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    Não havia percebido por conta do enorme fluxo de pessoas, mas logo após o anúncio da Marquesa, o coração da Praça Central de Ariasken aos poucos se revelou.

    Elevada cerca de quarenta centímetros acima do chão, o palco não fazia nenhum esforço para se destacar.

    O tecido vermelho que cobria a madeira refletia a intensidade da paixão e da celebração, onde pintadas e bordadas, as três luas surgiam em diferentes fases: cheia, crescente e minguante.

    Nas bordas da plataforma, cordões dourados e lanternas suspensas em mastros lançavam reflexos cintilantes sobre pequenos arranjos florais.

    Pequenos espelhos circulares, presos em hastes estratégicas, captavam cada lampejo e o devolviam ao espaço, criando a ilusão de um luar que parecia saltar sobre a multidão.

    Apesar de toda essa imponência, o palco não exalava exclusividade. 

    Ao contrário: crianças se espremiam nas bordas, casais riam ansiosos, e até os músicos itinerantes se aproximavam para acompanhar a dança com alaúdes e flautas.

    Todos, ricos ou humildes, eram convidados a festejarem, permitindo-se esquecerem das castas sociais impostas.

    Em questão de segundos, a plataforma no meio da praça já estava tomada de passos apressados e risadas.

    — E aí, bonitão. Esperamos a noite toda por isso, né? — disse Alice, estendendo a mão para seu par.

    O lutador balançou a cabeça.

    — Você vai passar vergonha. Eu não sei dançar.

    Ela sorriu de um jeito tão doce que perdeu a luta antes mesmo dela começar. Sem pedir permissão, Alice pegou em sua mão.

    — Então eu ensino.

    No começo, foi um desastre completo. Hazan pisou no próprio pé, depois no dela, depois quase no da senhora que dançava ao lado.

    Se tivesse um prêmio para o “dançarino mais perigoso da praça”, já seria o campeão.

    Alguns casais cochichavam e riam às escondidas, apontando os dois com a malícia cruel de quem só se diverte à custa da vergonha alheia.

    Já os casais mais velhos sorriam, balançando a cabeça, reconhecendo nos tropeços deles lembranças de um passado precioso que ainda guardavam no peito.

    Hazan, no entanto, não achava graça nenhuma.

    Estava vermelho, indignado, e se esforçava para não esmagar os dedos de Alice outra vez.

    Quando a música terminou, Hazan recuou em silêncio.

    O rosto trazia uma seriedade inesperada, como quem estava perdido nos próprios pensamentos.

    Alice, ainda ofegante, ajeitou uma mecha atrás da orelha e forçou um sorriso, tentando dissipar a tensão que ele deixara no ar.

    — Ei… não precisa levar isso tão a sério… — murmurou, mas a resposta nunca veio.

    Hazan a ignorou por completo.

    Sentiu o peito apertar. Com uma revirada de olhos, desceu do palanque e atravessou a multidão.

    Minutos depois, trocava algumas moedas de cobre por uma taça de vinho.

    Levou o copo à boca e bebeu inteiro num só fôlego. Precisava afogar a própria ansiedade antes que ela transbordasse.

    Hazan, todavia, permanecia imerso.

    Calma… Isso tem lógica. Tem padrão. Os passos se repetem em ciclos… frente, trás, giro, lateral. Se ela inicia com o pé da frente, eu respondo com o de trás. Se abre, eu fecho. É só ritmo. É só contar.

    Quando Alice voltou, suas bochechas estavam levemente rosadas, e seu olhar mais confiante. — Escuta aqui, seu bicho teimoso, isso não é uma luta!

    Ele murmurou sem olhar para ela:

    — Não é tão diferente assim.

    Quando a música recomeçou, Alice mal teve tempo de se preparar.

    Hazan a puxou pela cintura com firmeza e uma segurança repentina que a fez perder o fôlego.

    No início ainda era rígido, mas logo os movimentos começaram a fluir.

    O peso nos pés já não era de quem se arrastava, mas de quem sabia para onde ia.

    O olhar dele, antes encarando os próprios pés numa tentativa de se encontrar, agora estava fixo nos de Alice.

    A cada passo, ele melhorava ainda mais. Girava-a com confiança, conduzia com facilidade, adaptando-se ao ritmo da música.

    O público, que antes ria, agora se virava curioso, surpreso com a mudança.

    Alice se deixou levar, rindo em meio à incredulidade.

    — Hazan… isso… como você…?!

    Ele abriu um sorriso, sem desviar os olhos.

    — Nem questiona. Só aproveita.

    E, pela primeira vez naquela noite, o desastre virou dança de verdade.

    O tempo passou sem que percebessem.

    Entre uma música e outra, a multidão ao redor parecia sumir, até que ficaram apenas eles dois, presos ao compasso que só eles compartilhavam.

    Quando a última nota caiu, estavam próximos demais, respirando no mesmo espaço.

    Alice baixou o olhar, corada.

    — Acho melhor a gente descansar um pouco…


    A rua lateral estava quase deserta, iluminada apenas pelas lanternas de papel que balançavam preguiçosas no vento. 

    O som distante da música do festival chegava abafado, como se viesse de outro mundo.

    Hazan e Alice sentaram-se em um banco de madeira.

    Longos minutos se alongaram, mas nenhum dos dois falou uma única palavra.

    — Vou ser franco… — disse o lutador, quebrando o silêncio. — Esse evento nem tava nos meus planos.

    Alice arregalou os olhos, um espaço abrindo em seus lábios. Ela respirou fundo e aguentou. Não respondeu na hora, apenas apertou os dedos no vestido.

    Hazan suspirou e continuou:

    — Mas… não me arrependo. Nem um pouco.

    Um sorriso suave, quase imperceptível, surgiu nos lábios dela. Mas não parecia uma expressão feliz.

    — Eu já sabia.

    Hazan a encarou na mesma hora, franzindo o cenho.

    — Sabia?

    Ela manteve os olhos fixos à frente, como se fosse mais fácil falar com o vazio da rua do que encarar ele.

    — Você estava distraído quando eu perguntei. Eu me aproveitei disso… — Ela riu baixo, mas sem alegria. — E a Lunna… eu percebi como ela estava tentando impedir que você fosse sincero. Então, na verdade, devo agradecer a ela.

    Ele estreitou os olhos, tentando decifrar aquela mistura de humor e melancolia que vibrava na voz dela. Alice respirou fundo, virando-se enfim para encará-lo. O sorriso que trouxe ao rosto era bonito, mas claramente forçado.

    — Eu até pedi pra Lumélia me ajudar, porque estava completamente desesperada. Pensei só no que eu queria, sem considerar se você realmente queria estar aqui. — Sua voz vacilou. — A verdade é que eu tinha medo… medo de você estar aqui por obrigação.

    As mãos dela se apertaram no colo, o polegar esfregando o indicador de forma nervosa

    — Eu n-não me acho muito bonita. Nem sabia se você poderia olhar pra mim desse jeito. Mas… mesmo assim eu quis tentar. — O sorriso dela agora vinha acompanhado de um olhar úmido das lágrimas que teimavam em não cair. — Então… me desculpa.

    Hazan a observou em silêncio. Ele puxou o ar devagar, deixando a resposta vir sem pressa.

    — Só tem uma coisa que eu não posso aceitar em tudo isso.

    Alice deixou a coluna ereta, os olhos se arregalando com a expectativa.

    — O quê?

    — Esse absurdo de você achar que não é tão bonita.

    Os dois se encararam, e dessa vez não havia mais disfarces. Alice sentiu o coração disparar, e antes que pudesse pensar, a mão de Hazan cobriu a dela. 

    O calor do toque dele percorreu seu braço.

    — Esp… espera! E a Aurora!? — Sua voz falhou, o coração batendo acelerado.

    Hazan não disse nada. Seus dedos tocaram suavemente as bochechas dela, puxando-a para perto.

    Quando os lábios se tocaram, o primeiro instante a deixou tonta.

    Mas quando seus dedos tocaram os ombros dele e a suavidade de seu abraço se firmou, Alice fechou os olhos e deixou-se levar, absorvendo a intensidade do momento e o calor que subia pelo corpo.

    Hazan foi o primeiro a se afastar, respirando fundo, como se tivesse acabado de cometer um erro e um acerto ao mesmo tempo.

    Alice desviou o olhar, vermelha, mordendo o lábio.

    — Alice… eu… — Hazan passou a mão pelo cabelo. — Eu vou embora dessa cidade logo. E não posso seguir adiante com… isso.

    Ela virou-se rápido, surpresa, mas não com raiva. O olhar dela tinha uma firmeza inesperada.

    — Eu não me importo.

    — Não? — Ele balançou a cabeça em descrença.

    Ela segurou a mão dele com as duas, garantindo que ele não fosse a lugar nenhum naquele instante. — Se for pouco tempo… então eu aproveito o pouco tempo que tiver. Mas eu quero que seja com você.

    Algo dentro dele queria retrucar, dizer que era um erro, que não podia se prender. Mas não disse nada.

    Apenas apertou a mão dela de volta, deixando que aquele silêncio falasse por ele.


    Do outro lado da rua, na sombra de uma árvore retorcida, Aspen e Lunna permaneciam quietinhos.

    Depois que Calista desmaiou por conta do excesso de álcool e precisou ser socorrida, Aspen e Lunna finalmente tiveram um pouco de paz para observar cada movimento de seus alvos.

    Desde o primeiro tropeço de Hazan na dança até o momento em que ele puxou Alice pela cintura, eles estavam lá.

    Quando a música cessou e as risadas da multidão se dissiparam, Lunna deu um passo à frente. Andou sozinha, sem esperar o irmão.

    Aspen a seguiu, hesitante, até perceber que o silêncio dela não era só birra.

    — Está satisfeita? — arriscou, num tom seco.

    Ela não respondeu.

    Apenas ergueu as mãos ao rosto, os ombros tremendo. Um soluço abafado escapou.

    Aspen parou, atônito, antes de olhar ao redor. Ninguém por perto. Só o eco distante da festa. Suspirou aliviado, mas também perdido.

    — Lunna… o que foi?

    — No fim… não adiantou nada.

    — Como não? — ele retrucou, confuso. — Eles estão juntos! Era isso que você queria, não? Esse seu teatrinho do “beijinho inevitável” funciono-

    — Mas ele ainda vai embora! — ela gritou, a voz falhando. — Hazan… e Aurora. Os dois vão embora.

    Ela baixou as mãos, revelando o rosto molhado de lágrimas.

    Pela primeira vez, Aspen viu que toda aquela brincadeira dela nunca tinha sido só sobre romance.

    Ela achou que se eles ficassem juntos, Hazan mudaria de ideia…

    O elfo coçou a bochecha, desviando o olhar. Gostava de Hazan e Aurora, disso não tinha dúvida. Mas sabia que eles partiriam alguma hora. Era só questão de tempo.

    Não fazia sentido se apegar demais.

    E nem estava triste.

    Ou pelo menos convencia a si mesmo disso.

    Afinal, tinham compartilhado bons momentos… especialmente com Hazan, que, de alguma forma, tinha deixado a rotina da cidade menos cinzenta.

    Mas chorar ou lamentar não mudaria nada. Preferia aceitar a realidade como ela era, nua e inevitável.

    Ainda assim, permaneceu em silêncio.

    Não porque não tivesse palavras, mas porque, naquele instante, percebeu que a dor da irmã precisava de espaço.

    E a última coisa que queria era esmagar o sentimento dela com sua lógica.

    — Eu… eu só queria… que eles ficassem! — gritou, a voz falhando. — Sempre quis um irmão mais velho… — Ela engoliu em seco, os olhos cheios de lágrimas, um soluço escapando. — E Hazan fez isso… Mesmo sem me conhecer, ele me protegeu na fortaleza. E fez isso de novo, e de novo… mesmo sem obrigação alguma. — Soltou um risinho amargo, misturado a um soluço. — Foi como finalmente ter o irmão que eu nem sabia que precisava.

    Aspen arqueou uma sobrancelha. — Como você sabe que queria um irmão mais velho?

    — Eu acabei de explicar! — protestou, erguendo o rosto, a voz embargada.

    — Mas você só sabe disso porque sabe quem você é.

    Ela congelou, o soluço preso no ar.

    Aspen respirou fundo. — Eu sempre quis ser outra pessoa. Forte, corajoso… humano. — Tocou a ponta da orelha cortada, o olhar perdido. — Mas, quanto mais lia sobre os elfos nos livros, mais entendia: se eu fosse humano, eu não seria eu. Talvez nem gostasse de ler. Nem do vento de manhã. Nem da sopa da mãe.

    Lunna baixou os olhos. — E Hazan quer lembrar de quem era…

    Aspen balançou a cabeça. — Não é só isso. Hazan não fala muito… mas faz. — A voz dele ficou grave, sincera. — Ele apanha, cai, sangra… e continua de pé. Não porque queira provar algo, mas porque não sabe fazer diferente. E é isso que inspira. A gente olha pra ele e pensa: “se ele aguenta, eu também consigo.”

    Os olhos de Lunna se encheram outra vez.

    — É por isso que você queria segurá-lo, não é? — Aspen a encarou. — Porque ele faz você acreditar que pode ser mais do que é.

    — Para… — murmurou, sufocada. — Eu já sei que sou egoísta.

    Antes que ela recuasse, Aspen a puxou num abraço. Lunna desabou contra ele, chorando em silêncio.

    — Egoísta nada. — Ele retrucou, a voz suave. — Sentir não é errado. Hazan vai embora… sim. Mas não agora. Você tem tempo. E nesse tempo… pode criar lembranças. Quantas quiser.

    Lunna fechou os olhos.

    Nos braços do irmão, deixou que a dor se dissolvesse devagar. Lunna continuou chorando baixinho, e ali os dois ficaram por um bom tempo.

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