Capítulo 58 - Festival do Despertar
Hazan massageou o couro cabeludo enquanto se perguntava o que ela estava querendo dizer.
— Meu jovem, você devia aproveitar essa linda juventude…
Uma veia pulsou na têmpora na mesma hora.
— Eu não tenho o menor interesse nesse bail-
Antes que pudesse continuar, Lumélia ergueu o dedo indicador e encostou contra os lábios dele.
— Shhh.
O gesto o desconcertou mais do que a bicada da ave.
Puta que pariu, tá todo mundo me interrompendo hoje. Vou só aceitar.
— Eu também já fui como você — prosseguiu Lumélia, com um sorriso torto. — Obcecada com meus próprios objetivos, sem tempo pra frivolidades. Sempre havia uma desculpa: o trabalho, a disciplina, a perfeição… E sabe o que tudo isso me deu?
Ela ergueu o ombro, deixando à mostra o espaço vazio onde o braço faltava.
— Nem casamento eu consegui.
O silêncio pesou. Hazan piscou, genuinamente pego de surpresa.
— O quê…?
Lumélia soltou uma risada curta, sem humor.
— Às vezes, você perde mais do que ganha tentando se proteger do mundo. Essa garota… — ela apontou na direção onde Alice tinha saído — …pode ser uma das poucas oportunidades que você terá de experimentar algo diferente. Algo que não envolva luta, dor ou teimosia.
Queria discordar, mas isso não era possível. Os dias que passou com a costureira foram o suficientes para que conhecessem um pouco um do outro.
O rapaz desviou o olhar, tentando disfarçar o incômodo com sarcasmo.
— E se eu não quiser “viver algo diferente”?
— Então vai acabar que nem eu — retrucou ela, firme, mas com uma ponta de humor melancólico. — Rabugenta, sozinha e com uma parte de mim faltando. E não me refiro ao sentido literal.
Brisa piou alto, concordando com sua dona.
Lumélia riu e foi até a mesa. Pegou um embrulho em papel dourado e o empurrou contra o peito dele.
— Essa é a roupa certa para você. Só vista no dia do baile.
Hazan ainda a segurava com expressão desconfiada, prestes a aceitar o destino, quando Lumélia puxou o pacote de volta num estalo.
— Não… pensando bem, venha buscar isso amanhã à tarde. Se deixar com você, vai acabar usando como travesseiro.
— Ei! — protestou.
— Sem desculpas. — Lumélia sorriu, firme. — Se vai à guerra, precisa da armadura certa.
Quando Hazan saiu do vestiário com uma expressão cansada, Lunna já estava posicionada ao lado de Alice, como uma sentinela falante.
O rapaz suspirou fundo, encostando no batente da porta.
— Já podemos ir?
A dragoniana estava prestes a abrir a boca, quando franziu as sobrancelhas em descrença. Hazan ergueu as sobrancelhas, acenando com a cabeça.
Foi o suficiente para iluminar o rosto da garota.
Ela estufou o peito, orgulhosa de si mesma.
— Operação do Beijinho Inevitável, primeira parte, completa! — sussurrou ela para si mesma.
Alice piscou, confusa.
— Operação o quê?
— Nada, nada! — disse Lunna, rápido, voltando ao seu sorriso angelical.
Hazan virou o rosto, bufando, mas não conseguiu esconder a curva discreta de um sorriso no canto dos lábios.
Vamos ver até onde isso me leva.
No dia seguinte, estava de volta ao maldito ateliê.
Não foi sozinho, Lunna praticamente se autoconvidou, e Liara, ao descobrir para onde iam, ficou empolgada como uma criança antes de conhecer um ídolo.
— Você tem noção de que vamos ver a Lumélia? — Liara repetia a cada esquina, os olhos brilhando. — Ela é a melhor costureira da cidade! Alguns rumores dizem que ela já foi chamada pra trabalhar na capital, mas preferiu ficar aqui!
Mas quando chegaram, o lugar estava estranhamente silencioso. Nenhum som de tesoura, nenhum cantarolar de Lumélia.
Hazan entrou primeiro, chamando:
— Lumélia? A gente veio buscar…
Ninguém.
Atravessou o salão até a sala de costura, e então a cena se revelou: um amontoado caótico de roupas masculinas empilhadas, algumas ainda com linhas soltas, outras rasgadas como se tivessem sido descartadas no auge de uma frustração.
Nos cantos, papéis dourados, os mesmos que deveriam embrulhar seu traje, estavam rasgados em tiras, espalhados pelo chão.
Ele franziu as sobrancelhas, chutando uma pilha de roupas para o lado.
O que caralhos aconteceu aqui?
Foi então que uma voz baixa, quase sussurrada, vibrou pelo ateliê:
— Estou feliz que veio, Hazan.
O lutador congelou. Lumélia surgiu da penumbra dos tecidos, com os cabelos desalinhados e olheiras que denunciavam noites sem dormir. O sorriso dela era intenso, quase sinistro.
— Eu não conseguia decidir — murmurou, aproximando-se devagar. — Nada parecia suficiente para… corrigir esse seu rosto de delinquente.
Hazan arqueou uma sobrancelha.
— …isso foi um elogio?
Ela ignorou.
— Testei de tudo. Rasguei, refiz, redesenhei… mas percebi que não adiantava sem você aqui. — O olhar dela queimava de determinação. — Tire a camisa.
Hazan abraçou os próprios ombros, dando um passo atrás.
— Definitivamente não.
— Vamos, Hazan. — Lumélia deu mais um passo à frente. — Você concordou das últimas vezes. É só um corpo. Preciso das medidas certas, preciso sentir o caimento real!
— O jeito que você falou “sentir” me deu arrepios. — Ele ergueu a mão em recusa. — Não vai rolar.
Ela avançou outra vez. Hazan recuou. Ela avançou de novo, até que o inevitável aconteceu: ele tropeçou numa pilha de tecidos, perdeu o equilíbrio, e Lumélia foi junto.
O estrondo ecoou pela alfaiataria quando os dois rolaram para fora do vestiário, caindo um sobre o outro bem diante de Lunna e Liara.
O silêncio foi seguido por Liara cobrindo a boca de tanta vergonha, a imagem perfeita de Lumélia despedaçando-se bem na sua frente. Já Lunna arregalou os olhos, levando a mão ao peito como se tivesse testemunhado uma tragédia.
— N-não acredito… Lumélia, você… você traiu o movimento!
— Que movimento?! — Hazan berrou debaixo dela, tentando se livrar.
Lumélia não se importava com os comentários de Lunna. Ela deslizou suas mãos pela camisa preta, puxando-a para cima. Mas a mão de Hazan a impediu.
— Espera. — Seu rosto ficou sério. — Vamos fazer isso. Mas não na frente delas — finalizou, encarando Lunna e Liara.
Horrorizada, Lunna atingiu Hazan com um soco potente.
— SEU PILANTRA SAFADO!
Hazan não conseguia aceitar que aquela era sua penitência.
No ponto fraco de novo!?
Aquela noite estava particularmente deslumbrante. Lanternas de papel subiam aos céus, refletindo seus brilhos nas janelas das casas e no mármore branco da estátua do grande herói — o pai de Flint.
A Praça Central estava abarrotada de vida: barracas coloridas vendiam especiarias, doces caramelizados e pequenas bugigangas mágicas que pulavam sozinhas, atrações perfeitas para crianças.
Um palco de madeira recebia bardos que arrancavam aplausos e assobios com seus alaúdes e gaitas; e em cada esquina havia alguma trupe improvisando peças ou jogos.
Hazan caminhava entre a multidão, completamente sozinho dessa vez.
Onde passava, percebia olhares se voltando para ele.
Merda, porque sinto que é tudo tão apertado? Se eu precisar lutar, essa roupa vai rasgar, com certeza.
Sob a luz dourada das lanternas, sua pele morena ganhava um brilho quente, realçando a expressão naturalmente feroz que lhe dava aquele ar de intimidador.
Os olhos, de um tom alaranjado vívido, lembravam chamas em brasa, intensos demais para passar despercebidos.
Os cabelos, de um castanho-avermelhado, estavam penteados para trás de forma descuidada, mas ainda assim revelavam as linhas fortes do rosto.
A camisa de linho negra, justa nos ombros, deixava mostravam a firmeza do físico sob o tecido. O colarinho era aberto, o suficiente para revelar parte do peito e o traçado preto do seu precioso cordão.
As calças brancas se ajustavam perfeitamente às pernas, completadas por sapatos sociais de couro bem lustrados.
Os cochichos eram inevitáveis, principalmente das garotas que, coradas, mordiam os lábios ou se abanavam, mas nenhuma ousava se aproximar.
Para Hazan, tudo aquilo era mais incômodo do que lisonjeiro, parecia que carregava um cartaz invisível escrito “olhem para o estranho”.
Ela me disse para encontrá-la perto da Praça Central, mas isso é amplo demais. Não, eu vou conseguir. Foco, Hazan. Anda. Não se perde…
— Olha a promoção, olhem só! Dois espetinhos de carne suculentos por apenas uma moeda de prata! É isso mesmo, DOIS POR UM! Venham provar! — A voz se destacava no meio de tanto barulho. Entre gritos de crianças, carruagens rangendo e bardos desafinados, os ouvidos treinados de Hazan capitaram a palavra mágica: espetinhos.
— Espera, dois por um!? — exclamou, virando o corpo na direção do som.
Do outro lado da Praça Central, Alice caminhava apressada.
Eu fiquei tão ocupada me arrumando que esqueci totalmente da hora! Será que ele já está me esperando!?
Pedia licença entre as pessoas, atravessava de uma calçada para outra, perdida nos próprios pensamentos. Foi quando parou na frente da vitrine de uma loja de poções, onde o vidro transparente refletia o seu próprio reflexo.
Será que ele vai me achar bonita…? Não se engane, Alice… É do Hazan que estamos falando. O cara que só liga pra cozinha e luta. Mas… se houver, pelo menos, uma pequena chance…!
Ela tentou domar uma mecha rebelde, mas ela teimava em voltar ao lugar errado. Repetiu o movimento, sem sucesso.
Irritada, lançou um olhar rápido ao redor, garantindo que ninguém a observasse.
Lambeu a palma da mão e a passou pelo cabelo; finalmente, o problema cedeu. Com os punhos cerrados, exalava uma determinação silenciosa.
Você consegue, Alice!
— Ora, mas que temos aqui? — disse uma voz afastada, encostando-se na vitrine e olhando-a de cima a baixo. — Uma donzela perdida.
Quando olhou ao redor, notou três homens formando uma barreira ao seu redor.
Vestiam roupas finas, bordadas com fios dourados, e carregavam o ar de arrogância de quem acredita que o mundo lhes pertence.
— Se está perdida, é porque precisa de ajuda, não é? — riu o segundo, cutucando o ombro do primeiro.
Alice recuou um passo, tentando erguer a postura, mas o peito apertava de um jeito que palavras não conseguiriam aliviar. — Eu… eu só estava indo… — começou, mas foi interrompida, bloqueando sua saída.
— Não, você vai conosco — disse o terceiro, empurrando-a levemente. — Não podemos deixá-la sozinha assim, hehe!
A mão de Alice tremia, e um nó de raiva e medo subiu pelo estômago.
Eu preciso gritar… preciso falar alguma coisa, qualquer coisa!
Quis protestar, mas a voz falhou, presa por lembranças que nem queria nomear.
O sorriso malicioso de Jafar, que a cobrava tão insistentemente pela dívida. O calor sufocante de sua presença hostil, o medo de estar completamente sozinha, a mercê da situação. O som de sua roupa rasgando…
Tudo isso retornou em flashes rápidos.
Alguém, por favor…
Com as pernas bambas, ela encostou as costas na vitrine, respirando com dificuldade, tentando ignorar a lembrança que teimava em surgir.
Uma sombra cobriu os rapazes, pousando a mão no ombro do líder, que se virou com um sorriso cínico e desdenhoso.
— E quem seria você!? — provocou o nobre, inclinando o queixo com arrogância.
Bam!
O impacto veio rápido, um som seco e doloroso.
O líder cambaleou para trás, a mão indo automaticamente à boca, sentindo a ausência de alguns dentes que tinham voado com o soco.
O choque e a dor pintaram seu rosto de horror.
Os outros dois olharam para o amigo caído e, por um instante, seus olhares de superioridade se esvaíram.
— Va-vamos embora! — disse um deles, a voz tremendo. — N-não vale a pena!
Sem esperar resposta, eles se afastaram apressados, arrastando o líder ferido com dificuldade.
Alice permaneceu parada, o coração disparado, lágrimas escorrendo pelo rosto. As pernas cederam, e ela desabou no chão, sentindo-se pequena e vulnerável.
Acabou… Tá tudo acabado.
— Os babacas fizeram algo com você? — a voz de Hazan cortou a confusão, mas estavam distantes demais.
Para de chorar, Alice… Ele tá vendo isso! Não estraga tudo!
— Alice? Você tá me ouvindo?
O pânico insistia em subir, pensamentos rodopiando:
E se ele me achar feia? E se o meu cabelo estiver bagunçado de novo? Estou sentada no chão, meu vestido deve estar sujo!
E se…
E se…!
— Alice.
A voz veio serena, tirando-a do transe. Ela ergueu os olhos, e Hazan estava ali, parado diante dela, expressão tranquila, sem qualquer sombra de julgamento.
Assim como da última vez em que entrara em desespero, ele estava lá.
Ele se aproximou devagar e limpou delicadamente as lágrimas do seu rosto.
Mesmo sentada no chão, Alice irradiava algo que não conseguia ignorar.
Seus cabelos castanhos-claros caíam em ondas leves sobre os ombros, ainda captando o brilho das lanternas.
Os olhos cor de castanho-claro, profundos e quentes, refletiam a luz ao redor, brilhando com uma fragilidade profunda.
As sardas dispersas pelo rosto realçavam sua inocência e vulnerabilidade, tornando-a irresistível de um jeito sutil.
O vestido amarelo, mesmo levemente amassado, ainda insinuava a elegância discreta de suas curvas, e o rubor natural nas bochechas trazia vida ao seu semblante, deixando Hazan sem fôlego por um instante.
Naquele momento, Alice podia não estar perfeita. Mas era perfeita do jeito que estava.
Por um instante, os dois apenas se encararam, todo o som ao redor tornando-se abafado.
— Você… tá bem bonita — Hazan deixou escapar antes de conseguir se controlar.
Alice corou imediatamente, baixando os olhos e mordendo o lábio inferior.
— Eu… posso dizer o mesmo de você.
Ele riu.
— Seu pai sabe que você saiu assim comigo? Ou devo esperar que Randolf tente me decapitar mais tarde?
Alice levantou o rosto e sorriu, tímida, mas com uma firmeza que deixou Hazan sem reação:
— Ele aprovou.
O sorriso do rapaz congelou por meio segundo. Aquela resposta, tão simples e direta, o desarmou por completo.
— Então acho que não tenho desculpa pra fugir disso, né?
Alice riu baixinho.
— Então… — Ele deu de ombros, tentando parecer casual. — Se quiser ficar aqui acampada, tá tudo bem. Provavelmente todos estão nos julgando nesse exato instante, mas… sinceramente, será que tem algo realmente interessante nesse festival além de barracas e lanternas?
Alice arregalou os olhos, indignada, e se levantou rápido, ajeitando o vestido como quem diz não me provoca. — Precisava estragar o clima?
— Então você admite que tinha uma clima? — Ele tinha um sorriso debochado.
Ela revirou os olhos, mas não conseguiu segurar o sorriso.
De mãos livres, caminharam juntos pela praça, lado a lado, misturando-se à multidão iluminada pelas lanternas.
Cada risada e olhar trocado fazia o festival parecer só deles, mesmo com tanta gente ao redor.
De longe, dois pares de olhos observavam atentos.
Lunna, com um vestido verde simples, mas gracioso, e os cabelos presos em um rabo de cavalo improvisado, segurava o braço do irmão com força.
Seus chifres esverdeados refletiam a luz do festival, e ela tinha um sorriso satisfeito nos lábios.
— Viu só? Meu plano está funcionando! Mas precisamos ter certeza!
Aspen, com uma camisa branca de mangas compridas e calças escuras, parecia desconfortável, como se tivesse sido arrastado contra a própria vontade.
O meio-elfo suspirou pesadamente, rolando os olhos.
— Lunna, isso é ridículo… Eu sempre fico em casa lendo meus livros durante o festival…
— Shhh! — ela o puxou para trás de uma barraca, animada. — Aspen, todas aquelas cenas clichês que acontecem naqueles livros de romance que você lê, você pode ver elas pessoalmente hoje! Não está animado!?
Aspen imediatamente corou. — Eu não leio aqueles livros, sua chifruda! Eles são da nossa mãe!
Lunna abanou as mãos como quem apaziguava uma criança mimada.
Aspen apenas resmungou, derrotado, enquanto sua irmã dragoniana praticamente o arrastava para manter o “flagrante”.
Edwyn atravessava as ruas iluminadas pelo festival com passos firmes, equilibrando várias sacolas cheias de espetinhos embrulhados. O cheiro de carne temperada e frango assado ainda escapava pelas bordas do papel oleoso.
— Carne e frango… os favoritos dele — murmurou para si, ajustando a alça de uma das sacolas. — Mestre Flint certamente vai apreciar.
Entrou em um beco lateral, um atalho que já conhecia, as luzes e risadas da festa ficando para trás. Mas bastou dar alguns passos para perceber a mudança no ar.
Sombras se destacaram das paredes úmidas, passos pesados ecoando. Três homens surgiram na entrada do beco, bloqueando a saída. Outros quatro vieram pelo lado oposto, fechando-lhe o caminho.
Edwyn parou. Seu olhar treinado não demorou a notar os detalhes: braços nus, colarinhos abertos, a pele marcada. Uma balança quebrada, tatuada em diferentes pontos dos corpos: ombros, mãos, nuca.
A Confraria? Que tipo de negócios iriam querer comigo?
Apesar do cerco, seu tom foi cortês quando abriu a boca:
— Boa noite, senhores.
O silêncio durou um instante, até que um dos homens, o mais largo entre eles, deu um passo à frente. A expressão era hostil.
— O senhor vai nos acompanhar.
Edwyn deixou os olhos baixarem para as sacolas em sua mão.
Respirou fundo, e sua conclusão veio silenciosa, quase serena:
— Parece que Mestre Flint não vai aproveitar o festival esta noite.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.