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    Combo Pago (7/15)


    “Nossa cidade se chama Curva do Rio”, disse a mulher, com uma voz ansiosa. “Eu sou a prefeita.”

    Arran pensou por alguns instantes. Embora o vilarejo – que era pequeno demais para ser chamado de cidade – possuísse o mesmo nome de sua antiga cidade natal, esses dois lugares ficavam a milhares de quilômetros de distância e, a não ser por estarem próximos a um rio, eles pareciam ter algo em comum.

    Ainda assim, esse nome o fez lembrar da vida que havia deixado para trás. Mesmo que não se arrependesse de sua decisão de se tornar um mago, ele se perguntava como teriam sido as coisas se ele tivesse ficado na verdadeira curva do rio. Provavelmente, seria mais calmo e, certamente, menos sangrento.

    Arran deixou seus pensamentos de lado. Ele tem assuntos mais importantes a tratar.

    “E quanto a eles?”, disse ele, apontando para os soldados. “O que estão fazendo aqui?”

    Sem que a mulher pudesse responder, um dos soldados avançou, um homem robusto, de meia-idade, de pele escura e várias cicatrizes antigas no rosto.

    “Você vai nos matar?” Apesar de sua expressão cautelosa, seus olhos não demonstravam medo. Aparentemente, ele já se conformou com o fato de que poderia morrer.

    Uma expressão de pânico apareceu no rosto da prefeita quando ela se deu conta de que a batalha pode não ter terminado ainda, mas Arran a silenciou com um gesto.

    “Talvez”, ele respondeu. “Por que vocês defenderam os aldeões?”

    “Eles nos acolheram quando viemos para cá, deram comida e abrigo. Não me parecia certo permitir que os outros os matassem.” O homem deu de ombros. “Alguns do nosso grupo também atacaram, mas você cuidou deles.”

    Arran refletiu um pouco sobre o assunto. “Se eu deixar você viver”, ele finalmente disse, “Você tem que jurar defender a aldeia pelo menos durante o próximo ano”.

    Arran não tinha nenhum desejo real em matar aqueles soldados. Eles arriscaram suas vidas para defender os aldeões e, o mais importante, o vilarejo ainda precisaria da proteção deles.

    Por mais que Arran já tenha matado milhares de soldados, ainda restavam muitos outros na região. Enquanto não representavam uma grande ameaça para Arran, todos eram Refinadores de Corpo, e cada um deles era forte o suficiente ao ponto de enfrentarem os plebeus com facilidade.

    E mesmo que o culto do Deus do Sangue não se espalhe mais, muitos deles continuarão se voltando para o terrorismo. Se isso acontecer, toda a região pode cair no caos. De qualquer maneira, levariam anos até que a área estivesse segura novamente, talvez até décadas.

    “É justo”, afirmou o soldado com um aceno de cabeça aliviado. “Não tenho para onde ir, de qualquer forma.”

    “Espere”, interrompeu o prefeito. “Você quer que eles nos protejam? Mas os agressores estão mortos – agora é seguro, não é?”

    “Há outros”, disse Arran. “Muitos deles. Ainda vai levar algum tempo até que essa região esteja segura novamente.”

    A expressão da prefeita ficou dolorida, mas não se manifestou mais. Depois da apresentação anterior de Arran, era como se ela soubesse levar suas palavras a sério.

    Nas horas seguintes, resolveram se livrar dos corpos espalhados pelo chão.

    Apesar da ajuda de Arran, mais de doze aldeões haviam caído na batalha – um duro golpe, mesmo em uma grande aldeia. Os aldeões mortos foram enterrados no cemitério próximo à aldeia, tendo seus corpos enterrados entre os gritos e soluços de suas famílias.

    Depois de enterrar os aldeões, reuniram os atacantes mortos em uma grande pilha, a qual Arran queimou usando a Essência de Fogo. Ele utilizou um pouco mais de poder que o necessário para o bem dos soldados defensores, servindo como um lembrete das consequências de quebrar o juramento deles.

    No entanto, quando Arran se livrou dos corpos, começou a se preocupar com o fato que a proteção dos soldados não seria suficiente para manter a aldeia segura.

    Em um piscar de olhos, ele chegou a uma decisão. Snow Cloud precisava esperar um pouco mais.

    Após ter queimado os corpos, Arran foi até os soldados e contou a eles sobre as mentiras que o antigo líder havia contado. Arran explicou que o poder deles vinha da Essência Natural, não do Deus do Sangue, é que as chamadas orações que estavam praticando eram, na verdade, técnicas de refinamento corporal.

    Os soldados aceitaram com tranquilidade e nenhum deles se mostrou particularmente surpreso pelo fato que o mago havia sido uma fraude. Sem dúvida, esses soldados eram mais espertos do que a maioria dos outros, pensou Arran.

    “Eu já imaginava isso”, disse o homem de pele escura assim que Arran terminou sua explicação. “De forma alguma um deus iria escolher aquele maldito homem como seu mensageiro.”

    Arran assentiu em concordância, depois disse: “Agora que vocês sabem a verdade, eu tenho uma proposta para vocês. Eu posso ensinar a todos vocês uma técnica ainda melhor de refinamento corporal. Com ela, vocês podem ficar mais fortes do que antes, porém, depois de dominá-la, vocês terão que ensiná-la aos aldeões”.

    Grande parte dos soldados pareciam ansiosos para aceitar a oferta, mas o homem de cicatrizes apenas franziu a testa. “Se você tem uma técnica melhor, porque não ensinar a eles você mesmo?”

    “Não tenho tempo”, respondeu Arran. “Com as técnicas que você já sabe, consigo ensiná-lo em poucos dias. Mas ensinar os aldeões levará semanas.”

    O soldado hesitou, mas depois acenou com a cabeça. “Tudo bem.”

    Em pouco tempo, a estimativa de Arran foi excessivamente otimista. Ao invés de alguns dias, ele precisou de uma semana inteira só para ensinar aos soldados as melhores técnicas de refinamento corporal. Ainda assim, ele só ensinou a eles o suficiente para que pudessem descobrir o resto por meio da prática.

    Parte do motivo foi que sua própria experiência tornou difícil enxergar a dificuldade, e a outra parte foi o fato de que as técnicas que ele ensinou eram novas – ele juntou os elementos do ensinamento de Lorde Jiang, a técnica do Fogo Sombrio e as técnicas dos próprios soldados, acabou dando origem a um conjunto de técnicas totalmente novo.

    Ainda que fosse mais fraca do que a técnica da Chama Sombria que ele tinha aprendido do Fogo Sombrio, esta era mais fácil de aprender, além de ser compartilhada sem que ele quebrasse sua promessa ao Fogo Sombrio.

    “Tem certeza do que está fazendo?”, o soldado com cicatrizes perguntou a Arran perto do final da semana.

    “Eu estou confiante de que a técnica vai funcionar”, respondeu Arran. “E é muito melhor do que qualquer outra que você e seus homens têm usado até agora.”

    “Não estou me referindo a isso”, disse o homem, balançando a cabeça. “Eu sei que você é forte e tudo mais. Mas pelo jeito que os aldeões olham para você, uma parte deles já o considera metade de um deus, se não for um deus inteiro. Inclusive os meus próprios homens…” Ele suspirou. “Uma vez que eles aprendam essas suas técnicas, eu não vejo isso parando por aqui.”

    Arran franziu a testa. De fato, ele procurou se afastar dos aldeões o máximo possível. Os olhares de reverência o deixavam desconfortável, e seus presentes ainda mais. Alguns ofereceram ouro, armas e ervas, e outros foram até mesmo oferecer às mãos de suas filhas em casamento.

    Ele só aceitou as ervas, mas só porque Snow Cloud poderia querer. Ainda assim, depois de aceitar a primeira oferta, surgiram muitas outras semelhantes e, agora, Arran possuía uma quantidade de ervas de boticário em seus sacos vazios.

    Levando tudo em conta, ele sabia que o soldado estava certo. Ele estava muito perto de formar um culto como o que o mago morto havia iniciado, e os aldeões ainda não tinham começado a aprender o Refinamento Corporal.

    “Eu irei embora em alguns dias”, disse ele finalmente. “E a menos que você saiba uma forma melhor de manter a aldeia segura, eu não vejo nenhuma outra opção.”

    A expressão do soldado se tornou pensativa. “Acho que não”, ele finalmente admitiu. “Mas tudo isso me deixa desconfortável.”

    “Você e eu também”, respondeu Arran com sinceridade.

    No fim da semana, grande parte dos soldados já havia dominado a técnica de Refinamento Corporal para aprender o restante com a prática, e Arran sabia que era hora de partir.

    Antes de partir, ele visitou a prefeita. A mulher ficou maravilhada enquanto ele enchia seus armazéns com alimentos de seus sacos vazios, todos com Essência Natural, e ouviu cuidadosamente as instruções que ele deu para que os aldeões os usassem quando aprendessem o básico do refinamento corporal.

    Da mesma forma, compartilhou alguns conhecimentos básicos sobre Refinamento Corporal e Essência Natural, explicando que essa essência se reunia em plantas e animais, e que era possível encontrar alimentos mais fortalecedores na floresta.

    Ao mesmo tempo em que falava, ele sabia que suas ações teriam consequências. No espaço de uma semana, ele compartilhou conhecimento suficiente para que o vilarejo crescesse em tamanho e força, talvez se tornando uma potência regional.

    Ainda assim, como não havia outra maneira de garantir a segurança da aldeia, Arran sabia que, até certo ponto, ele era o responsável pelo perigo que a aldeia enfrentava. Se não fosse por ele, os seguidores do mago não estariam espalhados pela região.

    Mesmo que ele não consiga proteger a aldeia contra essas ameaças, sua ajuda talvez seja suficiente para que a aldeia tenha uma chance de sobreviver.

    Assim que Arran decidiu deixar a aldeia, o fez discretamente, saindo na calada da noite. Caso contrário, os aldeões acabariam implorando para que ele ficasse ou ofereceriam ainda mais presentes em agradecimento. Embora Arran tivesse prazer em enfrentar exércitos, os aldeões eram outra questão.

    Ele partiu em direção ao castelo com pressa.

    Snow Cloud esperava que ele voltasse pelo menos uma semana antes, e ainda tinha um longo caminho a percorrer. Ele não esperava pela resposta dela quando voltasse, mas quanto mais esperasse, pior seria.


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