Capítulo 67 - Manipulação.
Aposentos de Flint
O quarto brilhava em tons quentes e aconchegantes. Tapeçarias rubras e laranjas cobriam as paredes de pedra polida; brasões bordados refletiam a luz do fogo da lareira.
O quarto inteiro era luxuoso, mas… claramente tinha seus problemas. Um tapete caro escondia arranhões velhos no chão, e pilhas de livros abertos e roupas finas amassadas denunciavam o dono preguiçoso.
Mas pela primeira vez em anos, estava realmente disposto a lidar com aquela bagunça.
Nos últimos dias, Flint se forçava a parecer disciplinado, um homem reformado, mas a verdade inconveniente era que todo aquele esforço de organização vinha de um acordo patético de criança mimada: arrumar o quarto garantiria tempo para umas partidas de A Arte da Guerra com Edwyn.
Um jogo de tabuleiro que simulava conflitos territoriais. Era uma simulação de alto nível, com cada peça podendo se movimentar de forma única pelo tabuleiro, e a vitória pertencia a quem conseguisse encurralar o Rei adversário.
Tinha sido concebido pela Nebulosa de Solaris para facilitar o desenvolvimento de suas táticas, mas rapidamente se tornou popular entre os nobres e transformado em um jogo acessível.
A questão, a verdadeira questão, é que Edwyn adorava testar suas habilidades neste maldito e fascinante jogo desde que era pequeno.
Flint nunca, nem uma única vez, conseguiu vencer o mordomo.
Contudo, em vez de zombar, Edwyn apenas sorria, e com um brilho gentil nos olhos, dizia que os conhecimentos daquele tabuleiro seriam essenciais um dia.
Flint tinha pouca fé nisso. Ele já tinha demonstrado ser um estrategista terrível na vida real.
Apesar disso, ele poderia estar no festival agora, bebendo e caçando confusão, mas isso já não era mais do seu interesse.
Encarou o tabuleiro organizado em cima de uma mesa, lembrando-se das tardes inteiras em que passava buscando uma única e mísera vitória contra o mordomo.
Quanto tempo faz desde que jogamos isso? De uns anos pra cá, ele nunca tem tempo por conta das responsabilidades dentro da mansão…
Só essa promessa bastou para trabalhar como nunca.
Algumas horas depois, o quarto parecia algo que poderia ser mostrado a terceiros sem vergonha.
Flint ajeitou o último livro na estante e recuou um passo, assentindo satisfeito.
Depois sentou, e esperou.
Esperou.
Esperou mais.
O relógio no canto da parede batia os segundos com audácia.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
Flint franziu o cenho.
Edwyn nunca se atrasa… Ele é sempre pontual. Alguma coisa tá errada.
Levantou-se e abriu a porta, quase atropelando uma empregada que estava plantada ali.
Ela se curvou imediatamente.
— Mil desculpas, Mestre Flint!
— Selena? — Flint arqueou as sobrancelhas. — O que está fazendo aqui?
Ele a observou enquanto ela hesitava na soleira da porta, uma jovem de cabelos cor de mel presos com uma fita simples, cujos olhos grandes e castanhos irradiavam uma gentileza que não combinava com o ambiente.
Flint nunca foi um bom exemplo de nobre ou de mestre; muito pelo contrário.
Seu comportamento era tão horrível que ele era temido e desprezado de forma quase aberta por todos os seus empregados.
Mas era diferente quando se tratava de Selena.
Ela era a única que fazia o trabalho com um sorriso genuíno no rosto.
— Ai! Err… Eu vim arrumar seu quarto, Mestre Flint — ela respondeu, mordendo a ponta da língua enquanto se inclinava levemente para espiar o cômodo.
A única que não o olhava com nojo quando ele quebrava algo, vomitava nos tapetes por estar bêbado ou desferia gritos hediondos nos serviçais.
Ela simplesmente encarava os problemas com um sorriso gentil.
Flint sentiu um desconforto cortante subir pela garganta. Ele engoliu em seco e desviou o olhar.
— Escuta, Selena, eu não tenho sido um cara muito legal nos últimos anos, então eu…
O rosto dela, porém, não estava focado nele. Os olhos castanhos, antes gentis, se arregalaram em uma admiração quase infantil enquanto inspecionavam o interior do aposento.
— Nossa, Mestre Flint! Você arrumou seu quarto!? — A voz dela ecoou alto, os olhos brilhavam como se ele tivesse acabado de realizar um feito épico.
Ele pigarreou, sem jeito. Sentiu-se ridículo por receber tal louvor por algo tão básico, e ao mesmo tempo, estranhamente… satisfeito.
— Eu… hã… sim, arrumei. De qualquer forma, você viu o Edwyn?
Selena voltou a si, o sorriso de admiração demorando a desaparecer.
— Hum… Vi ele saindo da mansão ontem à noite durante o festival, mas não o vi voltar…
Flint sentiu algo deslizar gelado pela espinha. Antes que pudesse perguntar mais, a moça ergueu um envelope.
— Ah… e chegou isto.
Flint arrancou a carta e a leu ali mesmo, sob a luz amarga do corredor. Cada linha que passava fazia seu maxilar travar.
Ao fim, a mão fechou sozinha. O punho voou contra a parede com um estrondo seco. A empregada se encolheu, assustada.
Ele respirou rente ao papel esmagado, mordendo o lábio até quase sangrar.
— Hazan… — rosnou entre dentes. — Você cruzou uma linha tênue!
Os olhos refletiam um fogo vivo e perigoso.
Os ecos do sino dourado atordoavam Tiber por mais tempo do que ele esperava.
— Ei… Qual é a droga do seu problema? — Tiber indagou, apontando com o indicador.
— Não é certo atacar alguém atordoado — Aspen respondeu com sinceridade.
Tiber lentamente abaixou o braço, uma veia pulsando na bochecha. Em um piscar de olhos, já tinha diminuído a distância.
Bam!
Uma joelhada brutal afundou na boca do estômago. Os pés de Aspen quase saíram do chão com o impacto.
O elfo recuou dois passos, ambas as mãos na barriga.
Que forte…! Espera, não posso me distrair!
Sentiu o vento do ataque em direção a cabeça, mas quando ergueu os olhos, notou o pé de Tiber parado bem na frente do seu rosto.
Ele parou…?
— Hehe, eu podia ter te acertado agora, mas não fiz. — Seu sorriso alargou-se enquanto recuava o pé. — Então estamos quites, velho amigo.
Todavia, o rosto de Aspen exibia confusão.
Seus olhos tremiam com aquela calmaria. Ele nem mesmo tinha tirado as mãos do bolso.
Cerrou os dentes e avançou, esticando o braço em golpes rápidos.
Jab! Jab! Direto!
Nenhum deles acertou o tatuado.
— Qual é, orelhão, eu esperava mais.
Bam!
A têmpora foi atingida em um impacto pesado, lançando-o pelo chão. Com o supercílio rasgado, soltou todo o ar do estômago e ergueu a guarda mais uma vez.
— Você… Você só está usando as pernas.
— Mais cedo, lá no banheiro… — ele começou, encarando os próprios pés — Você não lambeu minhas botas. — Tiber abriu um sorriso de orelha a orelha. — Então eu farei você fazer isso na frente de todas essas pessoas!
Tiber avançou novamente, fintando um chute baixo, e atingindo o elfo no queixo. O impacto foi doloroso.
Assim que caiu no chão, as pisadas começaram.
Alguns torciam por Tiber, enquanto outros o vaiavam pelo excesso de violência.
Aspen conhecia aqueles pisadas muito bem, frutos de uma época que tinha jurado esquecer.
— Se tornando arrogante depois de tudo que passamos juntos, isso é bem egoísta da sua parte, Aspen! — Tiber anunciou, sua voz eventualmente tornando-se um eco distante junto com o impacto das pisadas.
A terceira pisada trouxe junto o eco de uma memória antiga.
Uma chuva agressiva batia contra os telhados das casas.
As gotas batiam nas poças do beco como dedos impacientes sobre uma mesa.
Risadas ecoavam, jovens, mas cruéis.
Aspen, com as orelhas pontudas meio escondidas sob o cabelo loiro encharcado, tentava se levantar com teimosia.
Mas sempre que tentava, um pé o empurrava de volta contra o chão.
O corpo frágil tremia. O rosto estava sujo de barro.
Tiber estava acima dele. Cabelos prateados colados à testa pela chuva, e embora o olhar preguiçoso, o sorriso de quem adorava uma boa violência ainda estava presente.
— Você é burro… ou só gosta de apanhar, orelhão? — perguntou com um tom manso, quase amigável. — A vida é mais fácil se você só abaixar a cabeça e aceitar.
Aspen arfou, os lábios tremendo. Mesmo assim, o punho subiu, trêmulo e desesperado. Um soco que não tinha força nem direção.
Tiber não desviou. Apenas riu. Um riso curto, preguiçoso, como o de alguém que já tinha visto aquela cena dezenas de vezes.
A chuva descia firme, preenchendo o silêncio que veio logo depois.
Os outros garotos pararam de rir. O ar pareceu mais pesado.
Tiber se agachou devagar. A voz dele soou calma, didática, quase carinhosa.
— Sabe quantos ossos tem uma mão? — perguntou, segurando a mão de Aspen. — Vinte e sete. — Deu um pequeno sorriso. — 8 ossos ficam no pulso, 5 ossos ficam na palma… e 14 nos dedos.
Crack.
O som seco se misturou ao ruído da chuva.
Os garotos se entreolharam, inquietos.
Aspen mordeu o lábio até o sangue escorrer, recusando-se a gritar.
Ele nunca quis o gosto do ferro na boca.
E também nunca quis o calor úmido do sangue alheio escorrendo entre seus dedos.
A simples ideia de ferir outra pessoa causava arrepios na nuca, embora viesse acompanhada de uma uma sensação estranhamente familiar e proibida.
Permitir a humilhação. Engolir o escárnio.
Ser pisado e desprezado pelos pecados de uma raça que se julgava superior.
Nada disso era pior do que se render a um ato tão vil. Era seu credo. Era o que ele respirava.
Crack. Crack. Crack. Crack.
O barulho das juntas deslocando-se eram tão altas que o som da chuva parecia mais distante.
Tiber o observava em silêncio, os olhos prateados serenos, o rosto sem emoção.
Os garotos ao redor recuaram um passo. Um deles empalideceu, cobriu a boca e vomitou na lama.
O som do vômito ecoou, humano e sujo, quebrando o transe.
Tiber olhou para o chão, depois para Aspen, e soltou um suspiro leve.
— Viu? Até eles tão enjoados de te ver se esforçando. Grite, Aspen. Cumpra seu papel!
No fim, o que vale é a imposição. O que perdura é a sua vontade inscrita no osso do outro.
Moralidade? Senso de ética? A violência não precisa ser moral. Ela é eficiente.
O desejo é alcançado sem desperdício de tempo e a dignidade é mantida, não pela súplica, mas pelo terror.
Mas a força exige um custo terrível. Ela rasga a carne onde a palavra costuraria a paz.
Ela derrama o vermelho onde a gentileza plantaria sementes de trégua e de gratidão.
A chuva continuou caindo, ensurdecendo tudo.
— Por que não põe esse esforço em algo um pouco mais divertido? — Seu sorriso desenhou-se em um arco diabólico.
A mão de Tiber estendeu-se em sua direção, cobrindo seus olhos até que só enxergasse uma tela preta.
Minutos depois, estava sozinho no beco.
O rosto sujo de lágrimas e lama.
Golfava sem parar, o estômago pulsando de dor.
Atrás dele, havia restos de lama e vômito espalhados.
Por que suportava tudo aquilo?
De que serve a gentileza para o algoz que já te tem como alvo?
De que adianta quando a outra margem já decidiu que você deve ser humilhado e violentado?
O uso da força é o único direito que sobra, reservado àqueles que ousam tomá-lo.
Não...
Não existe violência que não seja, no fundo, uma tentativa desesperada de poder.
É o último recurso de quem se viu esvaziado de força; é a fúria do impotente.
Os dedos das mãos sofriam espasmos irregulares, mas tudo tinha sido colocado em seu devido lugar.
Bam!
Uma pisada o trouxe de volta para a realidade.
Tiber ergueu a perna visando pisar em seu estômago, mas Aspen rolou no chão, erguendo-se com rapidez.
Tiber sorriu, mas antes que pudesse pensar em uma provocação, Aspen encurtou a distância.
Direto! Gancho!
O primeiro golpe atingiu a boca do estômago, enquanto o segundo atingiu as costelas desprotegidas.
Tiber soltou um suspiro de dor enquanto cambaleava para trás, surpreso com o aumento repentino de velocidade.
Quando encarou o elfo, todavia, percebeu o motivo da mudança.
Seus olhos azuis deixavam escapar faíscas de aura.
— Seu merdinha… você se tornou um pujante?
Aspen ergueu a guarda.
Naquele instante, havia algo mais esvaziado de força do que ele mesmo?
Vou fazer isso. Vou fazer uso da violência.

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