Capítulo 61 - O meu caminho.
Competição Das Jovens Estrelas
O anfiteatro ardia em vozes. Arquibancadas escancaradas, lanternas pendendo em mastros tortos, bandeirolas agitadas por um vento fresco.
Os gritos se juntaram, um coro que esmagava o resto.
— Aspen! Aspen!
— Acaba com ele, rapaz! — Goran vociferou, o nome do velho cortando mais alto que os outros.
Não conseguia ouvir nada. O som vinha distante, abafado por uma pressão que martelava atrás das têmporas.
A garganta vibrava com cada batida do coração. O sangue fervia nos ouvidos, e os músculos tremiam.
O ombro esquerdo mostrava-se traidor: o osso fora do lugar, deslocado, e as escoriações e arranhões pelos braços, cujo sangue escorria.
Tá tudo bem. Eu já passei por coisa pior. Eu aguento. Eu consigo!
Aspen repetiu mentalmente. Palavras secas. Uma tentativa de racionalizar o medo no meio do caos.
Uma mão robusta agarrou seus cabelos. A mão era firme, cruel. Tiber apareceu na frente, os olhos pesados de rancor.
— Ei, orelha rasgada — começou ele, a voz baixa e ameaçadora. — Eu avisei para desistir. Vou te mostrar o que acontece com quem não aceita a própria natureza.
O punho subiu. Não houve aviso. O movimento era seco, inevitável.
Bam!
O impacto explodiu na mandíbula e atravessou o que restava da calma. Aspen sentiu os dentes vibrarem, a língua ocupada por um gosto metálico.
A visão estilhaçou-se em telas quebradas, dentes voando pelo ar.
Por um segundo, a imaginação recuou para memórias de outros golpes, de outras dores, de outras humilhações que se esforçava para esquecer, mas revivia todas as noites.
O público prendeu a respiração por um instante. Depois, o som veio, um rugido, uma mistura de aprovação e bestialidade.
Aos poucos, a visão escureceu.
Por que…? Por que isso sempre acontece comigo…? De novo! Eu me esforcei dessa vez! O que eu faço!?
Nos últimos dias, Aspen corria sem parar pelas ruas da cidade. Estava ficando mais fácil a cada dia que passava.
Precisava ficar mais forte.
Tinha recebido ajuda demais de pessoas que acreditaram nele.
Pessoas que depositaram confiança em seu esforço, e é por isso que não podia decepcioná-las.
A Competição Das Jovens Estrelas aconteceria amanhã, o último dia do festival, e duraria até o cair da noite.
Hazan tinha lhe dito para descansar, e vindo dele, esse conselho era quase um milagre.
Até pensou em tirar o dia para ler seus livros, mas não o fez.
Acordou cedo, socou o saco de pancadas até sentir os nós dos dedos latejarem, praticou as sequências de ataque e esquiva até o suor empapar a camisa, e depois calçou suas botas gastas para correr.
Por que eu tô fazendo isso…? Meu corpo inteiro dói. Eu deveria estar dormindo agora. Por Unitas…
— Ei! Ô garoto! — uma voz interrompeu seus pensamentos.
Aspen ergueu o olhar e abriu um sorriso cansado. O velho Goran acenava de trás de sua pequena banca de legumes.
A madeira da barraca estava quase vazia, sobrando apenas algumas cenouras murchas e tomates pequenos.
— Pelo visto, os negócios andam bem, Senhor Goran!
— Hehe, e como andam! — respondeu o velho, com a risada rouca. — Graças ao festival, vendi quase tudo pros turistas! Mas não fique triste! Separei alguns pra você!
O velho abaixou no balcão, as costas estalando. Com dificuldade, apoiou a mão na madeira e puxou uma sacola cheia de tomates e cenouras saudáveis.
— S-senhor Goran, não precisava…
O homem ergueu-se, as costas estalando. — Ugh! Minhas costas! Claro que precisava, meu jovem. Para crescer forte, faz-se necessário uma excelente alimentação!
— Ora, ora, o que temos aqui… — anunciou uma voz debochada.
Erik e Bargo. Os dois valentões surgiram em meio às pessoas, colocando as mãos em cima da banca.
Sem pedir, Erik pegou um tomate da sacola e mordeu, deixando o suco escorrer pelo canto da boca.
— Legume de velhote sempre cai bem, não é não, Bargo? — zombou, pegando outra cenoura.
Bargo assentiu, comendo vários tomates sem parar. — E ainda de graça! Tudo graças ao nosso amiguinho orelhudo aqui!
Aspen manteve-se quieto, franzindo as sobrancelhas.
— Ei, não se preocupe, garoto… — disse Goran, forçando um sorriso. — Você pode passar aqui amanhã.
Aspen suspirou fundo, tentando ignorar. Foi então que Bargo derrubou a sacola inteira no chão, pisando em alguns tomates de propósito.
Logo depois, Erik passou o braço pelo ombro do elfo em uma falsa camaradagem, exibindo um sorriso largo.
— Cara, fiquei sabendo dos rumores… você, com talento pra magia? — indagou de forma cética, com a voz alta o bastante para chamar atenção de quem passava. — Então é isso? Vai deixar a gente aqui nessa cidade de merda, vai pra capital, estudar numa daquelas academias cheias de luxo? Olha só… o futuro garantido do pequeno Aspen. Que sorte a sua, seu bastardo!
Bargo, terminando de pisar nos últimos tomates, não perdeu a chance de entrar no coro. — E tá todo mundo falando como a Lunna tem talento pros dois caminhos… — Riu abafado, sacudindo a cabeça. — Só espero que ela não seja burra de seguir o lado dos pujantes. Ninguém em sã consciência quer ser uma arma viva. Magos, pelo menos, ainda têm status!
Erik inclinou-se mais, tão próximo que Aspen sentiu o hálito azedo em sua orelha.
— E sabe o que é pior? — sussurrou, baixo, quase íntimo. — Se você e a monstrenga realmente virarem magos, vão sumir daqui rapidinho. Sem despedida, sem olhar pra trás… e eu nunca vou ter a chance de provar o gosto dela. Pra uma aberração, até que eu acho ela bonitinha… isso fere meus sentimentos, sabia?
O valentão deu um tapa no pescoço de Aspen antes de passar na sua frente, se despedindo com um tchauzinho debochado.
— A surra que o Hazan deu em vocês não foi suficiente?
O riso dos dois morreu por um instante. Erik cuspiu o pedaço de tomate no chão e arregalou os olhos, como se não tivesse ouvido direito.
— O quê que cê disse?
Bargo inclinou a cabeça, rosnando. — Parece que o moleque finalmente enlouqueceu.
Erik estalou os dedos. — Não tem nenhum lutador pra te proteger dessa vez. É só você… e a gente.
Aspen não recuou.
— Puxa, é verdade — ele disse, abrindo um sorriso debochado. — Isso não parece muito justo pra vocês, porque não chamam mais gente que nem da última vez?
Os dois valentões se voltaram totalmente para ele, mas Aspen não abaixou o olhar.
— Hehe, parece que o nosso escravo acha que virou gente grande! — exclamou Erik, abrindo os braços.
— Então é da nossa conta mostrar que ele ainda é só um pivete! — vociferou Bargo, avançando primeiro.
Eram golpes desengonçados? Aspen não sabia dizer. Mas estava fácil demais evitar aqueles golpes.
Aspen recuou o tronco num pêndulo limpo, sentindo o punho de Bargo passar raspando. Deslizou a cabeça para o lado, desviando do próximo soco. A cada ataque do brutamontes, Aspen respondia com economia de movimento.
Então, quando o espaço se abriu, ele soltou.
Bam!
Um cruzado firme, seco, bem no queixo.
O maxilar de Bargo tremeu com o impacto. Os olhos se reviraram por um instante, e o corpo pesado desabou no chão.
Há uma razão pela qual o queixo é o alvo mais temido em qualquer luta: quando atingido com força, a vibração viaja pelo osso, sacudindo o cérebro dentro da caixa craniana. O corpo reage desligando.
Isso é um nocaute.
C-como isso é possível?
Erik não era capaz de entender.
Faz poucas semanas que a gente deu uma surra nesse merdinha! É impossível ele ter mudado tanto assim!
Partiu pra cima sem base nenhuma, movido só pela indignação.
O elfo já estava preparado. O valentão era alto e magro, com braços longos, só isso já dava uma vantagem óbvia em alcance.
O punho do agressor estava erguido, pronto para atacar.
Mas o golpe nunca chegou.
Bam!
Seu nariz explodiu em dor antes mesmo que entendesse o que tinha acontecido.
Braços longos na curta distância são um perigo para quem não tem técnica.
Enfrentando Hazan diversas vezes, tinha aprendido isso da pior forma.
Por isso seu golpe o atingiu primeiro. Um direto rápido e certeiro.
Sangue jorrou pelo rosto de Erik, que cambaleou, instintivamente levando as mãos ao nariz.
Foi aí que veio o segundo golpe.
Aspen girou o tronco e cravou um cruzado no supercílio do valentão esguio. Não era o suficiente para derrubá-lo, mas esse não era seu objetivo.
Com o supercílio rasgado e o nariz quebrado, o espírito do agressor estava quase no limite. Suas pernas cederam involuntariamente, mas o ódio ainda estava lá.
— Beleza, seu merdinha, já entendi! Você treinou com aquele lutador esquisito e ficou mais forte! Mas e aí!? Acha que isso muda essa sua linhagem de merda!?
Bam!
Um soco.
— D-droga! Seu bastard-
Bam!
E mais um.
— Ei, qual é o seu maldito proble-
Bam! Bam! Bam! Bam!
Os punhos se sucederam, um após o outro. Primeiro ódio, depois confusão, até que o medo tomou conta. O rosto de Erik, antes orgulhoso, agora estava inchado, sujo de lágrimas e sangue.
— D-desculpa! E-eu estava errado! N-nunca mais v-vou te incomodar! P-por favor, pare…!
Aspen o segurava pela gola, mas seus olhos já não viam Erik. Viam o reflexo de todos os anos em que sonhara com aquele exato momento.
Era isso o que eu queria?
Largou a gola de Erik, deixando-o no chão.
É, eu desejei isso por anos… Mas e agora?
Olhou em volta: Goran o observava em silêncio, mas havia medo no olhar. O mesmo para quem passava por perto.
Mas sem um único traço dos olhares de julgamento ou nojo.
A sensação de empregar a violência com minhas próprias mãos… Então é isso o que ela proporciona? Mas… qual é o propósito disso?
Encarou as próprias mãos manchadas de sangue.
— S-seu lixo! A-acha que Tiber vai deixar isso p-passar!? É fácil pra você nos menosprezar, já que tem talento! — Erik gritou, despejando suas frustrações.
Aspen o encarou, e o medroso abaixou o olhar.
Talento? Ele acha que eu tenho isso?
Permaneceu parado, respirando fundo, encarando apenas a própria mão aberta.
Entendi… É assim que funciona.
Os dedos tremiam.
Apesar disso, sorriu.
— Eu não vou ser um mago — começou, anunciando mais para si do que qualquer outra coisa. — Eu vou ser um pujante!
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