Índice de Capítulo

    Alice estava parada ali, hesitante, os cabelos castanhos soltos balançando na brisa. Seus olhos castanhos claros percorriam o ambiente com apreensão, e uma gota de suor descia pela bochecha. 

    Vestia um vestido branco simples, ajustado à cintura por um cinto de couro, e apoiava uma das mãos no ombro, como se não tivesse certeza se deveria realmente estar ali.

    — Temos uma invasora! — gritaram Rashid e Zara em coro, pulando dos bancos e correndo na direção dela.

    Alice reagiu com rapidez: abriu os braços, pegou os dois no ar e rodopiou junto deles. — Isso mesmo! Vocês são meus reféns agora! — disse, entrando na brincadeira.

    Os gêmeos gargalharam, fingindo desespero.

    Lunna, porém, não parecia compartilhar da diversão. Aproximou-se de Hazan, beliscando seu braço com a ponta dos dedos. — O que ela tá fazendo aqui? — perguntou num sussurro áspero, a sobrancelha arqueada em desconfiança. — Minha intuição feminina está tinindo…!

    Hazan piscou, confuso, mas entrou no jogo. — Sei lá. Acho que ela me chamou pra ir em algum lugar. Dança Korgar, eu acho?

    — Você quis dizer Dança Lunar? — Lunna quase engasgou, os olhos se arregalando. — Ela te convidou pra dançar com ela!?

    Hazan bocejou sem pressa. — Ah, então é um baile… Tanto faz. Eu não vou.

    As palavras dele ficaram suspensas no ar, ecoando na cabeça de Lunna.

    A Dança Lunar. Só de pensar nisso, sentiu um frio estranho no estômago.

    Era a melhor parte do Festival do Despertar, o momento em que jovens da cidade se reuniam num palanque de madeira sob as estrelas, embalados por alaúdes e vozes de bardos. 

    As noites nos festivais sempre eram encantadas, recheadas de momentos em que donzelas conheciam seus heróis predestinados.

    Ou assim diziam os livros de romance que roubava da prateleira de Aspen quando ninguém via.

    Determinada, cruzou os braços e encarou Hazan. — Você vai ao evento.

    — Não vou. — A resposta veio rápida, desinteressada.

    No mesmo instante, os gêmeos se jogaram sobre Alice, que caiu teatralmente no chão. — Conseguimos! — gritaram, triunfantes. — Ganhamos da invasora!

    — Oh, céus! — Alice gemeu, cobrindo os olhos com uma mão. — Tão fortes! Vocês podem perdoar essa pobre invasora ignorante? Ela só veio resgatar um amigo…

    — Amigo ou amado? — cutucou Zara, com um sorriso malicioso.

    Alice congelou, as bochechas corando de leve. — I-isso…

    — Tá bom, chega, seus pestinhas! — Aspen surgiu de repente, bagunçando os cabelos dos irmãos. — Vocês já encheram a paciência dela.

    — Nunca! — Rashid respondeu, pisando no pé dele e saindo correndo com Zara. Os dois mostraram a língua antes de sumirem atrás da porta da casa.

    Aspen suspirou, mas estendeu a mão para ajudar Alice a se levantar. — Esses pestinhas… — murmurou, balançando a cabeça.

    Alice sorriu de canto, pronta para agradecer, quando uma voz cortou o ar:

    — Se é guerra que você quer, é guerra que você vai ter! — Lunna se levantou, cerrando os punhos.

    Alice e Aspen se entreolharam, confusos, e foram em direção a Hazan.

    — Hazan…? — Alice chamou, jogando a mecha do cabelo atrás da orelha. — Eu vim muito cedo?

    Hazan ergueu a mão num gesto preguiçoso. — Não, foi bom você ter vindo agora. Na verdade, tenho algo que eu quero te dizer…

    — Ele quer dizer que tá muito animado pro evento hoje! — Lunna se enfiou na frente, atropelando a fala.

    — Evento? — Alice piscou, surpresa. — Você quer dizer a Dança Lunar? Mas… só acontece amanhã à noite.

    Lunna travou por um segundo. Ela tinha esquecido completamente desse detalhe.

    — É que ele tá ansioso, hehe… — improvisou, rindo nervosa. 

    — Lunna, isso-

    Antes que o lutador terminasse, ela tampou a boca dele com um dedo e sorriu forçadamente para Alice. — Enfim! O que te traz aqui hoje?

    Alice pigarreou. Dava pra notar que algo estava errado, mas decidiu seguir o curso. — Bom… eu e Hazan combinamos de ir até uma alfaiataria juntos, então-

    — Que ótimo! — Lunna interrompeu de novo, as mãos entrelaçadas de empolgação falsa. — Posso ir com vocês?

    Era difícil recusar quando os olhos esmeraldas da dragoniana brilhavam tanto. 

    — M-mas é claro, Lunna. Eu adoraria sua companhia.

    — Então não vamos perder tempo! — Lunna agarrou o braço de Hazan, puxando-o com força.

    — Ei, calma aí, eu ainda tenho aula… — Hazan olhou para o quadro negro.

    Mas Aurora e os rabiscos já tinham desaparecido.

    Ele piscou, confuso, mas Lunna nem precisou pensar duas vezes. — A aula já acabou. Vamos logo!

    E então, com um brilho travesso nos olhos, Lunna esbanjava determinação.

    Operação do Beijinho Inevitável está oficialmente em curso! Que os bardos cantem minha vitória!

    Aspen observava o trio se afastando sem dizer uma única palavra. Ele até estendeu a mão, mas desistiu de chamá-los.

    Um sorriso diabólico surgiu em seus lábios.

    — Isso significa… liberdade. — Esfregou as mãos, quase salivando. — Um dia inteiro de livros! Adeus, agachamentos! Adeus, flexões! Bem-vinda, literatura proibida! Hehehehe!

    Ele já se via recostado em uma poltrona imaginária quando um arrepio gelou sua espinha. Lentamente, virou-se.

    Virou o rosto devagar, e lá estava Cassandra, observando de longe em sua cadeira de rodas, com o mesmo sorriso doce de sempre, só que acompanhado de um olhar que dizia: “Eu sei.”

    Aspen ergueu os olhos para o céu como se pedisse misericórdia, mas apenas uma lágrima escorreu.

    — Entendi… acho que essa é a minha sina.


    Lunna fez questão de acompanhar a dupla até os bairros mais nobres da cidade.

    Inicialmente, a ideia era ir de carruagem, mas todos os cocheiros que eles abordaram respondiam com um olhar atravessado. 

    Restou ao grupo caminhar, e o tempo se esticou em quarenta minutos de caminhada.

    Longos quarenta minutos de Lunna tagarelando sem parar, entre risadas, gestos exagerados e histórias que pareciam não ter fim. 

    Mantendo a atenção em cada esquina, Hazan percebeu algo incômodo: os olhares. Eles não eram apenas curiosos ou rápidos demais. 

    O desprezo parecia mais denso do que da última vez que passara por aquelas ruas. Alguns até se voltavam para ele, mas a maior parte mirava em Lunna, e nelas havia nojo e rancor.

    E não tinha como não perceber.

    Lunna seguia sorrindo, contando histórias constrangedoras dela e de Aspen com uma naturalidade quase absurda. 

    Alice, no início, ria das histórias, comentava aqui e ali, dava conselhos; mas, aos poucos, suas risadas se misturaram a uma ponta de pena.

    As histórias de Lunna, por mais que fossem contadas de maneira divertidas, tinham um fundo de tristeza.

    Como naquela vez na fila enorme de um comerciante improvisado, esperando pacientemente para comprar peças de roupa usadas. 

    Eram roupas que jovens nobres descartavam, que alfaiatarias revendiam e que famílias humildes esperavam ansiosamente para atualizar o vestuário das filhas.

    Era a primeira vez que Lunna comprava algo com o próprio dinheiro.

    O nervosismo a consumia, mas havia também uma chama de orgulho: finalmente podia escolher algo para si. 

    Quando chegou sua vez, porém, o mundo decidiu não sorrir.

    O comerciante estreitou os olhos quando a viu se aproximar.

    — Não posso atender você, chifruda — disse, embaralhando o bigode fino. — Uma dragoniana, e ainda tem coragem de passear por aqui? Você sabe o mal que sua raça causou!

    O rosto de Lunna empalideceu, mas o sorriso gentil permaneceu firme, quase desafiando a hostilidade.

    — I-isso… eu só queria comprar algumas roupas novas, senhor…

    O comerciante bufou, dando um passo à frente como se a presença dela fosse um insulto físico.

    — E a minha reputação? Se eu vender para uma raça conquistadora, acha que os outros vão querer comprar de mim!? Deveria ter vergonha de pisar nesta rua!

    Lunna baixou a cabeça, mas não desistiu do sorriso. Sua voz era quase um sussurro:

    — E-entendo… peço desculpas, senhor.

    — Saia daqui! — rugiu ele. — Não me aborreça ainda mais, sua inconsequente sanguinária!

    As risadas começaram, baixas no início, depois crescendo. Outras garotas apontavam, cochichando sobre os chifres, a cor estranha dos olhos, a “tentativa” de se parecer humana. 

    Eram golpes invisíveis que surgiram naturalmente com o passar dos anos. Eles ajudavam a lembrá-la de um simples fato: nunca seria parte de algum lugar fora do orfanato.

    Ela permaneceu ali, firme na gentileza que parecia gravada em seus ossos.

    Naquele dia, Lunna não voltou com nenhuma peça de roupa.

    — Então… aprendi que, se quero comprar algo para mim mesma, preciso, pelo menos, de um capuz! — disse ela, tentando rir, mas havia um fio de ironia amarga na voz. — Também costumo pagar um pouco mais caro quando quero comprar alguma coisa, mas pelo menos eu tenho a minha própria mesada!

    Alice a agarrou pelo braço, olhos arregalados, lágrimas ameaçando cair.

    — L-lunna… você nunca mais vai precisar pagar para comer na pousada do meu pai! — falou com firmeza, prometendo proteção.

    A garota exibiu um sorriso confuso enquanto era abraçada.

    Quando chegaram à alfaiataria, a primeira coisa que os surpreendeu foi a desordem silenciosa: pilhas de roupas amontoadas, dobradas às pressas, tombadas contra as prateleiras.

    Hazan franziu o cenho ao notar algo impossível de ignorar, uma mão estendida para fora da pilha, crispada no ar como se implorasse por socorro.

    Brisa piava frenética, bicando os tecidos e tentando puxar a mão, mas suas asas batiam em vão, sem força suficiente para mover nada.

    Sem hesitar, avançou. Seus dedos fecharam sobre o braço escondido e, com uma força bruta que fez os tecidos voarem pelo chão, puxou a pessoa de dentro da pilha.

    Ergueu-a com tanta facilidade que seus pés chegaram a pairar alguns centímetros acima do piso.

    Era Lumélia. Cabelos pretos desgrenhados, olhar turvo, respiração entrecortada. Ainda parecia perdida no torpor, tentando entender o que acontecera.

    Quando finalmente recuperou os sentidos, ergueu o rosto para Hazan, os olhos semicerrados e as sobrancelhas franzidas.

    — Não tenho serviço para hoje — avisou primeiro a Hazan, a voz ainda rouca. Depois, seus olhos pousaram sobre Lunna com uma curiosidade quase felina. — E… você não é alguém que eu conheça.

    Lunna, com o olhar faiscando diante do interior da alfaiataria, inclinou a cabeça, o sorriso gentil nunca se desfazendo.

    — Meu nome é Lunna! Minha irmã mais velha, Liara, é uma grande fã do seu trabalho!

    Lumélia arqueou as sobrancelhas, surpresa, antes que um sorriso genuíno surgisse em seu rosto.

    — Então eu tenho uma fã? — murmurou, o brilho de apreciação suavizando suas feições. — Mande minhas saudações para ela.

    — Sim, senhora! — respondeu Lunna, quase saltitando de entusiasmo.

    Com um gesto breve, Lumélia voltou-se para Alice e assentiu.

    — Seu vestido ficou lindo. Vou trazê-lo para você… — Lançou um olhar irritado para Hazan, ainda segurando-a no ar. — Se o bonitão aqui me colocar no chão primeiro.

    Hazan soltou-a de imediato. Lumélia retribuiu com um tapa leve nas costas dele, mais debochado que amigável, antes de desaparecer pelos fundos da alfaiataria.

    — Não sabia que você e a Srta. Lumélia eram tão próximos… — comentou Alice, com as sobrancelhas desconfiadas.

    — Não somos. — Hazan suspirou, aproveitando a deixa. — E já que tocou no assunto, eu queria falar sobre o convite de antes.

    Alice inclinou a cabeça, curiosa.

    — Alice, acontece que eu não pretendo-

    Antes que pudesse terminar, uma mão pequena cobriu sua boca.

    — Shh! — Lunna sorriu nervosa. — Ele quer dizer que está ansioso para ver o seu vestido!

    Confusa e envergonhada, Alice apenas sorriu, sem saber ao certo de que forma reagir.

    Lumélia reapareceu pela porta dos fundos, chamando Alice para o provador.

    — Sua fedelha… o que tu pensa que tá fazendo? — murmurou, indignado.

    — Eu que pergunto! — rebateu ela, em sussurros apressados. — Não tem pena da Alice? Se falar o que tá planejando, vai despedaçar o coraçãozinho dela!

    — Para de drama. Isso não é o fim do mundo.

    — Pra ela vai ser!

    E antes que a discussão escalasse, Hazan a agarrou num abraço agressivo, empurrando os chifres dela para baixo. 

    Lunna respondeu puxando seus cabelos com força, e por alguns segundos pareciam duas crianças brigando no meio de uma alfaiataria.

    Quando ouviram passos vindos da sala, congelaram. Largaram-se como se nada tivesse acontecido, ajeitando roupas e expressões. 

    Mas o desalinho dos cabelos, o rubor no rosto e os olhares atravessados entregavam toda a cena.

    Alice saiu da sala com a sacola contra o peito. O rosto em chamas, e o corpo inteiro rígido.

    Seus olhos passaram pelos dois e, por um instante, a confusão relampejou em sua expressão.

    Hazan foi o primeiro a quebrar o silêncio.

    — E o vestido? — arriscou, forçando um tom casual. — Não vai me mostrar?

    Alice congelou. O rubor, que já queimava, subiu de vez até as orelhas. De repente, como se o corpo reagisse antes da mente, ela avançou um passo e socou o estômago de Hazan com força surpreendente.

    Ele dobrou na hora, o ar fugindo dos pulmões em um som ridículo.

    M-merda, bem no ponto fraco!

    Alice, tão assustada quanto ele, levou as mãos às próprias bochechas, os olhos arregalados e cheios de vergonha.

    — V-vai ter que esperar até amanhã a noite!

    Hazan ainda tentava recuperar o fôlego quando um bater de asas cortou o ar.

    Brisa mergulhou no ar, pousando na cabeça dele. O bico da ave começou a picar sem piedade.

    O pobre rapaz se retorcia sob o ataque coordenado: primeiro nocauteado pelo soco, agora massacrado por penas e bicadas.

    Brisa agarrou-lhe os cabelos com o bico e o arrastou para dentro do vestiário de Lumélia, onde manequins vestidos com casacos de veludo e vestidos alinhados em cabides disputavam espaço com tecidos finos empilhados em prateleiras.

    Quando olhou para frente, notou Lumélia sentada numa cadeira no meio da sala. Seu olhar era sério, suas pernas estavam cruzadas, e havia em sua mão esquerda uma taça de vinho.

    — Você realmente não faz ideia do que está prestes a fazer, não é? — disse Lumélia em voz baixa, os olhos semicerrados.

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