas de uma vez.

    Talento para magia…? Eu sei que devia ficar feliz, mas… eu queria ser um pujante. Por que sou tão infantil?

    Ele engoliu em seco, sentindo o peito apertar. A respiração veio rápida e curta, quase sufocante, enquanto suas mãos tremiam.

    O coração batia cada vez mais rápido, e a visão parecia estreitar, focando apenas nos olheiros à sua frente.

    — Aspen! — Lunna tentou se adiantar, mas os homens não deixaram, fazendo propostas apressadas, palavras voando de todos os lados. — Ei, meu irmão está passando mal! — tentou ela, mas ninguém parecia disposto a parar.

    A pressão só aumentava, e Aspen recuava mais, assustado com tanta pressão.

    Então, um som pesado cortou o ar.

    Scrash!

    Todos se viraram. Hazan estava lá, firme, com um olhar ameaçador. O chão em que tinha pisado havia afundado consideravelmente.

    — Acho que ele precisa de um pouco de espaço agora — disse com o tom calmo. — Seria educado aceitarem o aviso.

    Os olheiros trocaram olhares, hesitaram, e finalmente deram um passo para trás, deixando o espaço que Aspen precisava. 

    Ele deixou escapar um suspiro longo, o corpo relaxando aos poucos, e Lunna correu para ao lado dele, segurando sua mão com firmeza.

    Hazan pôs a mão no ombro do jovem.

    — Eu sei o que você queria. E sei o que está sentindo. Mas escuta: essa máquina mixuruca não tem como medir quem você é de verdade.

    — Você… acha mesmo? — murmurou Aspen, quase sem voz.

    Hazan sorriu de canto.

    — Eu tenho certeza.

    Ele subiu no palanque, e todos observaram. O tahtoriano dos rumores ia finalmente revelar sua afinidade. 

    Até os olheiros, antes irritados com sua insolência, aguardaram em expectativa.

    Hazan encostou a mão no cristal.

    Nada.

    Nem uma fagulha, nem um reflexo. O Obelisco permaneceu morto e frio, como se rejeitasse sua presença.

    A multidão explodiu em risadas. Alguns zombaram, outros balançaram a cabeça em pena.

    — Nem aura, nem mana…

    — Que desperdício de tempo!

    — E esse cara era o arrogante!?

    Eles rangeram os dentes, frustrados por perder tempo com alguém assim. Mas nos bastidores, Calista e Agnis ficaram imóveis. 

    Ambos lembravam bem da luta que Hazan teve contra Hadrian no teste de admissão da guilda. E aquilo não podia ser explicado por um mero Obelisco.

    O rapaz desceu tranquilo, ignorando os risos. Voltou até Aspen, deu um leve soco amistoso no ombro dele e disse, rindo:

    — Viu? Máquina mixuruca.

    Aspen finalmente ergueu o olhar. E sorriu.


    Um homem estava de joelhos, forçado para baixo pelos funcionários da Confraria. Lágrimas escorriam de seus olhos.

    Tentava falar, suplicava com desespero, mas sua boca não emitia som algum. 

    Suas mãos agitavam-se em gestos desesperados, tudo em vão.

    À sua frente, uma figura observava em silêncio. Alto, envolto em um sobretudo azul-escuro bordado de dourado, e com o rosto oculto por uma máscara negra onde estava presente o símbolo de uma balança quebrada. Todavia, seus cabelos prateados e longas orelhas estavam visíveis.

    Quando o homem começou a gesticular freneticamente, a figura inclinou levemente a cabeça.

    — Sim, eu entendo. Perder a voz é desesperador, Peter. Confesso… eu mesmo não suportaria. Afinal, minha fala é a minha maior ferramenta.

    O homem parou por um instante. Seus olhos brilharam com uma fagulha de esperança.

    Então, o enluvado ergueu a mão e abriu o tomo que repousava sobre a mesa.

    Na página amarelada, a assinatura de Peter ardia em vermelho vivo.

    — Você não assinou aqui, é verdade.

    Ele deslizou os dedos pela assinatura que queimava igual brasa.

    — Mas teve que colocar seu nome na lista de convidados na recepção, não é? Infelizmente para você… aquilo também é uma extensão do meu Codex.

    O desespero cresceu nos gestos do homem. Suas mãos falavam da esposa, da filha, da vida que ficaria para trás. O livro se fechou em um estalo entendiado.

    — Por que fez isso, hein, Peter? Você é um comerciante rico, de bem com a vida… A Confraria te recebeu de braços abertos. Estávamos ansiosos para continuar lhe servindo por anos duradouros.

    O homem começou a se debater com mais força. A figura pairou seus olhos sobre uma das páginas de seu livro.

    — “Nenhum membro da Confraria poderá transmitir, por fala ou sinal, conhecimento a terceiros. Caso o intento seja feito, sua voz será anulada, e sua assinatura brilhará em um vermelho carmesim.”

    O mascarado ergueu o indicador na direção do nobre que se debatia e chorava. Um feixe de luz cintilou em seus dedos, disparando um míssil mágico. 

    Swin!

    A cabeça do homem foi atravessada em silêncio absoluto, deixando apenas uma gota de sangue respingar na bochecha da máscara. 

    O corpo caiu mole, arrastado sem cerimônia pelos funcionários.

    O escritório voltou a ser apenas silêncio e madeira. Até que o teto rangeu.

    De cabeça para baixo, atravessando as tábuas como se fossem cortinas, surgiu Vanitas. 

    A cartola branca girou no ar antes de ele despencar de cara contra o assoalho polido. 

    O terno branco amassou-se, e a máscara dividida entre o riso e a tristeza se ergueu para encarar seu companheiro, conhecido como “O Pacto”.

    — Maldição… sempre difícil aprender uma habilidade nova — resmungou, coçando o nariz.

    O Pacto não respondeu. Apenas fechou lentamente o tomo, e limpou o sangue da máscara com um pano.

    — Onde esteve? — perguntou por fim, com a calma de quem já sabia a resposta, mas exigia a confissão.

    Vanitas ajeitou a cartola com humor.

    — Ah, sabe como é… resolvendo umas besteiras que eu mesmo causei. Ataquei uns soldados dos Ignis por diversão, e eles nem eram inimigos, então… achei educado curá-los depois! E aproveitei para aumentar os níveis de corrupção na cidade também!

    Os olhos dourados por trás da máscara brilharam de desaprovação.

    O Silêncio só aceitou você por causa da sua Gah’na. Mas até agora, não demonstrou utilidade alguma. Esta é sua primeira missão, Vanitas. Esforce-se.

    Vanitas sorriu, mesmo com a metade triste da máscara pesando sobre o rosto. 

    Seus olhos brilharam em um verde fantasmagórico.

    — Vou demonstrar, não se preocupe. Já tenho algo em mente.

    Ele olhou para o nada, como se enxergasse muito além das paredes de madeira.

    — Olha só, temos companhia.

    Em um instante, desapareceu igual fumaça, o branco da cartola e do terno desbotando até desaparecer.

    A chama das velas oscilou na sala, como se até o ar tivesse sentido a presença que se aproximava.

    O trinco da porta rangeu e duas figuras adentraram o escritório. A chama das velas oscilou com a mudança do ar. 

    Darius Erienval entrou primeiro, com Mirielle logo atrás, ambos envoltos por sombras projetadas pelas cortinas pesadas. 

    O jovem mestre ergueu o queixo.

    O Pacto não moveu um músculo. Permaneceu sentado atrás da mesa de carvalho, com o tomo fechado, as mãos enluvadas apoiadas sobre a madeira. 

    Apenas os olhos dourados, brilhando por trás da máscara negra com a balança quebrada, observavam.

    Darius não se deu ao trabalho de se apresentar.

    — Vim tratar de negócios. — Sua voz ecoou na sala abafada. — Preciso dos homens da Confraria. Para um assunto pessoal. O preço não é problema. Basta me dizer a quantia em moedas de ouro.

    Um silêncio breve. O Pacto ergueu o queixo, a máscara cintilando à luz da vela.

    — Eu não seria tão inconsequente ao ponto de cobrar pagamento do jovem mestre dos Erienval. — A voz era calma, teatral, cheia de melodia e veneno. — Isso seria… indelicado.

    A bajulação, sutil, fez os lábios de Darius se curvarem em um meio sorriso satisfeito.

    — Inteligente — respondeu, cruzando os braços. — Ao recusar o ouro, significa que eu ficarei em dívida. Um favor, talvez, a ser pago no futuro.

    O mascarado inclinou a cabeça, como se apreciasse a sagacidade.

    — Sempre à frente das intenções dos outros — murmurou. — O jovem mestre enxerga o jogo antes das peças se moverem.

    Com um movimento fluido, retirou do bolso uma enorme moeda dourada. O metal era pesado, e na superfície gravava-se o símbolo de uma balança perfeita.

    Ele a lançou sobre a mesa. O tilintar reverberou pelo escritório.

    — Mostre isso, e os homens obedecerão.

    Darius pegou a moeda, examinando-a com deleite.

    — Farei como diz. Escolherei alguns… e o favor será devolvido. Palavra dos Erienval.

    Sem se curvar, sem despedida, virou-se e saiu com Mirielle. A porta fechou-se atrás deles, devolvendo a sala ao silêncio.

    Vanitas emergiu de novo do nada, materializando-se no canto como uma mancha de fumaça que se moldava em carne e pano. Estalou os dedos, divertido.

    — Então vai deixá-lo levar quantos homens quiser? Não parece… econômico.

    O Pacto abriu devagar o tomo. A assinatura fresca, ardendo em azul, destacava-se no pergaminho. O nome: Darius Erienval.

    — Não me preocupo. O maior erro dele foi assinar a lista de presença na recepção. 

    Do lado de fora, em um dos salões da Confraria, homens encostados em mesas e pilastras ergueram o olhar quando Darius mostrou a moeda. Nenhuma palavra foi necessária. Os símbolos falam mais alto que ordens. 

    Eles se levantaram, obedientes.

    Mirielle, em silêncio até então, aproximou-se dele, a expressão tensa.

    — Por que ir tão longe contra Hazan e Aurora? — perguntou, a voz baixa, como se temesse ser ouvida até pelas paredes.

    Darius virou o rosto devagar. Um brilho de desprezo acendeu em seus olhos.

    — E por que eu precisaria de um motivo para esmagar insetos?

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