Índice de Capítulo

    Enquanto tentavam acompanhar Hazan e Alice pela multidão, Aspen e Lunna foram obrigados a parar.

    Uma voz forte e arrastada ecoou entre as barracas iluminadas:

    — Olha só… se não são os irmãozinhos mais bonitinhos desse festival!

    Calista surgiu cambaleando, apoiada em uma mesa improvisada de madeira, com uma caneca de cerveja transbordando espuma na mão.

    O cabelo azul como o oceano, normalmente solto em cascata, estava preso num rabo de cavalo e jogado por cima do ombro.

    — Senhora Calista… — Aspen começou, já erguendo as mãos numa saudação educada. — O que está fazendo aqui?

    — Curtindo o festival, oras! — respondeu ela, erguendo a caneca. — E vocês? Estão gostando?

    Lunna tentou sorrir, olhando para o irmão.

    — Ahn… sim, mas nós estávamos com um pouco de pres-

    — Então deixa eu contar uma coisa! — cortou Calista, batendo a caneca na mesa, respingando cerveja em quem passava. — Sabe o que é frustrante? É se apaixonar por um idiota. Um completo, total, absolutamente cego e cabeça-dura idiota!

    Aspen piscou devagar.

    — Talvez você não foi clara o suficiente…?

    Calista apontou para ele com o dedo, desequilibrando-se no gesto.

    — Impossível! Eu dou sinais, dou indiretas, até convites escancarados… e sabe o que ele prefere? Patrulhar pelos subúrbios. Enfrentar bandidos fedorentos em vielas mal iluminadas! Tudo isso em vez de… — ela ergueu a voz dramática — vir ao festival comigo!

    Lunna segurava o riso com dificuldade.

    — Nossa, que maldade…

    — Maldade é pouco! — Calista tomou mais um gole da caneca e limpou a boca com a manga. — Eu até botei uma saia hoje! Uma! Saia! Isso não é pouca coisa!

    Aspen, coçando a nuca, perguntou num tom neutro:

    — E… você não devia estar trabalhando agora?

    Calista deu uma gargalhada exagerada, quase tropeçando.

    — Trabalhando? Relaxa! Eu deixei o “restinho” do serviço com meu braço esquerdo, o confiável Agnis! Ele adora ficar cuidando das chatices. Eu mereço um descanso!

    Foi então que a ficha caiu, e ambos os irmãos perceberam de quem ela estava falando.

    Ela gosta do Hadrian…?

    Sem aviso, ela passou os braços pelos ombros dos dois irmãos, arrastando-os para perto, a caneca balançando.

    — E já que encontrei vocês, vão ter que me aguentar um pouquinho. Vão ouvir tudinho sobre minhas desilusões amorosas, entenderam?

    Aspen suspirou, encarando o céu como quem pedia ajuda divina.


    A praça estava cheia de barracas coloridas. O cheiro de especiarias doces e carne grelhada pairava no ar, misturado ao som de risadas, música e o tilintar dos alaúdes.

    Hazan andava ao lado de Alice, mastigando um espetinho de carne com prazer.

    De repente, seus olhos alaranjados se desviaram para o céu. As três luas pairavam lá em cima.

    — Por que existem três luas? — Hazan perguntou de repente, quase sem pensar.

    Alice parou e o encarou surpresa, como se ele tivesse acabado de perguntar por que a água é molhada.

    — Não ensinam isso no sul de Tahtoa?

    Hazan congelou.

    Merda. Esqueci desse detalhe.

    — Hã… não, eu… — Engoliu o pedaço de carne e acrescentou rápido, tentando disfarçar: — Eu quis dizer… o que elas significam pra vocês.

    Alice arqueou as sobrancelhas, mas pareceu aceitar a justificativa.

    — Ah, bom. Isso faz sentido. — Ela ergueu o dedo, apontando para a lua prateada. — A maior delas é Selunyth, a Guardiã do Limiar.

    — Essa aí eu conheço. É a lua da Grande Aproximação.

    Alice balançou a cabeça.

    — Exato, espertão. Selunyth mantém o limiar entre o nosso mundo e o plano primordial, onde todas as energias repousam em um estado natural. Se ela falhasse, tudo transbordaria até queimar o tecido do nosso plano.

    — Então… sem ela, o mundo iria acabar? — Hazan comentou, arqueando uma sobrancelha.

    Alice balançou a cabeça.

    — Mais ou menos isso.

    Ela então apontou para a lua verde, menor e agora minguante, com um brilho suave e quase maternal.

    — Aquela é Viridya, a Fonte da Seiva. É graças a ela que a aura corre pelo mundo. Ela alimenta a vitalidade, mantém as colheitas vivas, dá vigor e fertilidade para o planeta. Sem Viridya, a terra murcharia, e a aura ficaria fora de controle.

    Hazan assobiou baixo.

    — Viridya é nome de cozinheira. Daquelas que fazem os outros sorrirem mesmo quando cozinha mal.

    — Você tem um talento único pra estragar explicações bonitas.

    — Obrigado. — Ele retrucou com sarcasmo, terminando de comer toda a carne do espetinho. Aquele era o vigésimo da noite. — Então os pujantes são mais chegados nela, né?

    — Exato. Dizem que um pujante fica mais poderoso quando Viridya está cheia.

    Hazan olhou para a lua verde, pensativo, juntando peças que nunca tinha considerado.

    Essas luas tem um papel fundamental no equilíbrio desse mundo.

    Alice ergueu o dedo pela última vez, apontando para a lua dourada no céu estrelado.

    — Aquela é Aureon, a Teia dos Fios. Ela mantém o equilíbrio entre todas as energias, impedindo que haja um desequilíbrio entre elas.

    Hazan, já com o espetinho terminado, mastigava o palito como se fosse um grande sábio refletindo.

    — Entendi. Tipo… uma babá.

    Alice deu um soco no braço dele, com um sorriso travesso.

    — Se continuar estragando minhas explicações, juro que vou enfiar esse palito no seu nariz.

    — Estragando? — Ele inclinou a cabeça. — Eu sou ótimo nessas analogias profundas.

    — É claro, “filósofo do espetinho”. Vou anotar suas palavras pra próxima geração — ela retrucou, revirando os olhos.

    Por mais que parecesse irritada, havia um brilho nos olhos, uma pontinha de alegria que denunciava o que realmente estava sentindo.

    — Ahem! Como estava dizendo, sem Aureon — completou, retomando o fio da explicação —, os efeitos naturais de cada energia iria colidir uns com os outros, e isso sim seria um desastre.

    — Bom saber. — Hazan jogou o palito em um barril de lixo próximo. — Então temos que agradecer à lua dourada por eu poder comer espetinho em paz.

    Alice riu, mas dessa vez não tentou esconder. Ao lado dele, a noite parecia menos pesada, e a lua lá em cima… quase parecia sorrir também.

    Eles caminharam lado a lado pelo festival, desviando-se de barracas, crianças correndo e risadas de pessoas que também se divertiam naquela noite.

    Hazan falava com o jeito despreocupado de sempre, comentando o aroma das especiarias, o brilho das lanternas e até o jeito atrapalhado de um vendedor tentar equilibrar pilhas de frutas.

    Alice respondia, rindo de suas piadas, mas às vezes acrescentava algo mais sério, apontando detalhes que ele nunca notaria: uma bandeirola que tremulava com mais intensidade, o jeito como a luz da lua refletia nos olhos das pessoas, ou o som suave de um alaúde ao fundo.

    O contato entre eles era sutil: os ombros se encostavam de vez em quando, as mãos esbarravam ao pegar algo da mesma barraca, e cada toque despertava uma onda de calor silenciosa.

    De repente, os olhos de Alice brilharam com um fogo quase infantil, e um sorriso largo se espalhou pelo seu rosto. Ela apontou para algo à distância, mal conseguindo conter a animação: uma barraca iluminada por lanternas coloridas, com fileiras de alvos pintados e detalhes cintilantes que dançavam conforme a luz da lua tocava a tinta incandescente.

    — Olha lá! — exclamou, puxando levemente a manga de Hazan. — Vamos! Quero ir nessa!

    Não teve tempo de recusar quando ela o puxou pela mão.

    A barraca era uma das maiores do festival, feita de madeira grossa, iluminada por lanternas coloridas e coberta de bandeirolas que tremulavam no vento da noite. 

    Atrás do balcão, fileiras de alvos pintados com luas e sóis brilhavam em tinta incandescente.

    Alguns piscavam, outros se moviam devagar, e até havia ilusões que desapareciam só para reaparecer mais ao lado.

    Um letreiro pendurado dizia em letras douradas:

    “Alma e Flecha – Para Duplas Corajosas!

    Alice piscou para a fila, claramente animada.

    — Eu sempre quis vir aqui, mas… nunca tive uma dupla.

    — Então o que tá esperando? — Hazan respondeu, com um sorriso travesso.

    Ela corou de leve, desviando o olhar e apoiando a mão no ombro. — M-mas… é só pra casais.

    Hazan segurou sua mão de forma firme, mas gentil. — Você me trouxe aqui. Agora nós vamos até o fim.

    Enquanto era puxada na direção da fila, tudo ao redor parecia diminuir: as risadas, a música, as lanternas… só restava ele, tão perto, e ela tentando, sem muito sucesso, controlar o rubor que subia pelas bochechas.

    Quando chegou a vez deles, o dono da barraca, um sujeito barrigudo com bigode retorcido, explicou as regras:

    — Um segura o arco e dá firmeza. O outro puxa a corda e solta a flecha. Só vence quem tiver sintonia! Se acertarem todos os alvos, ganham um prêmio especial!

    Alice estufou o peito.

    — Eu seguro.

    — Nem pensar. Esse arco é maior que você — Hazan retrucou.

    — Idaí, aposto que minha mira é melhor!

    — É por isso que eu vou segurar, e você vai atirar.

    Ficaram se encarando, firmes como se o destino do mundo dependesse daquela escolha. Por fim, Alice suspirou e cedeu com relutância.

    — Tá bom. Mas se errarmos, a culpa é sua!

    — A culpa sempre sobra pra mim. — Hazan murmurou, ajeitando o arco.

    Alice tomou posição atrás dele, as mãos delicadas sobre os braços dele para puxar a corda.

    O público já ria e comentava, ansioso para ver no que aquilo ia dar.

    Na primeira tentativa, foi um desastre.

    A flecha voou torta, raspando num alvo que sumiu antes mesmo de ser atingido. O público caiu na gargalhada.

    O problema era óbvio: eles não estavam próximos o suficiente.

    O evento, reservado para casais, exigia intimidade, não apenas coordenação.

    E com um arco daquele tamanho, o contato físico era inevitável.

    Hazan percebeu o afastamento de Alice e soltou um suspiro baixo.

    — Vamos trocar de posição — disse, virando-se de lado e estendendo o arco para frente.

    Alice, envergonhada, se colocou ao lado dele, mantendo uma postura rígida, os ombros tensos. Sentiu o calor subindo pelo corpo mais uma vez.

    Hazan, com uma suavidade inesperada, tocou seu ombro, puxando-a para mais perto. Um arrepio percorreu Alice da nuca até a ponta dos dedos.

    Ainda bem que ele não pode ver meu rosto agora…!

    O dono da barraca bateu palmas, animado:

    — Respirem juntos! Sintonia, não teimosia!

    Na segunda tentativa, eles se encontraram no mesmo ritmo.

    O toque sutil de seus braços, o calor de seus corpos próximos, o cheiro suave do perfume adocicado de Alice…

    — No meu sinal… — Hazan sussurrou. — Três, dois, um… agora!

    A flecha cortou o ar, cravando-se com perfeição em um alvo prateado que girava lentamente.

    Um aplauso percorreu a multidão, mas para Alice e Hazan, o mundo parecia ter se condensado naquele instante: o toque, o calor, a respiração compartilhada.

    Conforme avançavam, foram acertando cada vez melhor. Hazan aprendeu a esperar pelo tempo dela. 

    Alice percebeu que a estabilidade vinha da firmeza dele.

    Passo a passo, tiro a tiro, foram se ajustando até que só restava o alvo dourado, pequeno, que desaparecia e aparecia de tempos em tempos.

    Alice engoliu seco.

    — Esse parece impossível.

    Para alguém acostumado a usar seus reflexos sempre no limite, aquilo não era nada difícil.

    — Então é perfeito pra gente — Hazan disse, puxando a corda junto dela.

    Seria a primeira vez que atirariam juntos daquela forma.

    O silêncio tomou conta da barraca. O público prendeu a respiração. Alice deu o sinal, Hazan firmou o braço, e juntos soltaram a flecha.

    Fiuuu! Stuck!

    A ponta atravessou o centro do alvo dourado, que explodiu em faíscas brilhantes. A multidão vibrou em aplausos e assobios.

    O dono da barraca gargalhou, abrindo um baú recheado de prêmios: colares, flores enfeitadas, pulseiras e brincos.

    — Campeões merecem escolher!

    Hazan olhou rápido e pegou uma pequena caixinha. Dentro, reluziam brincos em forma de lua verde minguante. Ele entregou a Alice sem pensar duas vezes.

    Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.

    — Por que esses?

    — Nome de cozinheira, lembra?

    Alice piscou, sem reação imediata. Depois, atingiu ele com uma cotovelada.

    — Tá dizendo que eu sou ruim na cozinha!?

    Ele desviou o olhar, tentando parecer sério, mas a ovação do público e o brilho verde dos brincos deixaram claro: naquela noite, os dois tinham vencido mais do que um jogo.

    Bandeirolas coloridas tremulavam, e o palco de madeira, erguido diante da estátua do antigo herói Ignis, dominava o espaço.

    Milhares de olhos estavam fixos na mesma direção, aguardando.

    Então, a Marquesa Beatrice surgiu.

    Ela usava um vestido de seda rubra, tão vivo quanto brasas recém-acesas, e o brilho das joias em seu colo refletia a luz das tochas como estrelas cativas.

    Sua simples presença calava o burburinho da multidão.

    Beatrice ergueu os braços, sorrindo com um carisma natural.

    — Cidadãos de Ariasken! — Sua voz ressoou, firme e melodiosa. — Hoje celebramos mais do que a dança, mais do que a música e a alegria. Celebramos vocês. Celebramos a paixão que corre nas veias dessa cidade!

    O público explodiu em aplausos. Hazan, de braços cruzados na beira da praça, observava de longe com uma expressão nada contente.

    — Há cinco anos — continuou Beatrice — Ariasken ainda era uma sombra do que é hoje. As ruas eram frias, o comércio enfraquecido, os corações abatidos. Mas juntos… juntos nós mudamos essa realidade!

    Ela gesticulou em direção à Guilda Pena Azul, cujos membros, espalhados pela multidão, recebiam olhares respeitosos.

    — E não esqueçam: sem a Pena Azul, que investiu os próprios fundos para manter vivo este festival, nada disso seria possível!

    Mais aplausos, assobios, vivas. A energia da praça era quase palpável. Crianças batiam palmas, jovens dançavam ao som dos alaúdes, casais se olhavam como se o amor estivesse no ar.

    — Uma última coisa: farei um anúncio importante em relação ao futuro da nossa querida cidade aqui na Praça Central, quando o festival acabar. Portanto, fiquem atentos! — declarou Beatrice, erguendo uma taça de cristal. — Que os jovens deixem seus corações falarem, que os laços se formem, que Ariasken brilhe mais forte do que nunca! Pois esta cidade não pertence apenas a nós, mas às futuras gerações que nela irão florescer! Que a Dança Lunar comece!

    O público vibrou, gritando o nome dela.

    Mas Hazan não aplaudiu.

    De onde estava, seus olhos arderam ao cruzarem com os dela, mesmo em meio à multidão. A Marquesa o viu.

    Viu Alice ao seu lado. E sorriu.

    Não um sorriso qualquer, mas aquele sorriso calculado, como se tivesse acabado de descobrir mais uma peça útil em seu tabuleiro.

    O estômago de Hazan revirou.

    Desgraçada.

    Para todos, Beatrice era a benfeitora, a voz da esperança, a mulher que trouxe cor e vida a Ariasken. Para Hazan, era uma hipócrita que cometia crimes enquanto fingia um bom caráter.

    E esse era o tipo de pessoa que mais odiava.

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