Capítulo 165: Confronto (2/3)

Em meio à coexistência de três emoções conflitantes no mesmo espaço, Annalise nutria suspeitas devido à flagrante dissonância que sentia na conversa entre os dois indivíduos.

Era uma suspeita bem fundamentada. Ela não os observava há muito tempo, mas já sentia claramente que o Apóstolo do Juramento era alguém que não podia fazer nada contra as palavras da Santa. Portanto, a situação atual parecia estranha de certa forma.

Annalise não apagou a suspeita crescente, e sua mente trabalhou para encontrar a causa.

‘Eles brigaram? Não, não é isso. Dizer que brigaram… o temperamento dele em si parecia diferente… Então, provavelmente é um problema mais fundamental do que isso…’

Magia que interfere na personalidade ou disposição de uma pessoa.

Habilidades únicas que podem interferir nos processos cognitivos.

Annalise ponderou todas essas possibilidades em sua mente enquanto continuava seu processo de pensamento e conseguiu chegar a uma inferência.

Afinal, ela era ninguém menos que a Mestra da Torre de Aurillac.

Embora confiasse no poder do soro, seu profundo conhecimento de habilidades únicas lhe permitira até mesmo interferir nos poderes de Vera durante a luta. Portanto, ela podia cogitar tal hipótese.

‘…Distorção cognitiva?’

Para ser mais preciso, o processo de tratamento da distorção cognitiva.

Como a distorção cognitiva deveria ser usada em um alvo dormindo e não em alguém acordado, havia uma grande probabilidade de que estivesse correta.

‘Um feitiço, hein…’

Lembrando-se do conteúdo dos papéis que ela estava folheando enquanto pesquisava o soro de Alaysia, Annalise desabafou sua irritação.

‘…Mas não serve.’

Tentar encaixar o que ela sabia no estado atual de Vera levou a uma discrepância inexplicável.

Se Annalise estivesse em um corpo humano, seu rosto sem dúvida mostraria uma carranca profunda. Seus pensamentos estavam se tornando mais complexos.

‘Se eles estão tentando curar a distorção cognitiva, eles deveriam ter trazido à tona as memórias de quando ele era uma criança bem pequena…’

Obviamente, aquele bastardo deve ter estado no Reino Sagrado o tempo todo.

Não era esse o caso? Se sua cognição estivesse distorcida no Reino Sagrado, ele não tentaria tratá-la junto com Renee?

Pensando bem, a parte que eles estavam consertando era, sem dúvida, algo que aconteceu antes de ele ter um apego ao Reino Sagrado… Em outras palavras, devia ser da infância dele, mas a maneira como ele falava e agia era assustadoramente próxima à de um adulto, mesmo que ele devesse ser apenas uma criança na época.

Continuando seus pensamentos enquanto integrava as informações reveladas até então, Annalise de repente sentiu uma faísca em sua cabeça.

‘…Espere.’

O Apóstolo do Juramento afirmou que foi escolhido por Orgus.

A atitude que parecia prever o futuro.

Além disso, parecendo mencionar deliberadamente o tempo rebobinado.

Para Annalise, que já foi considerada o maior intelecto do continente, integrar essas pistas com seu conhecimento existente para chegar a uma conclusão significativa não foi uma tarefa difícil.

[…Há.]

Um som não intencional escapou de seus lábios devido à sua sensação de descrença.

Com isso, as cabeças de Vera e Renee se voltaram para Annalise.

Olhando fixamente nos olhos dos dois indivíduos focados nela, Annalise foi consumida por uma profunda confusão.

‘…Será que eles poderiam ter sobrescrito memórias de antes do tempo ter sido rebobinado nesta linha do tempo?’

Ela queria dizer que aquilo era um absurdo, mas… Tal pensamento explicava tanto sua aparência atual quanto o que a fazia suspeitar.

Era só isso?

‘Talvez…’

A chave para proteger o futuro que ela achava que já estava distorcido e impossível de salvar pode estar bem na sua frente.

No momento em que percebeu isso, Annalise sentiu esperança, mas também um profundo vazio.

‘…Não fui eu?’

A salvação pode ser possível.

Contudo, não foi ela quem fez isso acontecer.

O fato de que um pirralho ainda inexperiente pudesse ser a chave para a salvação e não ela mesma, que era louvada como a maior intelecto, aquela que alcançou as portas da Providência e era chamada de figurão da época atual, era algo que fazia Annalise, que era a personificação da autojustiça e da arrogância, sentir um vazio enorme.

O silêncio se instalou.

Para Annalise, foi um silêncio causado pelo sentimento de ter sua vida inteira negada, e para os outros dois, foi um silêncio causado pela tensão gerada pela mudança repentina no comportamento de Annalise.

Annalise olhou fixamente para Vera.

‘Um bastardo como ele?’

Mais uma vez, ela negou a ideia.

Entretanto, mesmo em meio a essa negação, no fundo do seu coração, havia uma resposta que sussurrava: “Sim”.

Por mais que tentasse menosprezá-lo, o fato era que o movimento final que Vera demonstrou durante a batalha na Aurillac era de um reino que ela ainda não havia alcançado, nem mesmo em relação à Providência. Pelo menos ela não podia negar esse fato.

Ela percebeu que talvez a chave para a salvação estivesse realmente naquele garoto sem noção e não nela.

[Idiota…]

Renee inclinou a cabeça ao ouvir a veemente maldição de Annalise.

‘O que foi?’

Foi um gesto que surgiu por reflexo, enquanto ela se perguntava por que aquela velha bruxa maldita tinha ficado daquele jeito de repente.

Quando Renee estava prestes a dizer algo, Annalise soltou uma palavra que era quase um maldição.

[…Suma daqui.]

“O que?”

[Eu não te disse pra cair fora? Acho que além de não enxergar com os olhos, seus ouvidos também não funcionam?]

“O que…”

Uma risada vazia escapou dos lábios de Renee.

“Vovó, a senhora tinha demência? Por que está agindo assim comigo de repente?”

Quando a inflexível Renee respondeu sem pestanejar, Annalise sentiu sua irritação aumentar e disse:

[Menininha, você não tem algo a dizer? Minha cabeça está uma bagunça agora, então eu disse para você sumir da minha vista. Por que você não consegue entender?]

“Desculpa. É porque uma velha está dizendo isso? Não consigo ouvir bem as palavras.”

[Sua puta desgraçada.]

O corpo de Renee estremeceu.

Foi uma reação que ela teve porque nunca tinha ouvido uma maldição tão forte dirigida a ela.

Ouvindo em silêncio a conversa entre os dois, Vera deu uma risada vendo Renee sendo empurrada para trás, e os olhos de Renee queimaram de raiva quando ela ouviu isso.

“Você está rindo?”

“…”

Depois de controlar sua expressão inconscientemente, Vera percebeu tardiamente que ele estava agindo como um ‘cachorro bastardo’, como Annalise havia dito, e sentiu que seu orgulho estava ferido.

Era uma reação que o corpo lembrava e não a mente, então isso também era algo que o Vera atual não tinha ideia.

[Essas coisas do caralho…]

Sentindo-se ainda mais autodepreciativa ao testemunhar os dois agindo como palhaços de rua por um breve momento, Annalise suspirou e pronunciou essas palavras. Renee, sentindo-se envergonhada por algum motivo, abaixou a cabeça.

Em seguida, Renee deixou escapar um diálogo que seria adequado a um vilão de terceira categoria.

“…Bem, vamos dar uma pausa por hoje.”

Renee disse isso porque sentiu que Annalise não estava disposta a conversar naquele momento e também porque sentiu que Annalise estava mudando de ideia por algum motivo.

[Sim, por favor. Por favor, suma daqui. Eu quero organizar meus pensamentos.]

Renee se levantou.

Com uma mistura de frustração e irritação, ela virou as costas com um bufo de desdém.

“Mão!”

Quando ela gritou de repente, Vera colocou a mão sobre a dela, pois seu corpo também se lembrava daquele gesto.

Só depois que eles saíram pela porta é que Renee percebeu que tinha mostrado a ele um comportamento feio.

***

Vera franziu a testa ao ver Renee, que estava arrancando os cabelos desde que conheceram o Mestre da Torre.

‘O que diabos ela está fazendo?’

‘Ela é louca?’

A Santa do Reino Sagrado não está apenas doente físicamente, mas também mentalmente?

Eram pensamentos que lhe ocorriam porque ele não conseguia ver nada consistente no comportamentos que estava vendo.

Mas Vera, que não suportava dizer isso, apenas manteve a boca fechada dessa vez e encarou Renee.

“Ugh…”

Um gemido de dor escapou de Renee mais uma vez.

Seu rosto corado, acentuado pelos cabelos brancos, obscurecia a visão de Vera.

‘…Seu rosto parece perfeitamente normal.’

Pensamentos que Vera nunca havia considerado em sua vida, como o quanto viver com alguém poderia ser tão exaustivo, flutuavam em sua mente.

“Por mais quanto tempo você ficará assim?”

“Euugh… Sim?”

“Não consegui interrogá-la direito, então o acordo continua válido. Tem mais alguma coisa que você quer de mim? Se não houver nada, eu quero ir embora. Não seria melhor para a Santa também se eu não estivesse ao seu lado?”

“Como assim? Mesmo que eu fique com Vera o dia todo, não é o suficiente.”

O olhar de Vera se estreitou.

“O que?”

“Ah, foi um deslize. Finja que não ouviu.”

‘Qual era o sentido disso quando já tinha sido dito?’

Vera soltou um suspiro involuntário para a criatura incompreensível chamada Renee, e então ele se sentiu frustrado.

Não havia outro motivo.

Foi por causa de algo que ele estava fazendo antes de vir para cá.

‘Vai ser um problema se eu ficar ausente por muito tempo.’

A temporada de leilões começaria em breve.

Isso significava que era a época de selecionar os escravos recém-trazidos e avaliar as relíquias.

Portanto, perder tempo em um lugar como esse, onde não havia mais nada a ganhar, estava fora de questão.

‘Como eu saio…’

Além do fato de que este lugar era o Berço, A Santa usou um método desconhecido para mudar o conteúdo do juramento, de modo que ele não pudesse se mover sem permissão.

‘Se ela sabe como mudar, ela também saberia como reverter.’

E assim, Renee, cujo corpo tremia de vergonha, e Vera, cuja perna tremia de impaciência, sentaram-se frente a frente na sala de recepção.

“Renee!”

Aisha abriu a porta e entrou.

Renee levantou a cabeça de repente.

O olhar de Vera também se voltou secretamente para Aisha.

“Uma garota-fera?”

No final de sua linha de visão estava uma garota-fera, uma gata, com pelos cor de forsítia.

‘Ah, uma garota de recados?’

Percebendo a filiação da garota através do uniforme de sacerdotiza que ela usava, Vera desviou o olhar dela, e os olhos de Aisha brilharam.

Foi uma reação que surgiu quando ela percebeu que a conversa que Norn e Miller tiveram antes de ela vir para cá era verdadeira.

– Parece que o Senhor Norn pode descansar um pouco hoje porque A Santa está encarregada do Senhor Vera enquanto ele está consciente.

– Ah, que bom. Gostaria de tomar uma bebida?

– Parece bom~!

Hoje foi o dia em que Vera fez o ritual.

Aisha, cuja mente já havia transformado o ‘ritual de Vera’ em sinônimo de ‘uma chance de encontrar algo para provoca-lo’, não podia deixar passar a oportunidade.

“Aisha?”

Quando Renee chamou Aisha com uma voz surpresa, Aisha fez um formato de boca triangular, característico dos gatos, puxou algo no ar e gritou.

“Eu trouxe a Jenny também~!”

“Hueek…!”

A coisa em sua mão era Jenny, a Apóstola da Morte.

Vera olhou para Aisha que sorria radiantemente e Jenny, que suava frio enquanto revirava os olhos ansiosamente, e então disse palavras provocativas enquanto levantava apenas um canto da boca.

“A Santa montou um berçário no Berço?”

O rosto de Aisha se iluminou ainda mais.

Guiando Jenny com passos saltitantes, Aisha sentou-se ao lado de Renee e olhou para Vera com olhos brilhantes.

Vera sentiu seu humor piorar diante do olhar brilhante de Aisha.

“O que é?”

“Hã? Nada!”

Ela parecia muito feliz enquanto balançava a cabeça vigorosamente.

Foi uma expressão tão forte que fez Vera querer ‘dar uma sacudida na testa’ dela sem nem perceber.

Vendo o comportamento óbvio de Aisha, Renee percebeu o que Aisha estava pensando e respondeu com um sorriso estranho.

“Hm, e Hela?”

“Ela está treinando!”

“Que tal Krek e Ma…”

“Bebendo com Norn e Miller!”

‘É isso, não tem guardião…’

Renee desistiu rapidamente.

Na verdade, mandar Aisha embora era a coisa certa a fazer, mas ela não fez isso por causa da ganância pessoal que lhe veio à mente, além daquele julgamento racional.

‘…Não posso ser a única a sentir vergonha.’

Ela mostrou uma cena patética na frente de Annalise.

Infelizmente, Vera provavelmente se lembraria daquela cena quando ele retornasse.

Então, para evitar ser atingida unilateralmente, não seria justo que ela visse um comportamento embaraçoso de Vera também?

“Uhm, eh…”

Renee virou os olhos cegos para o teto e pigarreou.

Enquanto isso, as palavras de Aisha continuaram.

“Sabe, Vera, você não tem nada a dizer?”

Foi uma declaração feita com a cara de um predador observando sua presa, procurando qualquer fraqueza para explorar.