Índice de Capítulo

    Cerca de três dias se passaram.

    Não posso dizer com certeza… por causa da natureza peculiar das favelas.

    Quando o sol nascia, a torre próxima bloqueava a luz e, quando a escuridão caía, o local era apenas fracamente iluminado pelas lanternas dos catadores.

    As favelas sempre foram um lugar vago, sem distinção entre dia e noite.

    Claro, ele estava em más condições físicas por outros motivos.

    Uma dor constante percorreu seu corpo. Sua consciência estava à beira de desaparecer.

    Vera estava deitado em um estado em que não seria estranho morrer a qualquer momento, então ele não conseguiu medir o tempo.

    “Tosse…!”

    Assim que ele tossiu, Vera sentiu seu peito sufocar enquanto ele ofegava por ar.

    “Huh…!”

    Respirando fundo novamente, ele examinou as condições do seu corpo e imaginou que, naquele ritmo, não duraria muito.

    ‘…Uma semana no máximo.’

    Ele morreria neste lugar.

    Além da maldição, seus ferimentos eram graves. Ele precisava de tratamento médico imediatamente, mas não estava em uma situação em que pudesse pagar por isso.

    Vale a pena ver este espetáculo.

    “Você está bem?”

    A santa cega que havia perdido seu poder, Renee, estava perdendo o juízo.

    Em outras palavras, não havia como ele sobreviver.

    “…Naturalmente, não estou bem.”

    “Espere um minuto.”

    “Ugh…!”

    Quando a mão de Renee tocou seu peito, um gemido saiu da boca de Vera novamente.

    Vera reprimiu seus gemidos e olhou para Renee, que exalava uma divindade que logo se esgotaria.

    “Pare de fazer coisas inúteis. A Santa não percebe que não há esperança?”

    “Você nunca sabe.”

    Era um tom determinado.

    Vera olhou para Renee, lutando para impedir que sua consciência desaparecesse novamente.

    ‘…Mulher estranha.’

    O que Vera sentiu ao ficar com ela por um curto período foi que ela era uma pessoa muito incomum, o suficiente para merecer o apelido de monstro.

    Ela tinha marcas de queimaduras que distorciam sua aparência original a ponto de ficar irreconhecível, e saía mendigando com seus olhos cegos.

    Tudo o que ela recebeu foi uma tigela de mingau que era pior do que ração para gado, que ela saboreou como se fosse uma iguaria.

    Era um ato que Vera não conseguia entender.

    Por que ela faria isso? Enquanto vivia como mendigo nas favelas, a coisa que Vera mais comia eram restos e comidas podres, então era impossível para ele não conhecer o gosto.

    O mais engraçado é que ela não comeu tudo, apesar de saborear.

    Depois de algumas colheradas de mingau, ela despejou o resto na boca de Vera, que não conseguia se mexer, desperdiçando-o em vez de saciar sua própria fome.

    Sim, foi um desperdício.

    Não havia necessidade de tanto desperdício.

    Vera pensou.

    Ele morreria em breve. O ferimento havia se tornado tão grave que não poderia piorar, e ele não sabia quando pararia de respirar.

    Então Vera repetidamente lhe disse para deixá-lo morrer.

    “Você nunca sabe.”

    Essa foi a única resposta que ela lhe deu.

    Vera notou Renee empurrando uma colher em sua direção, desviou o olhar para o ar e murmurou algumas palavras.

    “Eu não sabia que a Santa era uma idiota.”

    “O que você quer dizer?”

    “Se você tivesse vivido sua vida inteira como uma Santa, você não saberia o estado do meu corpo melhor do que eu? Mas… Já que a pessoa que mais deveria saber continua fazendo coisas tão sem sentido, não seria natural para mim pensar na Santa como uma idiota?”

    Ele desejou que ela simplesmente o jogasse fora, mas estava irritado por ela estar se apegando a ele de forma tão tola.

    No entanto, Renee não se preocupou com a atitude de Vera e empurrou a colher em sua direção novamente.

    “Você nunca sabe. Não é possível que depois de comer esse mingau, você se recupere e se levante?”

    “O que…!”

    “Coma primeiro.”

    Vera sentiu suas entranhas se retorcerem enquanto olhava para Renee.

    Renee estava olhando para o ar com seus olhos desfocados, balançando sua colher na posição em que a boca dele deveria estar.

    “…Você é uma tola.”

    “No Reino Sagrado, tal tolice é chamada de amor.”

    “A Santa gosta de observar alguém que morrerá em breve?”

    “Eu sei que amor não significa necessariamente luxúria.”

    As marcas de queimadura foram empurradas para cima, formando rugas. No final do olhar de Vera, Renee estava sorrindo.

    “O Senhor disse para amar o próximo. Como posso me afastar dela como alguém que já foi sua serva mais favorecida?”

    “Bem, se o Senhor fosse uma pessoa tão amorosa, eles teriam tido pena da Santa e não teriam deixado você em um lugar como este.”

    Vera zombou dela duramente. Claro, ela não seria capaz de ver a expressão no rosto dele, mas ele fez isso só porque queria rir dela.

    “Foi minha escolha.”

    “Santa, nas favelas, eles chamam essas pessoas de idiotas.”

    “É um prazer. E não é Santa, é Renee.”

    Ela respondeu com um sorriso.

    ****

    Provavelmente já se passaram dois dias ou mais.

    Renee estava mais uma vez segurando uma colher nos lábios de Vera.

    “É nojento.”

    “Você é um paciente.”

    “Tola…”

    “Sim eu sou.”

    A boca de Vera se fechou.

    “Apresse-se e coma.”

    Vera observou a colher balançando em volta do rosto dele. Ele exalou brevemente, levantou a cabeça e comeu.

    “Bom trabalho.”

    Vera foi elogiado. Seu olhar então se voltou para Renee.

    Era um rosto sorridente. Vera agora conseguia distinguir suas expressões.

    Vera olhou para aquele sorriso e pensou.

    ‘Ela é uma mulher realmente estranha’, ele murmurou interiormente .

    Não havia nenhuma obrigação ou responsabilidade dela em fazer isso, mas, vendo o quão bem ela estava cuidando dele, parecia apropriado expressar dessa forma.

    Renee parecia tão horrível que ele nem conseguia considerá-la uma Santa elogiada por todos.

    Um rosto horrível e cheio de cicatrizes que faria um estranho gritar e fugir. Olhos azuis que podiam ser vistos através das órbitas oculares mal abertas. Cabelo branco que havia perdido o brilho, coberto de sujeira.

    Se ela tivesse saído daquela forma desde o começo, ela deveria ter sofrido todo tipo de insultos, mas não demonstrou nenhum sinal de tristeza.

    Apenas um sorriso.

    Era a única coisa pairando sobre seu rosto.

    Vera não conseguia entender nada, então ficou extremamente curioso e fez uma pergunta a Renee.

    “…Você não se arrepende?”

    “O que você quer dizer?”

    “Desistir do seu poder.”

    Se ela não tivesse desistido de seus poderes, ela não teria que viver assim. Mesmo se a guerra estourasse no continente, ela estaria segura.

    Enquanto ele olhava para Renee com tal pensamento, ela riu e respondeu.

    “Não me arrependo de nada.”

    “Por que?”

    “Por que você acha que vou me arrepender?”

    Quando ela o questionou em resposta, Vera ficou sem palavras.

    Não era que ele não tivesse nada a dizer. Pelo contrário, havia tanto a dizer a ponto de ficar sem palavras por não conseguir expressar de forma adequada.

    A vida nas favelas era tão miserável e feia que nem podia ser chamada de vida.

    Eles passavam fome todos os dias, as favelas eram imundas e não havia muro para impedir que o vento gelado os congelasse até a morte no inverno.

    Mas por que você não tem medo disso?

    Por que você não perde os momentos de esplendor?

    Por que você aceita isso com um sorriso?

    Enquanto Vera relembrava tais pensamentos, ele permaneceu em silêncio.

    “…Sabe, houve um tempo em que eu realmente conseguia enxergar.”

    Ouvi tal fato.

    Um tom suave. Renee, que abriu um sorriso gentil, continuou.

    “Em uma idade muito jovem. Eu tinha cinco ou seis anos, uma criança que nem tinha perdido a gordura de bebê. Até então, como todo mundo, eu podia ver a luz do mundo com meus próprios olhos.”

    O que saiu da boca dela foi uma história sobre o passado de Renee.

    “Eu era filha de um fazendeiro. A vila em que eu vivia era uma pequena vila rural no canto do Reino Oriental de Horden.”

    Era uma história que Vera não conhecia. Isso porque, naquela época, ele não tinha interesse em descobrir mais sobre a história pessoal dela.

    “Há algo de que ainda me lembro vagamente. Flores desabrochando em todas as cores em um dia quente de primavera, o sol radiante no verão, campos de trigo tingidos de dourado na temporada de colheita e um mundo branco puro quando o inverno estava a todo vapor.”

    Renee fechou os olhos e continuou com um leve sorriso, como se tentasse relembrar os momentos que estavam flutuando em sua mente.

    “Tudo era incrível. Eu também estava feliz. Depois de me tornar uma Santa, eu estava feliz em viver para os outros, mas… Egoisticamente, se eu tivesse que escolher o momento mais feliz da minha vida, eu escolheria esse momento.”

    Palavras ditas com um sorriso. Mesmo enquanto Vera permanecia em silêncio, Renee continuou a falar.

    “Então, quando de repente fiquei cega um dia, senti como se meu mundo estivesse desmoronando. Parecia que meu mundo brilhante tinha caído nas profundezas do abismo.”

    “Acho que a Santa também é um ser humano.”

    “É claro que sou um ser humano.”

    Foi um comentário sarcástico, mas ela o deixou ir tão suavemente quanto sempre.

    “De qualquer forma, acho que passei tantos anos chorando. Pensei que era a pessoa mais infeliz do mundo, que o mundo era cruel apenas comigo.”

    Vera pôde simpatizar profundamente com essas palavras.

    É porque ele pensou assim no passado.

    Não era só ele. Todos aqueles nas favelas, no fundo de sua miséria, viveram com tais pensamentos.

    Enquanto ele pensava, as palavras de Renee continuaram.

    “Naquela época, o estigma do Senhor estava gravado em mim.”

    Era uma história que Vera conhecia bem.

    Como ele não poderia. O continente virou de cabeça para baixo quando o estigma do Senhor, que não aparecia há quase 400 anos, apareceu no corpo de uma jovem que tinha acabado de entrar na puberdade.

    Para Vera, era um fato bem conhecido porque era o período em que ele estava unindo todos os cartéis nas favelas e começou a negociar com os nobres imperiais.

    “No começo, eu os ressentia. Embora fosse blasfêmia, eu pensava que o Senhor havia tirado minha luz e me jogado aquele estigma como compensação. É por isso que eu os culpava.”

    “Se os sacerdotes do Reino Sagrado ouvissem isso, ficariam chocados.”

    “É um segredo guardado no fundo do meu coração.”

    “Você pode me dizer isso facilmente? Entendo, vou morrer em breve, então não importa.”

    Quando Vera, que ouvia a história a todo vapor, disse algo sarcástico, Renee se atrapalhou e pressionou a mão contra o peito de Vera para fechar sua boca.

    “Ughh…!”

    “Isso não é bom. Você tem que pensar em melhorar.”

    Vera olhou feio para Renee, mas, novamente, encarar alguém cego não tinha sentido.

    Renee riu por um momento e continuou.

    “Então, enquanto eu vivia uma vida cheia de ressentimento, parei nas favelas.”

    “É a primeira vez que ouço falar disso.”

    “Era um segredo, claro. Houve um tempo em que eu secretamente me aventurei para compartilhar meu poder pelo continente.”

    Renee falou assim, lambeu os lábios por um momento e então continuou.

    “Era um lugar onde havia tanto desespero que até eu conseguia perceber sem olhar. O som da morte, os uivos de dor, o cheiro de sangue e sujeira, o ar úmido na pele. Tudo isso foi um choque para mim.”

    As órbitas oculares ligeiramente abertas mostravam pupilas azuis que haviam perdido a luz.

    “Naquela época, depois que cheguei às favelas, senti vergonha pela primeira vez na vida. Mesmo sabendo que seria errado simpatizar, ver as pessoas que moravam aqui me fez perceber o quão feia e infantil eu era, e me senti envergonhada.

    Mais uma vez, um sorriso surgiu nos lábios de Renee.

    “Foi a primeira vez que pensei em uma emoção que não fosse ressentimento. Além disso, tive essa ideia. Talvez a razão pela qual o Senhor tirou a luz de mim foi porque ela queria que eu compartilhasse essa luz com eles.”

    “…Isso é um grande salto lógico.”

    “Pode ser. No entanto, isso importaria mesmo se fosse? Não é importante que eu tenha obtido tal realização? Então, não me arrependo de viver aqui agora. Embora eu tenha me tornado uma existência muito fraca, ainda sou muito grata por poder ajudar alguém com este corpo.”

    O olhar de Vera se voltou para Renee.

    Um rosto sorridente. Era uma expressão desprovida de qualquer ruga.

    De repente, Vera, que estava olhando para Renee, percebeu por que seu estômago embrulhou quando a viu pela primeira vez.

    ‘…Santa.’

    Percebi por que ela era chamada assim.

    Como a Santa era uma pessoa com tamanha nobreza, isso fez seu estômago revirar.

    Ele ficou tão perturbado com a nobreza dela, que era diferente dele, que pisoteava tudo o que via a todo momento, temendo retornar para as favelas e morrer de fome.

    Vera tentou desviar o olhar de Renee e fechou os olhos.

    De repente, a miséria percorreu seu corpo.

    Nem uma vez sequer em sua vida ele imaginou sentir arrependimento. Naquele momento, por causa daquela mulher miserável, o arrependimento floresceu dentro dele.

    Claramente, essa situação deveria ser tão difícil que a faria vomitar, e como ela costumava viver uma vida melhor do que essa, ela deveria estar ainda mais desesperada.

    “…Uma lunática.”

    “Fico feliz em ouvir isso”

    Um simples som de risada fez o estômago de Vera revirar novamente.

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