Índice de Capítulo

    O pergaminho de inscrição estava no balcão, bem na frente de seus olhos.

    Todas as informações estavam preenchidas e aprovadas com um carimbo oficial da Pena Azul.


    Ficha de Inscrição – Competição das Jovens Estrelas

    Número do candidato: 09/40

    Nome: Aspen
    Sobrenome: Nenhum
    Idade: 14 anos
    Altura: 1,65 m
    Peso: 49 kg
    Afiliação: Guilda Pena Azul

    Informações de Combate:

    Estilo Marcial: Boxe
    Energia: Aura
    Núcleo: Corpo
    Origem: Pujante


    Pela primeira vez, não era apenas um sonhador treinando no quintal com Hazan; estava inscrito, oficialmente, como competidor. 

    Jovens de todas as idades formavam filas diante das mesas de inscrição, alguns com os pais ao lado, recebendo tapinhas de incentivo ou broncas discretas; outros vinham sozinhos, tentando esconder a ansiedade no peito estufado.

    As vozes se misturavam: murmúrios tensos, gargalhadas nervosas, conselhos sussurrados em último instante. 

    Nobres passavam imponentes, contrastando com os plebeus em trajes simples, mas com a mesma chama nos olhos.

    Os escribas atrás das mesas escreviam sem parar, suas penas rangendo no pergaminho, enquanto estandartes coloridos pendiam das paredes, exibindo o brasão da Pena Azul. 

    — Aí, cara, agiliza aí! — gritou alguém no final da fila.

    Envergonhado, Aspen assentiu e saiu com o papel em mãos.

    Não conseguiu evitar o sorriso. 

    Guardou o documento junto ao peito como se fosse um troféu, quase com medo de que alguém viesse arrancá-lo.

    O nervosismo trouxe consigo as necessidades biológicas de seu corpo.

    Depois de se aliviar, ficou em silêncio por alguns segundos, olhando o reflexo no espelho manchado. Apertou os punhos. 

    Então, começou a golpear o ar, treinando os movimentos que tinha aprendido. 

    Passos curtos, respiração controlada, foco nos pés. 

    Os socos eram tentativas de calar o medo.

    — Nossa, isso sim é um evento inesperado!

    A voz gelou o sangue em suas veias. 

    — Ei, ei, eu não acredito, esse papel nas mãos… você se inscreveu mesmo!?

    Era impossível esquecer aquele deboche característico.

    — Depois de derrotar Erik e Bargo, ficou se achando, não é? Estou até orgulhoso… o pequeno bastardo tentando brincar de gente grande!

    Não havia necessidade de olhar para saber. 

    Quem mais teria o prazer de encher o ar com tanto barulho? 

    Ainda assim, ergueu os olhos, movido por puro instinto.

    Tiber.

    Com sua presença pesada, estava sempre alguns anos e centímetros à frente de Aspen. 

    A touca marrom abafava seus ouvidos, mas não conseguia esconder os fios prateados que escapavam dela. 

    Olhos da mesma cor, fundos e cercados de olheiras, brilhavam com arrogância juvenil. 

    — Estava com saudades, orelhão? Pois eu estava! — disse, agarrando o elfo pelos cabelos.

    Vestia uma regata preta que revelava antebraços marcados com runas incompreensíveis na pele, calças largas e gastas, e sapatos simples.

    Aspen cerrou os dentes.

    Eu preciso revidar! Tenho que mostrar para ele que não sou mais o mesmo!

    — N-não é brincadeira, Tiber. Eu vou lutar!

    O sorriso dele se alargou. Tomou o papel das mãos de Aspen, encarando o conteúdo por alguns segundos e voltando a sorrir com escárnio.

    Hahaha! Aspen, seu bostinha, de onde tirou tanta coragem? Você é um covarde, cara! É a sua natureza!

    Sentiu o peito queimar. Medo e raiva colidiram, mas ele ergueu o queixo.

    — Eu vou lutar. E vou até o fim!

    O sorriso do valentão murchou numa sombra.

    — Ah é? Então vou esmagar essa sua ilusão e te fazer rastejar. Começando agora.

    — O que você quer di-

    — De joelhos. 

    Para um cão bem domesticado, basta um simples comando para obedecer. E foi o que Aspen fez.

    — Agora, lamba meus pés.

    — O quê…?

    — O que foi? Você já lambeu coisa bem pior, já esqueceu? Não me faça esperar, Aspen.

    Por que não conseguia simplesmente dizer não? Tinha prometido a si mesmo que nunca mais se curvaria.

    Então por que era tão difícil?

    Ainda assim, seu corpo era incapaz de se mover.

    E a mente afogava-se em um mar turbulento de dúvidas.

    Alguém precisa ouvir… Por favor, alguém…!

    Lentamente se abaixou, encarando os pés de Tiber. 

    Abriu a boca, mas a tensão foi quebrada por uma voz:

    — Tiber!

    Alguém surgiu na porta, mãos na cintura e um olhar reprovador.

    Suas preces tinham sido respondidas.

    Conhecia bem aquela pessoa, afinal, ela era o motivo de Tiber parar de atormentá-lo por alguns anos.

    Sahrin.

    De pele morena, olhos dourados e pupilas felinas.

    O cabelo negro, desgrenhado como uma juba, escondia discretamente as orelhas pontudas que se moviam sozinhas ao menor ruído.

    Vestia couro escuro rasgado, adornos de ossos e presas no pescoço, e nunca usava botas, queria sentir o chão sob os pés.

    Caminhou até os dois, segurou Tiber pela orelha e o puxou para trás com força.

    — Quantas vezes eu já disse? Você prometeu não mexer mais com ele! — Ela suspirou, claramente decepcionada. — Eu acho o Aspen um fofo, sabia!? Ele não merece esse seu teatrinho infantil!

    Tiber tentou resmungar, mas ela o arrastou pelo corredor como se fosse um garoto travesso. Antes de sumirem da vista, Sahrin mandou um beijo na direção de Aspen.

    Agora estava sozinho. Olhou para o papel largado no chão.

    Não parecia mais um troféu. 

    Cerrou os dentes na tentativa de apaziguar a raiva crescente no estômago.

    Droga… eu vou dar o troco na competição!

    Guardou-o com cuidado no bolso e deixou o banheiro, ainda com o coração acelerado.

    Do lado de fora, encontrou sua família. Liara, Zara e Rashid o esperavam, e atrás deles, em sua cadeira de rodas, estava Cassandra. 

    O semblante abatido do meio-elfo não passou despercebido.

    — Aconteceu alguma coisa? — perguntou Cassandra, com a calma habitual.

    — Não, mãe… nada. — Ele forçou um sorriso, tentando disfarçar. — Cadê a Lunna? Ela não vai vir?  

    — Ela disse que ia passar o fim do festival com Hazan…. — respondeu Liara, com um sorriso sem graça. — Os d-dois devem c-chegar um pouco mais tarde…

    Aspen assentiu, abaixando o olhar.

    Ele prometeu que ia me ver lutar… 

    Cassandra estendeu a mão e tocou levemente o braço do filho.

    — Não se preocupe — disse, com um brilho sereno nos olhos. — Você vai chegar nas finais da competição. É tempo mais do que o suficiente para eles chegarem.

    Zara e Rashid, os gêmeos, começaram a saltitar em volta dele, imitando socos e chutes desajeitados, rindo alto:

    — Vai, Aspezinho! Esmaga todo mundo! Vai, Aspenzinho, esmaga com um murro!

    Liara sorriu e fez um cafuné nos cabelos dele.

    — O-olha, n-não foca tanto em ganhar, tá bom? Só dá o seu melhor, e vamos estar aqui por você! — ela afirmou, tentando parecer confiante.

    Respirou fundo. 

    O papel no bolso parecia menos pesado agora.

    O coração ainda estava em chamas, mas era uma chama diferente: alimentada pela fé daqueles que acreditavam nele.


    O anfiteatro da guilda de Ariasken vibrava com um burburinho inquieto.

    Pais incentivavam os filhos, crianças imitavam movimentos de espada no ar, e alguns jovens competidores suavam frio na área de descanso.

    A arquibancada estava quase cheia, com um clima festivo e familiar. 

    Era um evento modesto, feito mais para moldar caráter do que para brilhar.

    No centro da fileira principal, erguia-se um pódio de pedra simples, apenas alguns degraus acima do restante, enfeitado com bandeiras da guilda. 

    Não tinha o luxo de um trono, mas bastava para deixar claro quem ali tinha o olhar mais importante. 

    Foi nesse espaço que Calista e Agnis se acomodaram, sob os olhares respeitosos dos presentes. 

    Sua posição lhes garantia visão plena da arena.

    No centro da arena, Hadrian aguardava de braços cruzados.

    A postura rígida, somada ao olhar severo, bastava para prender a atenção, mas foi sua voz que realmente dominou o espaço.

    — Silêncio.

    O comando ecoou naturalmente por todo o anfiteatro.

    O burburinho cessou na hora, as crianças congelaram nos assentos e até os pais mais exaltados baixaram os ânimos.

    — Através da autoridade concedida a mim como vice-líder da Guilda Pena Azul — declarou, suas palavras carregando um peso —, declaro aberta a primeira disputa da Competição das Jovens Estrelas.

    Houve um breve intervalo, o suficiente para o silêncio ganhar corpo, antes que ele prosseguisse:

    — Lembrem-se: esta não é uma luta até a morte. Ferimentos dolorosos podem acontecer, mas não devem ser temidos. Temos equipes preparadas para agir de imediato, e Mirna, nossa abjuradora, está aqui para garantir que nenhum de vocês carregue marcas que não possam ser curadas. Portanto, lutem com coragem!

    Um murmúrio de alívio percorreu discretamente a arquibancada.

    — Agora… Tiber, candidato número quarenta, contra Loric, o ex-campeão do ano passado, candidato número 12!

    Loric entrou primeiro, erguendo a espada com confiança.

    Seus pais, embora decepcionados pela introdução curta de Hadrian, saudaram seu filho com palmas entusiasmadas, às quais o garoto respondeu com um leve aceno de cabeça.

    Em seguida, Tiber surgiu, mas não carregava nenhuma arma. 

    Parou logo no início da arena, espreguiçando-se, e soltou um bocejo longo e sonoro, arrancando olhares confusos da plateia.

    O nobre apontou a espada para o jovem despreocupado.

    — Vamos fazer o seguinte: você desiste, e eu não preciso cortar esse rostinho pálido. Fechado?

    Tiber não respondeu.

    — Ei, tô falando contigo, seu maluco! Como ousa me ignorar!?

    — Hã? — Tiber ergueu o olhar, como quem nota uma mosca zumbindo. — Ah, era comigo? Foi mal, minha audição é péssima.

    — Eu tô lutando com um surdo? Tsc, essa competição já foi melhor!

    Loric avançou, deslizando pelo chão e estocando rápido. A lâmina passou rente à bochecha de Tiber, abrindo um risco fino.

    Ele esquivava por pouco, sempre no último instante, os ombros relaxados, o olhar entediado, lutando contra o sono.

    Na arquibancada, os pai de Loric fazia questão de gritar:

    — Isso, meu garoto! Mostre a eles sua disciplina! — Virou-se para sua esposa. — Viu, querida!? Eu disse que era bom investir no garoto! Já consigo ver nossas vendas aumentando novamente!

    Os cortes se acumularam. Braços, pernas, perfurações superficiais. Em minutos, Tiber estava coberto de sangue.

    — Hehe… consegue me ouvir agora? — Loric zombou. — Me ter como seu primeiro oponente, que azar, hein? Meus pais são donos da melhor ferraria da cidade. Ano passado eu venci a competição e nossas vendas subiram muito! Então, meu pai decidiu gastar um pouco mais comigo… — Seus olhos cintilaram num azul cortante. — e agora eu sou um pujante!

    A próxima estocada viria para encerrar a luta.

    Swin!

    Mas Tiber parou de recuar. 

    Agarrou a lâmina com a mão nua, o sangue jorrou de imediato. 

    — Então você tem dinheiro? E escondeu de mim esse tempo todo… — Tiber abriu um sorriso torto, os olhos faiscando de malícia.

    Sem hesitar, estendeu a outra em direção ao peito de Loric.

    A pressão que emanava dele era sufocante. 

    Mas o nobre agiu rápido. Lançou um chute no estômago de seu oponente, dando tempo de se afastar.

    O que foi isso…?

    A lembrança da mão estendida queimava em sua mente. 

    Ofegante, Loric fixou os olhos no adversário. Pela primeira vez, via perigo real.

    Esse cara… só agora tentou me atacar. Sua especialidade são agarrões? Bem, não importa. Vou acabar com isso agora!

    Ele abriu espaço entre as pernas e ergueu a espada.

    — Ei, plebeu! Considere-se sortudo… vai testemunhar isso em primeira mão!

    Indução de Aura Instável

    Linhas finas de aura azul correram pela lâmina. 

    O primeiro ataque foi horizontal. 

    Tiber inclinou-se completamente para trás, exibindo um equilíbrio formidável.

    As próximas esquivas vieram mais cadenciadas, mas o jovem se recusava a tirar a mão do bolso. 

    A lâmina da espada arrastava no chão a cada corte, deixando marcas visíveis no piso.

    Em mais uma passada, Tiber sentiu as costas baterem na parede. Loric estava com um sorriso imenso.

    — Você caiu na minha armadilha, seu merda!

    Swin!

    A estocada cortou o ar.

    CRACK!

    Em um estante, Loric estava prestes a atingir Tiber com um estocada. No outro, os fragmentos da lâmina voavam pelo ar, o som seco reverberando quando o nobre impactou contra o chão.

    Loric gritou, mas sua voz saiu abafada, cortada pela dor. 

    O osso do ombro deslocado para baixo, enquanto o cotovelo e o pulso se contorciam para direções contrárias.

    Saliva borbulhava na boca aberta, o rosto pálido de choque.

    Tiber olhou para baixo, ofegando apenas pelo prazer da cena.

    — Tão leve quanto uma boneca de pano, hein?

    As pessoas prenderam o fôlego. Alguns pais viraram o rosto, incapazes de ver o filho de outro homem naquele estado.

    Tiber não parou. Segurou o tornozelo de Loric e ergueu o pé.

    — Ainda não acabei.

    O garoto esperneava fraco, em prantos de dor. Tiber estava prestes a esmagar sua perna quando uma voz poderosa explodiu pelo anfiteatro.

    — Tiber!

    Era Hadrian.

    — Volte imediatamente para a área de descanso, se não deseja ser eliminado por má conduta.

    Tiber encarou os olhos intimidadores de Hadrian e soltou um suspiro, mantendo o sorriso divertido.

    Largou Loric, deixando-o tombar no chão, e caminhou devagar até a saída da arena, assobiando no caminho.

    Funcionários da guilda correram com uma maca, erguendo jovem ferido o mais rápido possível. 

    O garoto gritava em intervalos, sujo de areia e suor. Seus pais choravam, chamando pelo nome dele.

    Hadrian ergueu a mão, controlando o caos.

    — Ambos os participantes lutaram com garra. Vitória de Tiber — declarou com firmeza.

    Começou com um grito. E depois outro. De repente, parte da arquibancada estava vibrando pela luta, principalmente os jovens.

    Os lábios de Hadrian contorceram-se em desgosto.

    A violência é capaz de atrair e fascinar.

    Não importa se o sangue derramado pertence a um criminoso, a um guerreiro honrado ou a um jovem imprudente; o que importa é a força com que o golpe acerta, a brutalidade do impacto, o espetáculo da dor.

    Aquele que sabe subjugar o outro não conquista só a vitória, conquista respeito.

    Ideias belas não movem muralhas, não protegem aldeias, não calam inimigos. 

    O que dá voz a um homem é a sua força.

    No entanto, ninguém parece realmente questionar isso. 

    Pelo contrário: pais levam filhos para assistir torneios, aprendendo cedo a aplaudir o mais forte. 

    O mago que devasta se torna mestre, o pujante que resiste vira lenda.

    O que fica esquecido é que cada aplauso também é uma confissão: todos nós somos cúmplices, todos nós alimentamos esse fascínio.

    No fim, a violência é fruto do desejo.

    O guerreiro encarou Calista e Agnis lá de baixo. Quando seus olhos se encontraram, ele balançou a cabeça negativamente.

    Agnis, ao lado dela, comentou em voz baixa, para que só Calista ouvisse:

    Agnis inclinou-se ligeiramente para o lado, baixo o suficiente para que apenas Calista ouvisse:

    — Aquela técnica… Esmaga-Espírito?

    Calista não desviava os olhos de Tiber. O garoto se recostava no assento reservado aos competidores como quem despreza o mundo inteiro. Os dedos tamborilavam de leve sobre os joelhos, uma afronta silenciosa de indiferença.

    — Esmaga-Espírito… — murmurou, quase num sussurro para si mesma. — Uma técnica feita para aniquilar os três pontos de apoio do braço: ombro, cotovelo e pulso. Vem da antiga arte marcial nomeada por suas vítimas de Quebra-Cinzas.

    Agnis suspirou e ajeitou os óculos com um gesto cansado. O peso na expressão denunciava incredulidade.

    — Uma criança… dominando uma arte que nasceu das cinzas de uma guerra civil.

    O canto da boca de Calista se ergueu, mas não havia alegria no gesto — apenas a sombra de uma lembrança amarga.

    — “Parta o braço, e a vontade se partirá. Um guerreiro incapaz de empunhar uma arma não oferece perigo.” — citou em tom baixo. — Nunca pensei que veríamos de novo os rastros daquele homem… maldito seja, isso me traz memórias péssimas.

    Agnis manteve o olhar fixo em Tiber, como se tentasse medir sua força pela simples observação.

    — Pensei que só duas pessoas conheciam essa técnica em todo o continente. Espero que Hadrian não seja afetado por isso. Ele foi quem mais…

    — Não se preocupe! — interrompeu Calista, endireitando a postura. — Hadrian já perdeu para esse estilo antes, mas ele é teimoso! — Seu olhar voltou a Tiber. — Além disso, temos outras coisas para nos preocupar…

    A garota ao lado dele falava sem parar, gesticulando com raiva, mas o rapaz a ignorava por completo, seus olhos beirando a um desinteresse puro.

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