Índice de Capítulo

    O dia arrastou-se sob o som de golpes, quedas, aplausos e frustrações na arena da guilda.

    Jovens testando seus próprios limites, todos em busca da mesma prova social: de que existiam, de fato, por meio da força.

    Vencer era ser visto. Ser lembrado pelo seu feito.

    Entre os nomes que ecoavam nas arquibancadas, dois começaram a dividir o coração do público.

    Tiber, um prodígio da brutalidade.

    Enfrentá-lo significava correr o risco de ter os ossos partidos.

    Suas lutas acabavam cedo.

    Um ombro deslocado, algumas costelas fora do lugar, e bastava para que seus oponentes desistissem.

    Em algum ponto, tornou-se comum ver os jovens fugindo antes mesmo de lutarem.

    Dessa forma, Tiber avançava para as finais sem esforço algum.

    Do outro lado, Aspen brilhava de um modo diferente. 

    Havia técnica, sim, mas também chama, uma esperança inquieta que ardia nos olhos. 

    Sua luta contra Olaf acendeu algo na multidão. 

    Metade da plateia passou a gritar seu nome, movida por uma empatia que não sabiam explicar. 

    Em pouco tempo, o estilo de Aspen tornou-se símbolo do que aquela competição representava. 

    Um garoto jovem, com a habilidade e paixão necessária para subir na arena e dar o seu máximo para ganhar.

    Nenhuma de suas lutas foram fáceis. Mas o garoto prevaleceu até o fim.

    Quando a poeira baixou e o sol desceu, só restaram os dois.

    De um lado, Aspen, mãos enfaixadas, punhos cerrados, cabelos loiros dançando ao vento. 

    Os olhos azuis esbanjavam determinação.

    Do outro, Tiber, relaxado, dedos entrelaçados atrás da cabeça coberta pela touca. 

    Sua expressão era de um tédio puro.

    E então, o rugido da multidão dividiu o ar, metade chamando por esperança, metade chamando por caos.

    — Agradeço a todos por permanecerem conosco até o fim. Cada guerreiro que pisou nesta arena não enfrentou apenas seu oponente… mas a si mesmo. — A voz de Hadrian preenchia o espaço com emoção. — O caminho foi árduo, e muitos tombaram. Mas dois resistiram. Em honra à jornada de todos, farei uma exceção: este último combate começará de um modo especial.

    Por um instante, a plateia pareceu hesitar, sem entender o que ele pretendia. 

    Então, das sombras do anfiteatro, quatro funcionários surgiram, empurrando algo colossal sobre uma base de ferro. 

    A luz do entardecer refletiu no metal empoeirado, revelando o brilho antigo de um gongo dourado, enorme e ornamentado.

    Agnis arqueou a sobrancelha, encostado na mureta.

    — Não acredito que ele trouxe isso do nosso porão — murmurou, meio incrédulo.

    Calista, ao lado dele, exibiu um sorriso apaixonado.

    Hehe, parece que ele está se divertindo, né? Ele odeia bancar o apresentador, mas resolveu fazer cerimônia com o brinquedo da Irmandade do Punho

    — O “brinquedo” tem mais de duzentos quilos. — Agnis estreitou os olhos. — Aposto que os funcionários estão amaldiçoando ele por dentro.

    Agnis tinha os seus motivos para praguejar.

    Aquele gongo tinha uma estrutura dupla, onde existiam pequenos sinos pesados em seu interior. 

    Um som grave e harmonioso surgia sempre que alguém o tocava, medindo a potência do golpe pela quantidade de ressonâncias. 

    Uma ressonância era o equivalente a uma força de impacto de 400 quilos.

    Era bonito, mas nenhum um pouco prático.

    Hadrian caminhou até o centro da arena. 

    Suas botas levantaram um véu de poeira, e o silêncio se instalou.

    — Este gongo foi um presente da Irmandade do Punho, uma guilda digna da capital — disse ele, a voz carregando peso e respeito. — Hoje, ele marcará o início desta luta final.

    Posicionou-se diante do gongo, recuou o braço direito e contraiu o punho. 

    O ar pareceu prender a respiração junto com o público.

    O soco veio como um trovão.

    BOOM!

    O metal vibrou, a poeira saltou da superfície e o som se espalhou como um rugido de fera. 

    Um primeiro toque profundo fez os sinos internos vibrarem; veio um segundo, mais agudo; e um terceiro, ecoando por toda a arena.

    Quatro ressonâncias.

    O público explodiu em murmúrios. Aquilo era a prova incontestável: Hadrian ainda tinha o vigor de um pujante experiente.

    Agnis soltou um assobio baixo.

    — Quatro vezes… você fez duas durante a última conferência de guildas, não é? Isso significa que ele é mais forte que você?

    Calista cruzou os braços, os olhos brilhando ao observarem Hadrian. — Hmm… Isso não torna ele ainda mais charmoso?

    O curandeiro revirou os olhos.

    Enquanto o último eco morria, Tiber franziu o cenho, os olhos semicerrados, atordoado pelo som que ainda reverberava em seu crânio. 


    Ainda estavam a alguns quarteirões da guilda, mas a tensão já pesava no ar como o cheiro de chuva iminente. Lunna não conseguia manter o ritmo, e Hazan parou, notando a forma como ela esfregava as mãos.

    — Será que ele… ele vai ficar bem? — A voz dela era um sussurro contra o burburinho do festival.

    Hazan soltou um suspiro controlado, sem desviar o olhar do horizonte, como se pudesse ver a luta de Aspen de longe.

    — Já disse que Aspen sabe se virar.

    — Eu sei, Hazan, mas… — Ela deu um passo à frente, quase implorando. — Você não entende… O Aspen tem tanta coisa guardada… Tenho medo que ele acabe se machucando demais.

    Hazan finalmente a encarou, e havia algo mais sério em seus olhos, um reconhecimento momentâneo da verdade dela.

    — É natural que pessoas boas se machuquem.

    Lunna sentiu um frio percorrer a nuca com aquela simples afirmação. Ela o encarou com uma expressão de surpresa quase dolorosa, a imagem que a assombrava vindo à tona.

    — Você não estava lá… — Lunna começou, a voz oscilando. — A primeira vez que vi o outro lado dele. O sangue nas roupas… E o cheiro. — Lunna fechou os punhos. — A adaga na mão direita. Ele a segurava de um jeito tão natural que fez meu estômago revirar. Mas o pior de tudo, é o que ele carregava na mão esquerda…

    A garota tremia tanto que não teve coragem de terminar.

    — Sei que tem ajudado ele, mas… E se ele se decepcionar de novo? Tenho medo de que seus esforços não sejam recompensados, tenho medo de que ele fique estranho de novo… tenho medo de que…!

    Hazan não riu, não tentou suavizar. Em vez disso, ele a agarrou gentilmente pelos ombros, suas mãos fortes e calejadas firmando-a no lugar. A atitude dele era menos de carinho e mais de ancoragem.

    — Lunna. — A voz dele era baixa e grave. — A vida sempre cobra um preço. Essa é a regra do jogo. Aspen decidiu que não vai mais se curvar pro mundo. — Ele apertou levemente os ombros dela. — E nós temos que apoiar essa decisão, e não duvidar dela.

    A garota engoliu em seco, a apreensão ainda visível, mas a âncora de Hazan a impedia de afundar.

    Hazan soltou uma risada confiante, um retorno à sua persona de lutador. Ele bagunçou o cabelo dela com a mão.

    — Relaxa, garota! Vamos chegar lá e ver ele fazendo jus ao que eu ensinei. — Estufou o peito de forma exagerada, apontando para si mesmo com um polegar. — Ninguém nessa competição mixuruca é páreo para as minhas técnicas. Ninguém!

    Lunna respirou fundo, absorvendo a confiança arrogante e reconfortante dele. A imagem do Aspen ensanguentado não desapareceu, mas a certeza inabalável de Hazan havia traçado uma linha firme entre a escuridão e a esperança.

    Ela o encarou por um instante, e o sorriso que nasceu em seus lábios era genuíno, carregado de gratidão e um resquício de alívio.

    Após alguns minutos de caminhada, o prédio da guilda finalmente apareceu entre as luzes piscantes do festival.

    — Ai, não! Estamos muito atrasados! Será que vão deixar a gente entrar? — Lunna praticamente pulava de ansiedade.

    — Claro. Se não deixarem, eu… — Hazan ergueu o punho. — …dou um jeitinho.

    Ela o atingiu na costela, bem onde ainda doía.

    — Não! Nada de violência!

    Ele arqueou as sobrancelhas, uma gota de suor descendo pela bochecha.

    Essa pirralha é mais forte do que parece.

    A base da escadaria fervilhava com a alegria do festival. Havia um cheiro forte de álcool e outras especiarias que eram vendidas ali perto.

    Quatro homens guardavam a entrada do prédio. 

    Dois protegiam a base da escadaria, e mais dois bloqueavam as portas duplas. 

    Todos vestidos com o uniforme azul-escuro da guilda.

    — Parados aí. — O primeiro guarda, com uma cicatriz feia no supercílio, gesticulou com uma espada. — Ninguém pode entrar até o fim do evento!

    Lunna franziu a testa, a animação murchando.

    — Mas viemos ver a competição! Esperamos muito por isso!

    O segundo guarda varreu a multidão do festival em silêncio. Depois, seus olhos pairaram na dupla.

    — Bom… podemos abrir uma exceção, mas precisamos ver suas identificações primeiro — disse ele, abrindo um sorriso.

    Havia um dente de ouro presente na arcada dentária.

    Hazan assentiu, mantendo a compostura.

    Após entregarem as identificações, estudou o primeiro guarda em silêncio. 

    O uniforme era justo demais em algumas partes, e sua pele tinha marcas quase invisíveis de fuligem.

    Com o canto de olho, notou o segundo homem lançar um aceno quase imperceptível para os guardas da entrada principal.

    Ao devolver os cartões, a mão dele alisou o cabo da espada em um movimento sutil.

    — Podem subir. Divirtam-se. — O guarda fez um aceno displicente.

    Lunna sorriu, aliviada, e começou a subir o primeiro degrau. 

    Hazan agarrou sua mão, colocando-se à frente dela.

    — Sabem como vai a Almira? Cuidar da recepção era bem cansativo pra ela, imagino que esteja descansando bem. 

    Os guardas se entreolharam por uma fração de segundo. O primeiro guarda riu, forçado.

    — Ah, sim. Almira… estamos todos ganhando um extra por trabalhar durante o festival. Não se preocupe, garoto. 

    Hazan piscou lentamente, deixando o sorriso morrer. Seu tom se tornou perigosamente calmo.

    — Engraçado. Almira faz parte da Igreja de Unitas… E quem trabalha na recepção, na verdade, se chama Mirna.

    Os homens se entreolharam.

    O da frente levou a mão ao cabo da espada, mas era tarde demais.

    Hazan já estava em movimento.

    Segurou o punho do inimigo antes que a lâmina deixasse a bainha.

    [Cotovelada!]

    O homem cambaleou, cuspindo sangue.

    O segundo veio rápido, a adaga brilhando em seu flanco. Hazan reagiu sem olhar.

    Puxou o primeiro homem pela nuca, usando o corpo como escudo.

    A lâmina cravou-se no flanco do peitoral de couro, e Hazan avançou.

    [Cruzado de Esquerda!]

    — Lunna, atrás. — Sua voz era um fio de calma dentro da tempestade.

    A garota obedeceu, os olhos arregalados.

    Os dois lanceiros desciam os degraus, prontos para retaliar.

    Eles estão em um terreno mais alto. Preciso diminuir essa diferença.

    Flexionou os joelhos e avançou, oito degraus em um salto.

    Surpreso, o primeiro lanceiro estocou por reflexo.

    O lutador rebateu a lâmina com um chute curto, desviando o ferro para cima.

    A brecha veio instantânea.

    [Chute Frontal!]

    O agressor desabou com o impacto, e o corpo inconsciente rolou pela escadaria.

    — M-merda, seu maldito monstro!

    O segundo recuou meio passo, e lançou estocadas rápidas mirando a cabeça.

    Hazan movia a cabeça com calma, controlando o ritmo.

    Quando a lâmina do lanceiro passou rente à têmpora, bastou uma mão firme no cabo.

    As veias saltaram no antebraço, e um puxão violento o trouxe para perto.

    [Direto de Esquerda!]

    O corpo afundou na escadaria, o som violento atraindo atenção dos transeuntes no festival.

    Hazan desceu as escadas em direção a Lunna, uma preocupação visível nos olhos.

    — Eles não te machucaram, não é? — indagou, limpando a poeira imaginária dos ombros dela. — Tá doendo em algum lugar?

    A dragoniana recuou com um sorriso tímido. — N-não, eu tô legal… Mas acho que vi umas pessoas me encarando esquisito. Não que isso seja novidade, hehe.

    O silêncio pós-luta durou pouco.

    Algo rolou pelo chão, parando exatamente entre os dois. Hazan virou a cabeça.

    Um segundo bastou para reconhecer.

    — Mer-

    KABOOM!

    A bomba de fumaça explodiu, cuspindo cinzas e um cheiro forte de enxofre.

    A visão virou um borrão. Os pulmões queimaram, e a garganta ficou seca.

    É a mesma bomba que usei contra o Korgar daquela vez… merda!

    Tosses, gritos, passos, tudo se misturava em um caos indistinto.

    — Lunna?! — a voz dele falhou, perdida na névoa.

    Gritos das pessoas ecoavam através dos corredores da barraca. 

    Em meio ao caos, viu a silhueta de Lunna sendo levada à força por um puxão de cabelo.

    Cerrou os dentes e correu. Empurrou barracas, latas de lixo, pessoas, buscando alcançá-la sem se importar com o resto.

    A silhueta dela se distanciava, engolida pela fumaça.

    A cada passo, o corpo lutava contra o entorpecimento, os olhos lacrimejando e a falta constante de ar.

    Viu apenas o vulto de vários homens movendo-se em sincronia. E no meio deles, Lunna sendo levada, a luz dos chifres refletidos sendo sua única guia.

    Um deles virou, abrindo um velho pergaminho.

    Círculos mágicos amarelos surgiram no chão.

    E um clarão de luz ofuscou sua visão.

    Quando a fumaça se dissipou, restava apenas o cheiro do enxofre. As pessoas ao redor ajudavam umas às outras, buscando se recuperar do ocorrido.

    Hazan ficou ali, a mão estendida, o peito arfando. 

    Cerrou os dentes e se levantou, correndo até o local onde tinham desaparecido com ela.

    Havia uma carta com o brasão dos Ignis no chão. Pegou e abriu, forçando a vista para entender. Não entendia exatamente as palavras escritas, mas de alguma forma, compreendia o conteúdo.

    Amassou a carta com a mão. — Flint Ignis… Isso não vai acabar só com uns tapas dessa vez.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota