Capítulo 60: Reconciliação em Fragmentos
A luz suave do fim de tarde ainda iluminava a biblioteca, clareando os traços desgastados, mas suaves, do rosto de Arata. Ele mantinha aquele sorriso pequeno, resignado, como se estivesse tentando deixar o peso do passado enterrado ali mesmo, na poeira suspensa no ar.
Por mais que tentasse, eu não conseguia afastar o aperto no peito ao olhar para ele. Tudo o que ele havia compartilhado… as pressões, as feridas, as despedidas… ainda era difícil acreditar que ele carregava tanta coisa dentro dele
— Eu… — comecei, hesitante, enquanto escolhia com cuidado as palavras. — Não fazia ideia de que tinha sido tão difícil para você…
Minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia, quase como um sussurro, mas a sinceridade estava ali, pendurada em cada palavra.
Ele inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, como se ponderasse minha reação, antes de dar de ombros. O gesto foi casual, mas os olhos dele… carregavam um peso que sua postura descontraída tentava disfarçar.
— Não se preocupe com isso! — Ele sorriu, um sorriso que parecia mais ensaiado do que natural. — É tudo passado agora.
Houve uma pausa. Eu abri a boca para dizer algo, mas as palavras não vieram. Como eu poderia responder a algo assim? Parecia quase invasivo querer explorar mais a dor dele, como se estivesse cutucando uma ferida que ele finalmente havia começado a deixar cicatrizar.
Mas foi Arata quem quebrou o silêncio, inclinando, novamente e levemente, a cabeça para mim, o sorriso em seu rosto suavizando-se até se tornar genuíno, quase caloroso.
— Quer saber de uma coisa engraçada? — Ele apontou para a fileira de livros ao nosso lado. — Mesmo depois de tudo, eu acabei voltando a gostar de ler. Não como antes, claro, mas o suficiente para me divertir.
Fiquei surpreso, a expressão evidente no meu rosto.
— Sério?
— É. — Ele assentiu, rindo baixinho. — No fim, foi isso que me trouxe pra cá. Quer dizer, faz sentido, não é? Trabalhar cercado de livros, onde as palavras não exigem nada de mim.
A maneira como ele disse isso parecia carregar uma leveza que contrastava com o que havia compartilhado antes. Mesmo assim, havia algo reconfortante em saber que ele tinha encontrado uma maneira de reconectar-se, mesmo que parcialmente, com algo que um dia significou tanto para ele.
— Mas escrever… — Ele balançou a cabeça, o sorriso assumindo um tom mais resignado. — Acho que isso ficou pra trás. Talvez eu esteja enferrujado demais, ou talvez… simplesmente não seja mais pra mim.
— Nunca diga nunca. — A resposta escapou antes que eu pudesse pensar, mas não era só uma tentativa de motivação; era uma verdade que eu sentia profundamente.
Arata soltou uma risada curta, mas havia um brilho nos olhos dele que indicava que minhas palavras não tinham passado despercebidas.
— Talvez. — Ele deu de ombros novamente, mas desta vez, o gesto parecia mais leve.
Antes que eu pudesse perguntar algo mais ou continuar a conversa, o som da porta da biblioteca se abrindo ecoou pelo espaço silencioso. Ambos nos viramos instintivamente para a entrada.
— Parece que finalmente temos um cliente! — Arata ajustou o avental com um movimento rápido, quase automático, enquanto caminhava em direção ao balcão. Ele olhou por cima do ombro, lançando um sorriso casual na minha direção. — Hora de voltar ao trabalho, Shin!
Eu o segui, ainda processando tudo o que tinha ouvido. A chegada do cliente interrompeu a conversa, mas as palavras de Arata continuavam a ecoar na minha mente, como se carregassem mais significados do que ele deixava transparecer.
Mas, quando ele se virou para o balcão, vi o corpo de Arata enrijecer. Seus ombros ficaram tensos, e seus olhos arregalaram-se por um breve instante antes de ele recompor sua expressão.
— Ryuuji? — murmurou, quase inaudível.
E lá estava ele.
Ryuuji Akagi.
Ele entrou no espaço com passos lentos, os olhos avaliando o ambiente antes de pousarem sobre mim. Sua expressão, já naturalmente séria, se tornou ainda mais azeda.
— Você aqui também? — ele resmungou, o tom carregado de desdém. — Que maravilha…
Ele desviou o olhar e caminhou até o balcão, mas não encarou Arata diretamente. Em vez disso, ficou parado, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, o olhar fixo no chão como se estivesse enfrentando uma batalha interna.
O silêncio que se seguiu era sufocante, denso como o ar antes de uma tempestade. Eu podia sentir a tensão irradiando de ambos os lados.
Arata parecia petrificado atrás do balcão, as mãos apertando o tampo de madeira com tanta força que seus dedos ficaram brancos. Seu olhar vagava entre o irmão e o chão, como se não soubesse onde pousar.
E então, de repente, Ryuuji quebrou o silêncio.
— Desculpa.
A palavra ecoou na biblioteca como uma pedra lançada em um lago calmo.
Arata piscou, chocado, como se não acreditasse no que tinha acabado de ouvir.
— O quê? — A pergunta saiu mais como um reflexo do que como uma resposta.
Ryuuji suspirou profundamente, levantando o olhar para encarar o irmão com uma expressão que misturava irritação e constrangimento.
— Você ouviu bem. — Sua voz era firme, mas cada palavra parecia pesada, como se fosse arrancada à força. — Eu perdi a aposta, tá bom? E agora estou aqui… pedindo desculpas.
Havia algo no tom dele — uma mistura de frustração e orgulho ferido — que tornava o momento ao mesmo tempo absurdo e trágico.
Arata continuava imóvel, como se estivesse tentando processar o que estava acontecendo.
— Isso é sério? — A voz dele saiu hesitante, quase incrédula.
Ryuuji revirou os olhos, cruzando os braços com um gesto abrupto.
— Sim, é sério! — respondeu, claramente irritado, desviando o olhar. — Não vou repetir, então aproveita!
A situação era tão inesperada que quase parecia cômica, mas o peso emocional que pairava entre os dois irmãos anulava qualquer vontade de rir.
Ryuuji então virou-se para mim, como se quisesse desviar a atenção do momento. Seu olhar era penetrante, e, mesmo que eu não tivesse feito nada, senti meu estômago revirar sob sua análise.
— E você… — ele começou, apontando um dedo em minha direção. — Sorte de principiante. Nada mais que isso. Na próxima vez, não vai acontecer de novo.
— Hã… certo. Entendi — respondi, ainda tentando entender tudo o que estava acontecendo.
Ele bufou, desviando o olhar novamente, e então começou a caminhar em direção à porta, como se quisesse escapar do lugar o mais rápido possível.
Mas, antes que ele pudesse sair, a voz de Arata o chamou.
— Ryuuji.
O tom era baixo, quase um sussurro, mas carregava uma sinceridade tão palpável que fez Ryuuji parar no mesmo instante.
— Obrigado… e… desculpa também.
Ryuuji ficou de costas para nós, imóvel, por alguns segundos que pareceram se arrastar por uma eternidade. Ele não olhou para trás, mas sua postura mudou ligeiramente.
— …Volta logo pra casa. — Ele resmungou, o tom tão baixo que eu quase não ouvi. — Mamãe está preocupada com você.
E então, sem esperar por uma resposta, ele abriu a porta e saiu, o som do sino da entrada reverberando na biblioteca vazia.
Olhei para Arata, que ainda estava parado no balcão, com uma expressão difícil de decifrar. Seus olhos estavam um pouco brilhantes, e ele piscou rapidamente, esfregando o canto do olho com a manga do avental.
— Arata, você está bem?
Ele sorriu, mas havia algo frágil naquele sorriso.
— Claro! Estou bem. — Ele soltou uma risada breve e forçada, passando a mão pelo cabelo. — Vamos voltar ao trabalho, certo? Não temos o dia todo.
Apesar das palavras, eu sabia que ele estava processando o que tinha acabado de acontecer. E, enquanto ele se movia lentamente pelo espaço, comecei a pensar sobre o que tinha acabado de acontecer.
Ryuuji e Arata. Dois irmãos que pareciam tão distantes, mas que, naquele breve momento, deram um passo em direção a algo que talvez, só talvez, fosse uma reconciliação.
E eu… bom, parecia que eu ainda tinha algo a provar. Talvez minha vitória tenha sido sorte, mas, no futuro, eu mostraria que era muito mais do que isso.
Arata passou por mim, dando um leve tapinha no meu ombro, o sorriso brincalhão de sempre voltando lentamente ao rosto.
— Vamos logo, Yamamoto! Você não vai esperar o patrão aparecer aqui, vai?
Eu sorri de leve, balançando a cabeça enquanto voltava ao trabalho. O peso do momento ainda pairava no ar, mas havia algo de esperançoso na maneira como tudo terminou.
Talvez… só talvez, algumas coisas realmente pudessem ser consertadas com o tempo.
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