Capítulo 64 - A Sombra da Sorte
Aurora arregalou os olhos, processando as informações.
Afastou as mãos da mesa e cruzou os braços.
— Me conte sobre a Confraria da Sorte. Que tipo de atividades eles têm desenvolvido pela cidade?
Ele folheou o livro com um suspiro cansado, embora a informação parecesse vir de sua própria memória. — Há rumores sobre um tal de “herói mendigo” impedindo crimes e acabando com alguns criminosos nos subúrbios. Parece que ele tem mirado especialmente os membros da Confraria.
— Não foi isso o que eu perguntei.
Ele fechou o livro novamente. — O valor só paga essa distração.
Com um movimento brusco, ela puxou uma segunda bolsa de moedas, muito mais pesada que a primeira, e a jogou sobre a mesa.
Uma veia proeminente pulsava em sua têmpora.
— Poupe-me dessas besteiras. William, um traficante famoso de escravos, estava transportando muitas mercadorias em uma fortaleza próxima às Aldeias Vilkan. Onde ele está agora?
O Corvo acenou com a cabeça, o brilho das tochas refletindo na máscara.
Sua voz voltou a ser aveludada, mas com um toque de apreciação pela informação que estava prestes a entregar.
— William… — Ele começou, a pronúncia arrastada como se saboreasse o nome. — Sua ascensão recente atraiu olhares de várias alianças comerciais. Atualmente, ele é dono de uma taverna de luxo no centro de Sohen. Tem feito muito dinheiro usando acompanhantes de raças raras que chamam a atenção de diversos tipos de nobres.
Aurora assentiu, a informação sendo catalogada em sua mente.
Era a confirmação que precisava.
Sua postura manteve-se rígida, mas um leve movimento da cabeça indicou satisfação.
— Vou querer todas essas informações em um documento separado. Principalmente as da Confraria. — Ela empurrou a pesada bolsa de ouro para o lado do Corvo. — Além disso, há mais uma coisa que precisamos tratar.
Aurora levou o dedo indicador ao próprio pescoço, pressionando a pele onde a Carótida pulsava.
Um brilho azulado, quase febril, irrompeu ali.
As marcas da maldição de Algêros surgiram sob a pele.
O Corvo inclinou-se para a frente, observando o brilho com genuína, embora sádica, curiosidade. — … Isso… isso é…
Ele balançou o corpo para trás e para a frente na cadeira. — Hehehehe, me perdoe. É só que eu não esperava vê-la nesse estado. Isso é um contrato de escravidão? Logo você?
Aurora ignorou o insulto, focando na utilidade do diálogo. — Você é especialista em matrizes de mana. Me dê um preço e remova isso.
Os olhos por trás da máscara brilharam em um azul céu intenso.
Círculos mágicos esbranquiçados e translúcidos surgiram ao redor de Aurora.
Os círculos, antes inteiros, começaram a rachar e se quebrar um por um com pequenos ruídos de vidro estilhaçando no ar.
O Corvo soltou um sibilo por entre os dentes.
— Creio que isso não será possível, minha preciosa cliente. — Seu tom mudou, tornando-se surpreendentemente sério e profissional. — Não se trata apenas das matrizes. Toda a estrutura desse contrato usa runas de uma língua que eu desconheço. Talvez, se me permitir levar o problema para o Conselho…
— Esqueça. — Aurora se levantou imediatamente, o fim do assunto sendo declarado por sua decisão.
— Aurora! — O Corvo chamou, sua voz tingida de uma preocupação, mas escondida por um tom profissional. — Eu disse naquela época que você só tinha dois anos para encontrar a cura. Por que ainda não tratou isso? Acha que um Sanguivorus brinca em serviço?
— Isso não diz respeito a você — ela respondeu sem sequer olhar para trás.
O Corvo soltou um suspiro longo e melodramático, apoiando o peso do corpo nos cotovelos e observando as costas tensas da mulher.
— Tenho certeza de que já está sentindo os efeitos. Lhe restam poucos meses. Ouvi rumores de que existe uma curandeira excepcional nos Bosques de Thalorien, no território dos elfos da lua.
Aurora não respondeu com palavras. Ela parou de caminhar, virou a cabeça e o encarou por cima dos ombros.
Seus olhos encontraram a máscara, e ela assentiu duas vezes, firme e seco, um reconhecimento silencioso da informação.
Em seguida, ela continuou a subir a escadaria e desapareceu na escuridão.
O Corvo soltou um novo suspiro, desta vez um pouco mais divertido. Ele pegou as bolsas de moedas de ouro, mas antes que pudesse abrir…
Crack!
O corte presente na máscara havia espalhado uma mana fria, lentamente. A máscara rachou em vários pedaços congelados, caindo sobre a mesa.
Cabelos longos e avermelhados reluziram sob a luz das tochas.
— Esse é o jeito que me agradece? — A voz agora tinha um tom mais fino e sedutor, não mais abafada e transformada pela máscara. — Algumas coisas não mudam, hein?
Olaf parou, ofegante, ansiando por uma expressão desesperada do jovem por conta da violência.
Mas o que viu fez um arrepio em sua espinha.
Aspen o observava sem nem mesmo piscar, a expressão inalterada.
Isso o paralisou por um pequeno instante.
Tempo suficiente para que o jovem elfo o atingisse bem no meio das pernas.
Crack!
As jovens que assistiam à luta, muitas delas torcendo pelo ruivo, tamparam a boca com as mãos, os olhos arregalados em choque e horror.
Enquanto Olaf agonizava no chão, Aspen levantou, ofegando bastante.
Depois de longos segundos, Olaf também se ergueu, cambaleante.
— Pega o machado, Olaf — alertou o elfo, uma frieza metódica brilhando em seus olhos.
O lenhador piscou, recuando dois passos.
Esse cara… ele era só um bastardo qualquer! Eu via ele sendo humilhado todos os dias na rua! E ele está claramente em desvantagem!
— Eu não preciso dele pra ganhar de você! — disse Olaf, avançando na direção do elfo.
O golpe do lenhador, destinado a agarrá-lo mais uma vez, encontrou apenas o vazio. Em contrapartida, a mão do meio-elfo encontrou seu maxilar.
Seu pé firmou-se em um forte ponto de apoio. Aspen não lutou contra a força de Olaf; ele a direcionou.
A queda foi inevitável: Olaf foi arremessado, e sua cabeça impactou contra a parede de madeira da arena.
BAM!
Seus olhos só conseguiram acompanhar os passos calmos do garoto em direção ao seu machado. Ele o pegou do chão.
Não, ele não vai…!
Num arremesso preciso, o machado cruzou vinte metros da arena e se cravou no chão, entre suas pernas.
Swin! Stuck!
— Pega. O. Machado.
A adrenalina estava tão forte que o adolescente mal respirava direito.
Ele retirou o machado do chão e se levantou.
— Seu maldito bastardo… Tá se achando por que aprendeu umas técnicas estranhas?! — Ele cuspiu as palavras, apontando a ferramenta na direção dele. — Acha que isso vai salvar essa sua vidinha medíocre? Fala a verdade! Você mirou aqui porque o alvo era grande demais, não é!?
Após um segundo de silêncio, Aspen balançou a cabeça em decepção.
Então, fez o sinal de “pequeno” com a mão, entre o polegar e o indicador, mirando a parte íntima do lenhador.
Uma veia grossa e azulada pulsou na testa do ruivo, que rangeu os dentes, dividido entre o medo e raiva.
— Você tá morto!
Ignorando a dor incapacitante, ele rugiu, lançando-se contra Aspen enquanto empunhava o machado.
O loiro sequer piscou.
No auge do ataque, ele soltou o ar, inclinou o tronco levemente e moveu a cabeça.
Seu ombro esquerdo subiu e girou, o tecido da camisa roçando o ar. A lâmina do machado roçou levemente no ombro.
O lenhador, já sem controle, perdeu o equilíbrio com a força do golpe desperdiçado.
Naquele instante, a abertura estava lá: o queixo de Olaf, agora inclinado e totalmente exposto.
Aspen canalizou toda a sua frustração e o cansaço acumulado em um cruzado de direita.
BAM!
Desta vez, não houve tontura. Não houve raiva para superar.
Olaf parou no meio do passo, os olhos arregalados e completamente brancos.
O lenhador desabou como uma árvore cortada, atingindo o chão com um baque forte, completamente apagado.
A plateia vibrou.
Pessoas que nunca tinha visto na vida gritavam seu nome. Envergonhado, Aspen coçou a bochecha e exibiu um sorriso tímido.
Calista ainda mantinha os braços cruzados, o pé batucando contra o chão de pedra, enquanto os olhos brilhavam no espaço vazio onde o combate tinha acabado.
Um sorriso largo escapou antes mesmo de falar:
— Você viu!? Você viu!? Esse é o meu Aspenzinho! — a voz dela saltava de orgulho, como se fosse impossível contê-lo. — Lutando do jeitinho que eu ensinei!
Agnis, ao lado, deixou escapar um suspiro pesado. A testa se enrugou em um vinco de reprovação.
— Você não ensinou nada disso pra ele, sua lunática.
Calista balançou os ombros como quem não dava a mínima.
— Tsc, não se prenda aos pequenos detalhes! — retrucou, empurrando o ombro do mago. — Mas eu ensinei outra coisa! Só fico me perguntando por que ele não usou, no final…
Agnis desviou o olhar para Aspen, a cabeça balançando devagar, como se estivesse cansado daquela conversa.
— A essa altura, Calista, já devia ter entendido. — O tom dele veio mais baixo, sério, mas cheio de uma empatia que sempre atravessava. — Olhe para ele.
Aspen se afastava da arena, passos pesados pela exaustão, mas a cabeça virava discretamente em direção à plateia, os olhos varrendo as fileiras como se buscasse alguém específico.
Calista seguiu o olhar do garoto e estalou os dedos, satisfeita.
— Hazan… — murmurou, os lábios se curvando num sorriso sagaz. — Aquele carinha tem jeito com crianças.
Agnis arqueou a sobrancelha, a desconfiança nítida no rosto.
— Você percebeu? O estilo de luta dele… foi quase o mesmo.
Calista inclinou o corpo para frente, olhos semicerrados, revendo mentalmente cada movimento da luta.
— “Quase” é a palavra perfeita. — A voz dela soou mais séria agora. — Pode até lembrar, mas o garoto adaptou ao próprio estilo. O que Hazan mostrou no teste da guilda era algo mais… bruto, eu diria.
O silêncio caiu entre eles por alguns segundos, até que Agnis, com a mão no queixo, resmungou em voz baixa:
— Um nocaute acumulado… pequenos golpes que, juntos, derrubam gigantes. — O olhar dele endureceu, a comparação surgindo como uma lembrança amarga. — Parece coisa de caçador. Enfraquecer a presa até o último bote.
Calista abriu um sorriso torto, o queixo erguido com ar de provocação.
— E adivinha só com quem ele fechou contrato, heeeeein? — cantou, esticando a palavra de propósito, com o nariz empinado.
Agnis a fitou com mais seriedade do que antes, os olhos pesando.
— Você… acha isso certo?
O sorriso dela apagou aos poucos, e Calista endireitou a postura.
O olhar firme, dessa vez sem brincadeira, apenas o encorajava a continuar.
— Nós ignoramos aquele orfanato por anos… — ele continuou, as palavras saindo como se lhe custassem. — E agora, só porque as crianças mostraram algum talento, nós…
Calista ergueu a mão, cortando a frase no ar.
— Para aí. Não negligenciamos ninguém. Quem foi que recusou nossa ajuda, hein?
Agnis cerrou os lábios, o peso da memória estampado no semblante. Depois de alguns segundos, assentiu, com um aceno lento.
— Eu sei… Cassandra tinha seus motivos. Mas ainda assim…
— Agnis. — Calista o interrompeu de novo, mas agora o tom era grave, quase sombrio. — Ela escolheu o peso que queria carregar. E nós também. Não esqueça disso.
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