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    A Selva das Mil Batalhas era um território tão indispensável para a cidade de Ariasken quanto era temido por seus habitantes.

    Para o povo, aquela floresta era uma dádiva e uma maldição: fornecia madeira de diversos tipos, ervas raras, e caças que sustentavam a economia local, mas cada passo para dentro significava apostar a própria vida.

    Nas bordas externas, caçadores e lenhadores arriscavam-se sob constante vigilância.

    Podiam extrair recursos, sim, mas sempre com um olho na tarefa e o outro varrendo as sombras, atentos aos predadores que espreitavam o descuido.

    Já no coração da selva, a história era outra.

    Bichos colossais e monstros selvagens travavam combates sem fim, disputando território numa dança sangrenta que nunca cessava.

    O chão estava sempre regado de cicatrizes: árvores tombadas, clareiras abertas à força, e ossos espalhados de antigas batalhas.

    Foi dessa constante carnificina que nasceu o nome Selva das Mil Batalhas.

    Mas, entre todos os horrores que respiravam aquelas sombras, havia um que se erguia acima dos demais.

    Uma fera cujo nome sozinho já bastava para gelar o sangue até dos caçadores mais endurecidos.

    O Korgar.

    Diferente das outras feras da selva, o Korgar não aceitava companhia. Se por acaso cruzasse com um da própria espécie, só existia guerra.

    Dois monstros disputando até que apenas um permanecesse vivo.

    Na fase adulta, superava os oito metros, com uma pelagem ferruginosa que se espalhava sobre toda a sua carcaça.

    Sob aquele manto denso, escondia-se uma verdade mais brutal: escamas negras, que os caçadores e mercadores locais cobiçavam para vender, ou forjar lâminas e couraças.

    E quando alguém conseguia remover a pele do monstro, o que encontrava era ainda mais perturbador: cicatrizes.

    Cicatrizes por toda parte, causadas por inimigos que tinham falhado em derrubá-lo.

    Esse era o peso do Korgar: a solidão. Um tirano condenado a reinar sozinho.

    Se não dominava a selva inteira, não era por falta de força, mas porque não havia espaço para mais nada onde ele passava.

    O aviso veio antes da visão.

    Um estrondo abafado percorreu o chão, cada passo fazendo a terra vibrar. As árvores balançaram, e os pássaros fugiram em disparada.

    Então, um baque violento, algo explodindo entre os troncos, derrubando galhos grossos e espalhando folhas pelo ar.

    Um corpo rolou pelo chão, arrastando poeira antes de parar em meio à clareira. Era Edrin, com a respiração ofegante e os olhos castanhos-claros faiscando de adrenalina.

    A armadura de couro, reforçada com detalhes em metal vermelho, estava arranhada em mais de um ponto.

    Ele se ergueu de um salto, cravou os pés no chão e fechou o punho em torno da espada, a lâmina tremendo por conta do impacto.

    — Marcan! Baelor! — bradou, cuspindo a poeira da boca. — Sigam com o plano!

    O rugido que veio atrás dele não foi apenas som. Foi como se a própria floresta se dobrasse, como se o ar se curvasse em reverência ao predador que estava prestes a emergir.

    Foi então que o chão gemeu.

    Primeiro, um estalo abafado, depois vários, até que fissuras se abriram pela floresta.

    A terra vibrou sob seus pés e, em seguida, estacas de pedra começaram a se erguer, uma após a outra, rompendo o solo como presas afiadas.

    — Merda! — Edrin arfou, desviando entre os espinhos improvisados. Seu corpo se movia rapidamente, saltando de pedra em pedra, tentando alcançar o galho de uma árvore ainda de pé.

    Estendeu a mão, buscando equilíbrio.

    Erro fatal.

    Do breu das árvores, algo avançou. Não era apenas rápido, mas parecia estar esperando aquela oportunidade. O vulto monstruoso explodiu para frente, e a mandíbula colossal se abriu, capaz de engolir vários homens inteiros em um único abocanhar.

    Nhac!

    Os dentes serrilhados se fecharam, mas não na carne de Edrin.

    Uma torrente de água o atingiu em cheio, arremessando-o para longe segundos antes do impacto. O jovem rolou pelo chão, tossindo, mas vivo.

    Baelor permanecia alguns passos atrás, o braço estendido, os cabelos pretos desgrenhados colados ao rosto suado.

    Diante de sua mão, um círculo mágico azulado se desvanecia em partículas de luz.

    — Te peguei! — ele murmurou, mais para si mesmo que para Edrin.

    O alívio durou pouco.

    O Korgar virou a cabeça lentamente, até que o peso de seu olhar caiu sobre Baelor. Então, a fera ergueu um dos longos braços, os músculos se contorcendo sob a pelagem escura, e o lançou em sua direção com a força de um desmoronamento.

    — Por Unitas…! — Baelor arregalou os olhos e se jogou de lado, rolando pelo solo rachado. A garra monstruosa atravessou o espaço onde ele estava um instante antes e varreu várias árvores como se fossem apenas grama alta.

    Ele mal teve tempo de respirar quando uma segunda garra já vinha em sua direção.

    BAAAM!

    Um impacto metálico ressoou.

    Baelor abriu os olhos e, diante de si, encontrou uma muralha ruiva: Marcan, os cabelos desgrenhados balançando com o choque, segurando um escudo enorme contra a pata do monstro.

    — Ninguém cai comigo aqui! — rugiu Marcan, com a voz carregada de esforço.

    As veias saltavam em seus braços, o martelo de batalha na mão livre já pronto para contra-atacar.

    Ele girou os pés no chão, tentando forçar a pata da criatura para cima, abrir espaço para o golpe seguinte.

    O Korgar, porém, respondeu com sua própria fúria.

    Roooooar!

    O rugido não era apenas som; era um trovão que reverberou pelo peito dos três guerreiros, fazendo o ar vibrar. Com uma brutalidade animalesca, a fera empurrou Marcan e Baelor pelos ares.

    O mundo girou. Terra, folhas e o céu se misturaram até que, num baque doloroso, os três rolavam juntos no limite da floresta, já nos Campos Bestiais.

    O matagal alto os cercava, agitando-se violentamente sob o vento.

    Ofegantes, arranhados, um se apoiando no outro, eles se levantaram devagar, reunindo o fôlego. O silêncio repentino da selva era mais aterrador do que qualquer rugido.

    Então, vieram os passos. Cada um deles um trovão que fazia o solo estremecer. As árvores não eram obstáculos: o Korgar simplesmente as despedaçava, abrindo caminho com a brutalidade de uma força imparável.

    Quando finalmente rompeu a linha da floresta e adentrou os Campos Bestiais, o trio o viu em sua plenitude. O monstro ergueu-se sobre as patas traseiras, e nesse instante, o céu desapareceu atrás dele.

     


    Escritório da Marquesa Beatrice

    Haviam brasões escarlates nas tapeçarias, tochas ardendo com chamas controladas, e um calor constante no ar. No centro, uma grande mesa de madeira negras, onde a chama refletida dos candelabros dançava sobre o verniz.

    Beatrice repousava em sua cadeira alta, os dedos cobertos por anéis tamborilando no braço do assento. O sorriso nos lábios não apagava o brilho avaliador em seus olhos.

    — Ronan… — A voz dela saiu mansa, mas afiada igual um punhal. — Colocar Marcan, Baelor e Edrin em uma missão dessas, logo depois de um coma? Não acha… imprudente? Ou será que o capitão da Guarda Escarlate decidiu brincar de dado com as vidas que deveria proteger?

    O calor parecia realçar a cor dos olhos castanhos de Ronan, que ardiam em resposta à acusação velada. Ele não desviou o olhar, nem esboçou defesa apressada; apenas deixou um leve sorriso escapar.

    — Imprudente? — repetiu, quase rindo. — Marquesa, se tivesse visto como aqueles três lutam juntos… não estaria me dizendo isso.

    Ele deu alguns passos pela sala, a luz do fogo desenhando linhas em sua armadura escarlate.

    — Quando me trouxe para cá, confesso que me custou tomar o comando. Não por inexperiência, mas porque aqueles três, em conjunto, eram um muro que até eu tive dificuldade de atravessar. — Ronan ergueu o queixo, a voz carregada de uma confiança que parecia incendiar o ar. — Coordenação. Instinto. Uma ligação que vai além de espada ou escudo.

    Beatrice arqueou uma sobrancelha, interessada, embora o sorriso ainda sustentasse um ar de desdém.

    — E ainda assim, são apenas homens. Frágeis. Carne que se rasga fácil.

    Ronan inclinou a cabeça, os lábios curvados em um trocadilho que soou mais como sentença:

    — Lobos também são carne, Marquesa. Mas quando caçam em sincronia… até a mais temida fera da selva aprende a temer o som de suas presas fechando.

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