A clareira diante da entrada da masmorra fervilhava de atividade. Humanos e anões trabalhavam lado a lado, carregando bolsas pesadas e coordenando os Lagartos-Dragões que aguardavam pacientemente, suas escamas robustas refletindo o brilho azulado das manalitas recém-extraídas. Havia um som ritmado de pás e picaretas golpeando a pedra.

    O grande portão da masmorra permanecia aberto, revelando a escuridão da caverna e os reflexos cintilantes das manalitas incrustadas nas paredes. Bolas de luz mágica flutuavam no teto rochoso, iluminando o interior o suficiente para que a extração ocorresse sem problemas.

    Hadrian, de braços cruzados, observava tudo com um olhar focado. A cada ordem sua, os trabalhadores se moviam, encaixando as manalitas em enormes bolsas de couro reforçado presas ao peitoral dos Lagartos-Dragões, que, uma vez carregados, partiam lentamente em direção à cidade.

    Três figuras emergiram da trilha, seus passos firmes abafados pela névoa rasteira.

    O líder caminhava à frente, com uma postura impecável e o olhar afiado de quem estava acostumado a dar ordens, não a recebê-las. 

    Cabelos loiros penteados para trás, olhos verdes determinados marcavam seu rosto fino. Sua armadura de couro estava envolta por uma capa grossa. Uma espada com decorações em ouro estava embainhada na cintura.

    Um homem caminhava ao seu lado, sendo alto e esguio, com maçãs esculpidas no rosto pálido. Cabelos desgrenhados de cor vinho cobriam boa parte de seu rosto. Suas roupas eram leves e de coloração escura. Haviam duas adagas na cintura.

    Uma mulher fechava o trio, os olhos vermelhos-acinzentados avaliando o ambiente com desdém. A postura rígida e o jeito meticuloso de ajeitar os óculos denunciavam sua paciência curta, o que não impedia que um brilho de interesse surgisse em seu olhar ao notar várias pessoas reunidas próximo à entrada da masmorra.

    O líder abriu um sorriso forçado ao ver Hadrian.

    — Hadrian! Que coincidência encontrar você aqui.

    Hadrian nem se moveu, mantendo a postura rígida e o olhar frio.

    — Darius.

    Os olhos do líder passearam pela extração antes de estreitarem levemente.

    — O que está acontecendo aqui?

    Hadrian permaneceu tranquilo.

    — A masmorra foi limpa. Estamos apenas recolhendo os recursos.

    Darius piscou, como se tivesse ouvido errado.

    — …Como é?

    — A masmorra foi limpa. — Hadrian repetiu, desta vez com um tom ligeiramente mais enfático.

    O homem soltou uma risada curta, sem humor.

    — Isso não era o combinado.

    Hadrian arqueou uma sobrancelha.

    — Sumir por uma quinzena também não era.

    O sorriso de Darius desapareceu.

    — Faltavam pelo menos três meses para essa masmorra se quebrar. Duas semanas não são nada comparadas a isso.

    Hadrian suspirou, desviando o olhar de Darius para a operação ao seu redor.

    — Eu não preciso explicar os motivos da guilda para alguém de fora.

    Os olhos dos dois se encontraram. Um silêncio carregado se instalou, como um fio de aço tensionado entre eles.

    Darius não recuou.

    — Quem limpou a masmorra?

    — Uma dupla. Um tahtoriano e uma polariana.

    O rosto de Darius se contorceu em irritação, sua mandíbula travando por um breve momento.

    — Dois isolados de terras distantes?

    A companheira de Darius ajeitou os óculos com um suspiro de desdém, enquanto o homem de rosto pálido balançava a cabeça em incredulidade.

    Darius respirou fundo e virou de costas, voltando-se para seus subordinados.

    — Vamos embora.

    Eles começaram a se afastar, mas, antes de dar mais alguns passos, Darius parou e olhou por cima do ombro.

    — Ah, só mais uma coisa…

    Hadrian permaneceu imóvel.

    Darius sorriu, mas havia algo frio no olhar.

    — Minha família esteve apoiando a Pena Azul por muito tempo. Espero que isso não tenha sido esquecido.

    E então ele se foi, deixando a ameaça pendurada no ar.

    O grupo se afastou da entrada da masmorra, caminhando pela floresta por longos minutos. 

    — Tannor, garanta que não há ninguém por perto.

    Tannor assentiu, fechou os olhos e seu corpo irradiou uma silhueta azul por alguns segundos. Um sorriso se formou em seu rosto com maçãs.

    — Não há ninguém, chefe.

    — Tannor, Mirielle… me respondam uma coisa. — Sua voz era arrastada, cheia de arrogância e desdém. — Nós treinamos por semanas. Gastamos uma pequena fortuna em suprimentos… e eles deixaram uma dupla de malditos forasteiros limparem a nossa masmorra?

    Darius respirou fundo, esfregando o rosto. Seus dentes rangeram de frustração.

    Eu precisava dessa missão! Maldição… Meu pai vai achar que sou um maldito indigno agora! Completar essa masmorra me faria ganhar respeito… Mas agora? Não restou nada! Masmorras nessa cidadezinha falida são raras, não dá pra saber quando haverá uma próxima!

    Tannor, sempre com um sorrisinho de lado, cutucou seu ombro.

    — Então, chefe… O que vamos fazer sobre isso? Acho que caçar alguns monstros seja uma boa ideia.

    Darius encarou o chão, e seus olhos brilharam com uma solução que lentamente se formava em sua mente.

    — Caçar alguns monstros… Perfeito, Tannor. É por isso que você é o meu batedor.

    Mirielle arqueou uma sobrancelha.

    — E como exatamente isso nos ajudaria?

    Darius sorriu. Um sorriso venenoso.

    — Porque esses monstros fracos que vamos caçar são o prato preferido de um monstro maior. E eu sei exatamente como atrair essa criatura até os idiotas que limparam a masmorra.

    Um sorriso desenhou-se nos lábios de Mirielle, que estava compreendendo onde seu líder queria chegar. 

    Darius continuou:

    — Vamos deixá-los ensopados no cheiro do jantar preferido desse predador, e quando ele sentir o aroma fresco de sangue… bem, ele vai ter um novo prato favorito.

    Mirielle sorriu de forma discreta, ajeitando os óculos.

    — Chefe, tecnicamente, eles não tem culpa de nada, sabia? Foi a Pena Azul que permitiu isso… Mas eu gosto dessa crueldade.

    Darius se levantou, ajustando a capa que usava sobre a armadura.

    — Crueldade? — indagou ele, com as sobrancelhas formando um arco irônico. — Eu prezo pelo meu reino, e não poderia deixar dois bárbaros mancharem as terras sagradas dos meus ancestrais. — Seu sorriso se alargou. — Esta é a atitude correta.

    — Ouvi dizer que as polarianas são de uma beleza… única — Tannor comentou, seu sorriso se alongando enquanto seus olhos brilhavam com uma intenção dissimulada. — Que tal nos livrarmos apenas do tahtoriano? Podemos vender a outra como escrava. Glaciem, o país da tempestade perpétua… Ouvi histórias em livros e nas baladas dos bardos, mas nunca imaginei que teria o privilégio de ver um deles pessoalmente.

    — Ah, então você só quer vê-la, não é? — Mirielle retrucou, cruzando os braços com um sorriso que misturava provocação e desdém. — Quantas prostitutas você não matou acidentalmente depois de se “empolgar” demais, hein?

    Tannor manteve o sorriso, sem hesitar. — Bem, se minha adorável e “tolerante” companheira de viagem me ajudasse a controlar esses “impulsos” que tanto a incomodam, talvez eu não tivesse esses pequenos deslizes… Hehe.

    Mirielle alisou os cabelos escuros para trás e estendeu a palma da mão, conjurando um círculo mágico avermelhado que girava rapidamente.

    — Repita o que acabou de dizer. Eu te desafio.

    Tannor abriu os olhos com um brilho divertido, mas foi Darius quem interveio.

    — Chega. — Sua voz grave cortou o clima tenso, soando como um comando definitivo.

    Tannor retirou as mãos das adagas, e Mirielle, com um suspiro irritado, cancelou a conjuração, o círculo se desfazendo com um estalo no ar.

    — Precisamos de um plano. — Darius concluiu com firmeza. — Vamos voltar para a maldita cidade e avaliar nossas opções.

    Enquanto os três seguiam em direção à cidade, sorrisos sombrios surgiram em seus lábios. Cada um deles sabia que, em algum momento, iriam cruzar a linha que separa a caça da selvageria. E isso era empolgante.


    O frio da madrugada ainda se agarrava às paredes de madeira quando abriu os olhos. O quarto permanecia mergulhado na penumbra, com apenas o ranger suave do vento contra as janelas quebrando o silêncio. Inspirou fundo, sentindo o cheiro levemente amadeirado das tábuas envelhecidas e o resquício de incenso que Cassandra sempre acendia antes de dormir.

    Desviou o olhar para o canto do cômodo, onde Aspen e Lunna dormiam no beliche. O pé da garota escapava do topo da cama, balançando levemente a cada respiração tranquila. Um pequeno detalhe bobo, mas que sempre o fazia sorrir de canto.

    A cama, improvisada no chão, continha várias camadas de mantas grossas. Elas o abraçavam com um calor confortável, um convite traiçoeiro para ficar mais alguns minutos. 

    A cada manhã, a mesma batalha: corpo e mente discutindo, um querendo se afundar no conforto, o outro sabendo que era hora de se mover.

    Com um suspiro cansado, puxou os tênis gastos para perto. As laterais desfiadas e a sola fina denunciavam anos de uso, mas ainda estavam inteiros. Vestiu a camisa preta recém-lavada, com costuras cuidadosas feitas por Cassandra, ajeitou o cordão no pescoço e, com um gesto automático, empurrou o pé de Lunna de volta para a cama após se levantar.

    Saiu sem fazer barulho, pisando de mansinho para não acordar ninguém. Lá fora, a madrugada estava mais fria do que o normal, o vento cortante carregando consigo um ar gélido.

    As ruas estreitas dos subúrbios de Ariasken ainda dormiam, mas Hazan já estava correndo. O ar fresco entrava nos pulmões e, em vez de um incômodo, trazia um vigor inesperado. Ele se agarrou a essa sensação, usando-a como combustível para seguir em frente. 

    O corpo doía. As canelas latejavam, os músculos protestavam e os ferimentos mal cicatrizados ardiam a cada movimento. Mas nada disso importava. Continuou.

    Quando finalmente alcançou o topo de um morro, a respiração estava pesada e a camisa encharcada de suor. O esforço valia a pena. Dali, podia ver o sol surgindo no horizonte, tingindo o céu com uma aquarela de laranjas e dourados. Ficou ali por um instante, observando. Sentiu o peito se expandir, um sorriso brotando sem esforço.

    Acenou positivamente para si mesmo e desceu o morro com passos firmes. O dia estava só começando.

    O treino começava logo depois, onde quer que houvesse espaço. Sombras de boxe e muay thai, movimentos rápidos e explosivos, um ciclo interminável de socos, esquivas e chutes. Algumas pessoas paravam para assistir, seja por curiosidade ou pela estranheza de um lutador usando golpes que elas sequer conheciam. 

    Na parte da tarde, pegava as missões mais empoeiradas no painel da guilda. Conserto de cercas, organização de toras de madeira. 

    Capinava quintais, manejava enxadas como se golpeasse um adversário invisível. Levantava troncos acima dos ombros várias vezes no dia.

    As pessoas começaram a conhecê-lo, não pelo nome, mas pela disposição incansável. Ele era o único da região que estava disposto a fazer missões que pagavam tão pouco. Falavam de sua resistência absurda, da maneira como trabalhava sem reclamar. Ele não falava muito, mas sua presença era notada. No fundo, fazia porque precisava se manter ocupado.

    Durante esses dias, não viu nem ouviu qualquer sinal de Aurora. 

    Às vezes, um aperto forte no peito o incomodava. Vinha sem aviso, como um soco inesperado, e vinha se repetindo com certa frequência. Optou por ignorar.

    Enquanto andava pelas vielas, pronto para matar sua fome, foi atraído por um aroma fresco de pães doces no ar. O murmúrio distante do mercado se dissipava ali, substituído pelo eco abafado de passos apressados.

    Hazan dobrou a esquina e parou. Aspen estava prensado contra a parede, o saco de pães quase arrancado de suas mãos trêmulas. À sua frente, um garoto mais velho, maior, com olhos brilhando em pura crueldade, segurava o outro lado do saco com um sorriso torto.

    — Isso não é seu — Aspen protestou, a voz falhando.

    O valentão riu, um som áspero, um sorriso de desdém.

    — Agora é.

    Antes que Aspen pudesse responder, o valentão observou uma sombra maior tampar a parede.

    Ele se virou, pronto para disparar algum insulto, mas as palavras morreram antes mesmo de tomarem forma. Seu olhar percorreu um estranho homem de pele morena clara, com um rosto selvagem e veias que saltavam dos braços. 

    Passou os olhos pelas cicatrizes e pelo braço esquerdo, oculto sob faixas gastas. Não havia ameaça explícita no olhar dele, mas sabia reconhecer desprezo quando o encontrava.

    O garoto hesitou. A garganta se contraiu num engolir seco, mas o orgulho ferido exigia reação. Então, num ímpeto impulsivo, lançou um soco apressado.

    O erro foi fatal.

    Hazan desviou com um passo lateral. O movimento foi tão simples que pareceu natural. Antes que o agressor percebesse, seu próprio peso o traiu. 

    Um toque certeiro no braço bastou para desequilibrá-lo. Num instante, o valentão se viu com o rosto contra a parede, o pulso aprisionado atrás das costas num aperto firme.

    A respiração acelerou.

    — Isso… Q-quem é você!? Por que tá se metendo aqui, hein?! — A voz trêmula não escondia o medo.

    Hazan se aproximou, sua sombra engolindo a do garoto.

    — Você valoriza os seus dentes?

    — O… O quê…? — Os olhos do valentão vacilaram.

    — Valoriza ou não?

    — C-claro que sim, cara! Me solta!

    O aperto se intensificou. O garoto se contorceu, o pânico estampado no rosto. A mão que o segurava parecia feita de pedra.

    — Ótimo. Então significa que essa foi a última vez que você encostou nele. Porque, se eu te pegar fazendo isso de novo… você vai viver à base de mingau pelos próximos meses. Entendeu?

    Aspen observava em silêncio. Por um instante, sentiu um lampejo de pena. Não era a primeira vez que aquele garoto lhe roubava, e sempre desejou que ele pagasse caro por isso. Mas, ao se deparar com situação, sentiu desconforto. 

    O valentão, com o rosto crispado de medo, acenava desesperadamente em súplica. Hazan manteve o olhar ameaçador antes de soltar o pulso do garoto. Sem hesitar, ele tropeçou para trás, virou-se e disparou pela viela, sumindo no horizonte sem ousar olhar para trás.

    O elfo soltou um suspiro baixo, abaixando-se para recolher os pães espalhados pelo chão. Seus olhos voltaram a Hazan, analisando-o com cuidado. Não sentia nenhum tipo de gratidão por aquela atitude. Ou talvez simplesmente não soubesse como expressar o que estava sentindo.

    — Não sei se foi uma boa ideia… — murmurou.

    Hazan arqueou uma sobrancelha, mas não respondeu.

    — Ele faz parte do grupo do Tiber — continuou Aspen, hesitante. — Eles não vão deixar isso passar.

    Apertou os pães contra o peito, como se o gesto pudesse protegê-lo da tempestade que sentia se formar no horizonte.

    — Torrada? — Hazan repetiu o nome com desinteresse, mastigando um pedaço de pão que Aspen sequer tinha visto ele pegar.

    Aspen balançou a cabeça. — É “Tiber”, droga! Ele… Ele lidera um bando aqui nos subúrbios. Costumam roubar, vandalizar… nada grande, mas o suficiente para incomodar. 

    Hazan cruzou os braços, analisando Aspen por um instante. 

    — Antes, ele me atormentava pessoalmente, todos os dias. Agora, só dá ordens e deixa que os outros entreguem o recado…

    O lutador engoliu a torrada e exibiu um sorriso relaxado.

    — Eu espero que eles venham. É melhor que venham.

    A expressão de Aspen se fechou.

    — Como assim, “melhor que venham”? Você não entende… Eles são muitos, e Tiber nunca joga limpo. Se ele souber que você me ajudou, vai vir com tudo.

    Hazan ergueu o olhar para o céu azul, como se refletisse sobre a ameaça. Então, voltou a encará-lo, um brilho despreocupado nos olhos.

    — Ótimo. Assim eu acabo com todos de uma vez só.

    Aspen prendeu a respiração. A resposta deveria tê-lo assustado, mas, por alguma razão, não assustou.

    Passou um momento apenas observando Hazan, como se tentasse compreendê-lo. No fundo, sempre desejou alguém que o protegesse — um irmão mais velho que estivesse ao seu lado quando precisasse. Mas a vida nunca lhe ofereceu favores.

    E ele não estava pronto para acreditar que, dessa vez, seria diferente.


    Quando voltaram para o orfanato, eles retornaram para as tarefas do dia. Os pequenos irmãos Zara e Rashid o arrastaram para o pequeno canteiro onde tentavam, com as mãozinhas sujas de terra, plantar legumes. 

    Hazan insistia em enterrar as sementes fundo demais, e era sempre repreendido pelas duas crianças. Com paciência, a dupla mostrou a forma correta de cobrir a terra, compactando levemente para que as raízes tivessem espaço. Quando terminaram, as crianças sorriam com orgulho de Hazan.

    Depois, ajudou Liara no jardim, regando as plantas com cuidado e retirando folhas secas. A garota, apesar de tímida, comentava sobre como as flores pareciam felizes quando eram bem cuidadas. Hazan não respondeu, mas sua expressão suavizou enquanto passava os dedos por uma pétala macia. Havia algo reconfortante naquele trabalho.

    Na cozinha, Lunna o recebeu com seu jeito carinhoso de sempre. Diferente de Hazan, que estava focado em realizar aquele trabalho da melhor maneira possível. Ele não queria apenas ajudar, mas testar seus conhecimentos de culinária ao realizar testes com os legumes e carnes que eles tinham. 

    Lunna cortou os vegetais conforme suas instruções, mexeu a sopa com paciência que ele exigia e lavou os pratos sem reclamar. O jantar ficou pronto, Lunna experimentou um pouco da carne cozinhada com batatas, que derreteram em sua boca sem qualquer esforço. A cozinha estava uma verdadeira bagunça, mas o jantar estava delicioso. Os dois se cumprimentaram batendo as mãos, comemorando aquela pequena vitória.

    Aspen, o mais meticuloso, precisou de ajuda para organizar a casa. Hazan seguiu suas orientações, movendo móveis para varrer os cantos esquecidos e dobrando as roupas dos irmãos. 

    No fim do dia, sentou-se no quarto dos irmãos, puxando as ataduras dos braços. As feridas estavam quase curadas. Passou os dedos sobre a pele nova e firme, sentindo-se mais forte. 

    Eu com certeza me sinto mais forte. Gostaria de poder confirmar, mas… Não. Se aquela maldita tela aparecer de novo, ela com certeza não vai me trazer boas notícias.

    Essa estranha ausência parecia com a calmaria antes da tempestade, e Hazan não gostava disso.

    Só se passaram três dias, mas eu estou praticamente curado… Desde a provação contra aquelas estátuas, eu sinto que meu corpo não é mais o mesmo. O que exatamente aconteceu comigo?

    Antes que pudesse refletir mais, uma voz o interrompeu.

    O ranger suave da madeira denunciou sua presença antes mesmo que sua voz soasse. Encostada no batente da porta, braços cruzados, Cassandra o observava com olhos afiados, avaliando cada detalhe.

    — Essas cicatrizes. — A voz saiu firme, mas sem hostilidade. — De onde são?

    Hazan não respondeu de imediato. Enrolava as ataduras em seu antebraço com movimentos meticulosos, desviando o olhar como quem pesava as palavras.

    — A maioria foi feita por um guarda maluco que enfrentei numa fortaleza.

    Cassandra franziu levemente o cenho. Não parecia satisfeita com a resposta, mas também não insistiu. Em vez disso, entrou no quarto com sua cadeira de rodas, estudando-o com a calma característica.

    — Você não é um tahtoriano.

    A afirmação veio sem hesitação. O ar ficou mais denso. Hazan manteve-se em silêncio, apenas continuou enfaixando o braço, mas seus movimentos tornaram-se mais lentos.

    — Já conheci um. Você não tem o sotaque deles. Suas artes marciais também são… diferentes. — Cassandra inclinou levemente a cabeça, observando sua reação. — Não me importo com seu passado, contanto que não faça mal às minhas crianças.

    Os olhos de Hazan encontraram os dela. Diretos, firmes, sem hesitação.

    — Nunca faria mal a elas. E também nunca disse que era um tahto… isso aí que você falou.

    Ela sustentou o contato por um instante antes de soltar um suspiro contido.

    — Não me interprete mal. Só estou preocupada com meus filhos.

    Aquela palavra ficou no ar por um momento. Hazan relaxou minimamente os ombros, assimilando a seriedade do que ela dizia.

    — Eu entendo. — Havia respeito em sua voz. — Mas por que me confundem tanto com eles?

    — Os tahtorianos são guerreiros do Deserto de Tahtoa. Vivem em tribos no sul. Caçam e se alimentam de monstros do deserto. Eles têm pele morena, um físico impressionante e… usam artes marciais diferentes de tudo que as pessoas estão acostumadas a ver.

    Um breve silêncio se instalou antes que Hazan soltasse um suspiro baixo.

    — Para ser honesto… não sei quem sou. Não lembro do meu passado. Apenas de técnicas de luta e algumas memórias distorcidas que surgem de tempos em tempos.

    Os olhos de Cassandra suavizaram. A dureza em sua expressão cedeu espaço a algo mais… humano. Mais comovido.

    Ela se virou, dirigindo-se para a janela, onde a luz fraca da noite se derramava sobre o chão de madeira. Ficou ali por um momento, contemplando o lado de fora antes de falar, sua voz mais baixa.

    — Sabe… Quando comprei este lugar, há alguns anos, tudo que eu queria era uma vida pacata em uma cidade distante. — Seus dedos deslizaram suavemente pelo parapeito. — Mas acabei assumindo uma responsabilidade maior do que imaginava.

    Hazan a observava agora com mais atenção.

    — No começo, achei que bastava manter um teto sobre suas cabeças, garantir comida e segurança. Mas… não demorou muito para perceber que eles precisavam de mais. Precisavam de alguém que estivesse ali para eles, alguém em quem pudessem confiar.

    Ela soltou um riso abafado, quase melancólico.

    — Jamais pensei que um dia me chamariam de ‘mãe’. — O olhar dela se perdeu por um instante na noite além da janela. — Mas aquelas crianças me deram isso. E agora…

    Cassandra se virou para ele, sua postura endurecendo levemente. Um peso diferente preenchia sua voz quando continuou:

    — Eu faria tudo por elas.

    Hazan entendeu cada palavra dita e não dita.

    — Eu entendo. — Sua resposta foi simples, mas sincera. — Enquanto estiver aqui, pretendo cuidar deles também. Se acontecer alguma coisa, você pode pedir minha ajuda.

    Por um momento, Cassandra apenas o encarou, arregalando levemente os olhos. Aquela era uma resposta que não esperava. E isso lhe deu motivos o suficiente para compartilhar uma informação importante.

    — Talvez… eu conheça alguém que possa ajudá-lo. Alguém que pode ajudar a recuperar suas memórias.

    Hazan ergueu o olhar. Um fio de esperança brilhou em meio à incerteza.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (8 votos)

    Nota