Capítulo 158: Hodrick (2/3)

Não demorou muito para Vera entender as palavras de Hodrick.

Havia um significado claro por trás de suas palavras.

‘O Apóstolo da geração anterior…’

Ele era o Apóstolo do Juramento da última geração. Era isso que ele estava dizendo.

Vera ficou sem palavras. Não lhe ocorreu nada sobre como responder àquela afirmação.

Enquanto isso, Hodrick, como se estivesse arrependido das palavras que havia dito, saiu apressadamente depois de dizer.

“…Eu falei algo que não devia. Parece demais para você, então descanse por hoje.”

Vera deveria tê-lo impedido de sair, mas ele não conseguiu.

Por um longo tempo, Vera olhou para as costas de Hodrick, que desapareciam, com uma expressão atordoada no rosto.

***

Pensando bem, fazia sentido.

Embora não fosse algo em que ele tivesse pensado, a existência dos Apóstolos sempre esteve presente desde que a terra foi criada. Não seria estranho se houvesse pelo menos um que tivesse se tornado um morto-vivo, incapaz de se livrar de seus apegos persistentes ao longo daquela extensa história.

Tarde da noite.

Sentado à mesa em seus aposentos designados, Vera esfregou o rosto com a mão, relembrando os últimos sete anos e meio que passou no Reino Sagrado.

Como ele havia encontrado inesperadamente um apóstolo da geração anterior, ele precisava reunir informações sobre quem exatamente era Hodrick.

No entanto, havia pouca chance de que ele encontrasse uma resposta.

‘…Os registros dos apóstolos anteriores estão proibidos de serem lidos.’

Isso não se aplicava apenas aos registros sobre os Apóstolos, mas todos os registros relacionados à história do Reino Sagrado eram inacessíveis até mesmo ao Imperador Sagrado, Vargo, e à Santa, Renee.

Isso foi declarado na Constituição do Reino Sagrado, que foi ordenada pelos próprios Deuses.

A única exceção, se é que houve alguma, foram os Apóstolos da Sabedoria desta época.

Enquanto Vera continuava ponderando, ele finalmente chegou a uma conclusão.

‘…Preciso reunir informações.’

Como a atitude de Hodrick não parecia sugerir que ele estivesse disposto a revelar sua identidade diretamente, seria mais rápido descobri-la coletando informações por meio dos mortos-vivos neste castelo.

Com apenas um pouco de reflexão, não foi uma tarefa difícil.

Considerando os Dullahan que escolheram Hodrick para enfrentá-lo como prova na entrada do Berço, ou o Espectro que os guiou quando entraram no castelo pela primeira vez, ficou claro que eles não estavam tentando esconder a identidade de Hodrick.

‘…Eles devem saber de alguma coisa.’

A atitude de Hodrick ao criticar a maneira como Vera usava seu poder era definitivamente a de alguém que conhecia a verdadeira natureza do poder.

Se ele não fosse responder sozinho, Vera teria que investigar mais a fundo e confrontá-lo para obter as respostas.

– Você faz um juramento tão facilmente.

Vera precisava descobrir o que aquela afirmação significava.

No quarto escuro, os olhos cinzentos de Vera brilhavam enquanto ele continuava pensando por um longo tempo.

***

Coletar informações não foi tão difícil.

Como Vera esperava, os mortos-vivos do velho castelo responderam às suas perguntas sem hesitação.

– Senhor Hodrick? Bem, não tenho certeza, mas… Ouvi dizer que ele viveu neste castelo até mesmo durante o período que o mundo exterior chama de Era dos Deuses.

– Ele é o modelo de todos os cavaleiros! Em vez de liderar com palavras, ele sempre demonstra isso com ações!

– Quando ele está sozinho, ele sempre parece triste. Hein? Como eu vejo a cara dele com o capacete? Tem uma cabeça dentro do capacete? Fuu, é só uma figura de linguagem. Você não sabe o que é uma metáfora? Você deve ser um completo idiota perto de mulheres, né?

Havia alguns mortos-vivos que ocasionalmente faziam discursos, a maioria sem sentido, mas Vera conseguiu reunir informações significativas no final.

— Talvez ele fosse um Paladino… É o que achamos. O Senhor Hodrick ensina Lady Jenny e sempre vai à igreja no mesmo horário todos os dias para rezar. Ah, pensando bem, você provavelmente consegue vê-lo na igreja agora mesmo!

O fato de Hodrick estar ensinando artes divinas para Jenny, a Apóstola da Morte, e que ele ia à igreja para rezar todos os dias no mesmo horário.

Esta foi a evidência mais clara de que Hodrick era um clérigo que serviu ao Reino Sagrado e sabia como lidar com o estigma.

Claro, mesmo com essa informação, Hodrick ainda poderia tentar negá-la, mas Vera estava confiante. Ameaças e interrogatórios eram tarefas familiares e fáceis demais para Vera.

Uma pequena igreja ficava no extremo esquerdo do salão, quando se olhava da entrada do antigo castelo.

Ao entrar no prédio, que parecia bastante deslocado considerando que aquela era a terra dos mortos-vivos, Vera encontrou Hodrick rezando com a cabeça baixa no centro da igreja.

A visão de um cavaleiro de armadura negra, com uma aura mortal emanando dele, ajoelhado diante de uma cruz parecia igualmente estranha.

Enquanto Vera observava em silêncio, Hodrick falou sem mudar sua postura ajoelhada.

[…Você não reza?]

A pergunta surgiu do nada.

Vera sentiu algo perfurando seu coração enquanto ele respondia.

“…Não sinto necessidade disso.”

Sua voz tremeu, pois ele não havia parado para orar nenhuma vez desde que deixou o Reino Sagrado. A reação veio naturalmente.

Hodrick soltou uma risadinha com a resposta de Vera.

[Ah, Lushan ficará decepcionado.]

“…Se ele ficasse decepcionado com isso, não teria me dado o estigma.”

[Isso também está correto. Os Deuses Celestiais deviam saber que tipo de pessoa você era antes de lhe concederem o estigma.]

Hodrick se levantou, virou-se para Vera e perguntou com indiferença.

[Então, você aprendeu um pouco sobre mim?]

Uma pergunta que sugeria que ele sabia o que Vera estava fazendo. Quando uma expressão de surpresa cruzou o rosto de Vera, Hodrick riu e acrescentou:

[Você sabia? Os mortos-vivos aqui são idosos que viveram por pelo menos algumas centenas de anos. O Berço é um lugar verdadeiramente imutável. A mesma rotina se repete todos os dias, e você só encontra as mesmas pessoas. Então, o que você acha que os idosos fazem quando estão entediados? As fofocas deles aumentam a cada dia. Principalmente quando forasteiros como você os visitam.]

Quando Hodrick se aproximou de Vera, ele terminou de forma brincalhona.

[Eles falam sobre o que os outros fazem o dia todo e a noite toda… Não, como é sempre noite no Berço, a expressão ‘o dia todo’ seria mais apropriada. De qualquer forma, eles falam sobre os outros o dia todo. Claro, o que você anda fazendo também chegaria aos meus ouvidos.]

Vera soltou um som de frustração com a explicação de Hodrick.

[A razão pela qual não os silenciei é porque…]

Hodrick parou por um momento, olhando para Vera antes de responder.

[…Mesmo que eu continue evitando, acho que você não vai desistir. Não é mesmo?]

“…Não vou negar.”

[Eu sabia. Lushan gosta de pessoas teimosas.]

Hodrick sorriu com uma atitude um tanto despreocupada, sem ficar tenso, em silêncio ou negar, mas sim participando calmamente da conversa.

Vera pensou que talvez Hodrick tivesse resolvido algum conflito interno do qual ele não tinha consciência, e então trouxe à tona o assunto principal.

“Quero te perguntar uma coisa.”

[Vá em frente.]

“Você se lembra do que me disse? Sobre por que eu faço um juramento tão facilmente.”

[Minha memória não é tão ruim a ponto de eu já ter esquecido o que disse no dia anterior.]

“…Quero saber o significado por trás dessas palavras.”

Por fim, Vera fez a pergunta e olhou para Hodrick com a boca fechada.

Vera fez essa pergunta com o maior respeito, pois Hodrick talvez tivesse uma compreensão mais profunda desse poder do que o própria Vera. Hodrick permaneceu em silêncio por um longo tempo antes de responder.

[Não há outro significado. Como eu disse, você está abusando demais desse poder. É por isso que eu disse isso.]

Hodrick olhou novamente para a cruz na frente da igreja e então continuou em tom de murmúrio.

[Na verdade, eu queria esconder. Não há garantia de que qualquer conselho que eu lhe der tenha uma influência positiva em você, certo? Mesmo que eu revelasse que fui um Apóstolo da geração anterior, isso não passaria de me gabar, certo? Além disso, como alguém que fracassou e se tornou um dos mortos-vivos, minhas palavras podem ser veneno para você.]

Em suas palavras claras e silenciosas, parecia haver um sentimento de arrependimento.

[Eu não deveria ter dito isso… mas no momento em que vi você lutando, foi como se eu estivesse olhando para o meu eu do passado e as palavras simplesmente saíram. Eu estava envergonhado do meu passado, onde lutei daquela forma, e nem percebi que estava falando aquelas palavras.]

Vera ouviu o longo preâmbulo em silêncio.

[De repente, pensei que, se eu não fizesse nada, você poderia acabar no mesmo caminho que eu. Então, refleti e tomei uma decisão. Compartilharia a história desse fracasso com você.]

“…Você se considera um fracasso?”

[De fato, eu falhei. É por isso que me chamo disso. Espero que, depois de ouvir minha história, você siga um caminho diferente do meu.]

Hodrick disse isso e dirigiu-se aos bancos da igreja. Sentou-se e gesticulou para Vera.

[Por favor, sente-se. Não cheguei a um ponto em que posso me confessar aos Deuses? Diante de uma plateia tão generosa, tentarei revelar minha história sem esconder nada.]

Seu tom era brincalhão, mas o arrependimento subjacente era insuportavelmente pesado.

Sem dizer mais nada, Vera seguiu as palavras de Hodrick e sentou-se ao lado dele.

Hodrick olhou para Vera por um momento, depois olhou para a cruz e começou sua história.

***

Cavaleiro da Liberdade Hodrick Felisman.

Terceiro filho de um nobre caído, marido da bela Della e pai do adorável Usher.

Ele se lembrou do passado. Era uma época em que ele era apenas uma pessoa comum e, ainda assim, o homem mais feliz do mundo.

Foi a história do estigma dos oito traços que mudou sua vida.

[Naquele dia… o dia em que recebi o estigma, jurei viver pela minha família acima de tudo. Eu empunharia minha espada para ser um marido que pudesse orgulhar minha esposa. Eu empunharia minha espada pelo sorriso do meu filho. E, ao fazer isso, rompi um muro que pensei que nunca seria capaz de atravessar em vida.]

Ele recitou momentos que permaneceram vívidos, mesmo que tenham se tornado memórias distantes.

[Eu estava feliz. Além disso, sentia uma sensação de responsabilidade. Minha mente estava tomada pelo pensamento de que eu tinha que cumprir o peso do meu juramento. Então, fui para Elia com minha família. Lá, começamos nossa nova vida.]

Ele recitou coisas que se tornaram seus apegos persistentes.

[Depois de receber a revelação, viajei pelo continente. Conheci inúmeras pessoas e vivenciei inúmeras coisas. A cada vez, eu aumentava meus votos. Eu acreditava que o motivo pelo qual recebi o estigma era por esse motivo.]

Ele jurou empunhar sua espada para os pobres.

Ele jurou empunhar sua espada em nome daqueles que não podiam se defender.

E ele jurou empunhar sua espada pelos pais que desejavam proteger seus filhos, por aqueles que amavam seus pais e por aqueles que desejavam proteger seus entes queridos.

[E assim, ganhei um poder que ninguém poderia superar.]

Suas palavras cessaram. Hodrick teve que reunir todas as suas forças para acalmar o coração furioso antes de continuar.

As palavras continuaram depois que ele mal conseguiu suprimir o ressentimento que tentava aumentar sua aura cadavérica.

[Enquanto as chamas do caos devastavam o continente, percebi que algo estava errado.]

“…Guerra, você quer dizer.”

[Sim, foi uma guerra longa. Ironicamente, eu, que gostava de fazer votos vazios, me tornei alguém que não conseguia empunhar uma espada contra ninguém. Todos no mundo se tornaram alguém que eu tinha que proteger.]

As palavras seguintes foram os arrependimentos persistentes que fizeram de Hodrick um espectro.

[Mesmo aqueles que tentaram prejudicar minha família.]

Era uma risada de autodepreciação.

[Esqueci de algo. Na guerra, todos são vítimas e vilões. Aqueles que prejudicaram minha família também eram assim.]

‘É a natureza humana. O fato de que os fracos também podem ser maus, que amar alguém também pode machucar outra pessoa, e que aquele para quem eu apontava minha espada também era aquele que eu tinha que proteger.’

O homem tolo, que não havia compreendido verdadeiramente o peso de seus votos, só entendeu depois que as coisas que ele precisava proteger se foram.

[Só então percebi como é fácil fazer um juramento, mas como é difícil cumpri-lo, talvez mais difícil do que qualquer outra coisa no mundo. É por isso que eu não conseguia proteger nada, assistindo impotente enquanto meu mundo desmoronava ao meu redor, forçado a sofrer sozinho em meio às ruínas.]

Depois de terminar sua longa história, Hodrick olhou para Vera.

[Então, espero que você não trilhe o mesmo caminho que eu. Espero que você seja mais cauteloso do que qualquer outra coisa ao fazer um juramento. E espero que você não veja seu poder apenas como um milagre conveniente para usar.]

O que se seguiu foi um conselho e, ao mesmo tempo, um aviso.

[Em outras palavras, não faça muitos juramentos.]