Capítulo 89: Um Lugar Onde Pertenço
O Festival Escolar havia chegado.
Eu fui até a escola, mesmo assim, mas assistia tudo de longe. Como se estivesse escondida atrás de uma cortina, só com uma fresta aberta.
Observando. Mas não participando.
Eu estava ali, mas… era como se não estivesse.
Andava pelos cantos. Pegava alguma comida, comia sozinha. Caminhava devagar pelos corredores, desviando dos olhares, dos rostos, mantendo os olhos no chão.
Talvez ninguém notasse minha presença. Talvez isso fosse melhor.
Até que ouvi aquilo.
— Dizem que a peça da 2-A vai ser a melhor! Quer ir ver depois?
Foi só uma frase, jogada no ar por um grupo que passava perto. Mas ela me fez parar.
Era a minha turma, meu papel, minha peça.
Meu coração travou, junto das pernas. Por alguns segundos, não consegui me mover. Só fiquei ali, congelada, tentando entender o que fazer.
Deveria voltar?
Fingir que nada aconteceu? Que tava tudo bem?
Ensaiar de última hora e subir no palco sem preparo algum?
Olhar nos olhos deles? Depois de ter sumido aos ensaios?
Não…
Era… demais.
Demais pra alguém como eu.
Minha mente virou um caos. Um monte de vozes gritando, empurrando, sufocando.
E então, eu fiz o que sempre fiz.
Fugi.
Simples assim.
Virei as costas e saí da escola. Deixei a peça, o figurino, o papel… a turma inteira pra trás.
Tudo por causa de um medo que eu não consegui controlar. Um medo patético. Que cresceu tanto dentro de mim que me paralisou.
E eu corri.
Foi egoísmo. Foi covardia.
Sim, eu sei.
Foi… imperdoável.
Eu sabia disso. E mesmo assim, fiz.
Eles me estenderam a mão. E eu larguei. Recusei.
Mesmo sendo eu quem sempre reclamou de ser deixada de lado… dessa vez fui eu quem virou as costas.
E eu me odiei por isso.
Por que eu fiz isso?
Por que… eu estraguei tudo?
Por quê?
E então… ali estava eu.
Diante da turma com a cabeça abaixada. O professor ao meu lado.
— Desculpa… — repeti, a voz falhando, junto da visão embaçada. — Eu… estraguei tudo. A peça. O esforço de vocês. Tudo.
Sentia o calor queimando sob meus olhos. As lágrimas desciam sem controle, grossas, pesadas, quentes. O nó na garganta apertava tanto que mal conseguia respirar.
Eu nunca devia ter feito aquilo.
O medo… não era desculpa.
Não era suficiente. Eu devia ter tentado!
Mesmo que… fosse desastroso. Mesmo que eu passasse vergonha diante de todos.
Ainda seria melhor do que ter virado as costas.
Melhor do que ter fugido.
— Foi tudo culpa minha. Desculpa… — repeti, como se isso fosse limpar alguma coisa. Como se isso apagasse tudo.
Mas eu sabia que isso não iria adiantar nada.
Dentro de mim, a mesma voz de sempre falava. Aquela que nunca me deixava em paz:
“É isso. Agora acabou. Eles vão te odiar. Vão voltar a fingir que você não existe. É só questão de tempo. Tudo vai voltar a ser como era antes.”
— Tá tudo bem se vocês me odiarem… — murmurei, sem levantar o olhar. A voz quase engasgada. — Eu… entendo. Eu fiz algo imperdoável.
O silêncio pesava pela sala.
Até que uma voz atravessou, me acertando em cheio.
— Foi complicado mesmo — disse alguém.
A voz… era do Shin.
Ah, o Shin.
Soube que ele acabou ficando com o papel do príncipe. Fiz com que alguém que fez o roteiro fizesse um dos papéis principais.
Ele deveria ser o que mais me odiava naquele momento. E eu entendia.
Não tinha como me perdoar.
— Eu acabei fazendo o papel de príncipe… e, bom… também não levo muito jeito pra isso.
Minhas mãos se fecharam na saia. Aquilo… doeu. Como se cada palavra viesse me lembrar do lugar que era pra ser meu.
E que eu abandonei.
Mas ele continuou.
— Mas não tem problema, Sasaki. Coisas acontecem. E… se você teve seus motivos… então tá tudo bem.
Minha respiração falhou.
Como assim?
“Não tem problema”?
Claro que tinha! Era óbvio que tinha!
A peça era importante. Eles contaram comigo… e, eu fui embora.
Como ele podia dizer que estava tudo bem!?
— Ninguém aqui odeia você, Sasaki. — A voz dele ficou firme. — No fim das contas… a peça ainda aconteceu. E foi boa, então tá tudo certo agora.
Levantei o rosto, devagar, as lágrimas ainda rolavam. Os olhos ardiam e a garganta ainda apertada.
E dentro de mim… algo se partiu. Não de dor, mas de… incredulidade.
Eu não entendia.
Como ele podia dizer isso?

— Mas… eu falhei com vocês. Isso… isso foi imperdoável…
Yumi se levantou do lugar, rapidamente.
— Se alguém tem que pedir desculpas… sou eu! — disse ela, cabeça baixa. — Fui eu que sugeri seu nome pro papel, e… nem dei espaço pra você dizer não. Foi pressão, minha culpa!
Não, não…
Alguém murmurou um “é verdade” no fundo.
Aiko se levantou também, o rosto sério.
— A gente devia ter perguntado e escutado você. Não jogado isso em cima. Desculpa, Sasaki!
Não…
Mais pessoas foram se levantando. Vozes dizendo que a culpa não era minha. Que eu não tive culpa de nada.
Por quê?
Por que… isso estava acontecendo?
Por que eles… não me odiavam?
Mais lágrimas caíram, sem controle. Eu tentei parar. Mas era inútil.
Yuki se levantou por último. E olhou direto pra mim.
— Tá tudo bem agora, Sasaki — disse ela, com aquele sorriso gentil. — Você não precisa mais se culpar.
Culpa.
Não precisava mais me culpar…?
Ah.
Talvez fosse o que eu precisava ouvir fazia muito tempo.
É, talvez fosse.
E então, eu… soltei.
Chorei como há muito tempo não chorava.
Senti braços me envolvendo. Toques leves, cuidadosos. E eu deixei. Deixei que me abraçassem, deixei as lágrimas caírem, deixei o peso sair um pouco pelos olhos.
Eu não entendia como eles conseguiam dizer tudo aquilo.
Como podiam ser… tão diferentes?
Quando tudo acalmou, a sala voltou ao seu ritmo comum. Cadernos se abriram. Canetas sobre o papel. Conversas sussurradas voltaram a preencher os espaços.
Mas o mundo parecia… diferente.
Ou talvez fosse eu. Não sei.
No intervalo, permaneci sentada, sozinha, como sempre. Era o mais natural. O festival já tinha passado. A peça também.
Aquele momento… devia ter acabado.
Tudo devia ter voltado ao normal…
Mas então, ouvi. Uma voz.
— Ei, Sasaki! — era a Yumi, acenando, o rosto iluminado por um sorriso. — Vai ficar aí até quando?
Levantei os olhos devagar. Olhei ao redor, desconfiada. Tinha certeza que ela não estava falando comigo. Talvez existisse outra Sasaki perto de mim…
Mas não, ela ainda estava olhando direto pra mim. O coração bateu rápido. Um reflexo, um medo.
O festival já tinha acabado… então que motivo ela teria?
Yumi suspirou e veio até mim. Parou ao meu lado com aquele jeito dela, barulhento e gentil ao mesmo tempo.
— Quer vir com a gente? Ainda falta tempo pro intervalo acabar!
— Hã? E-eu?
— Claro! — respondeu ela, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Mas não era óbvio pra mim.
Outra garota do grupo se aproximou, afastando Yumi de leve, com uma voz suave:
— Mas… se você não quiser, tudo bem também. A gente só quis… chamar.
Yumi assentiu, com um sorriso mais contido.
— A gente só quer que saiba que… você pode vir também.
Ouvi vozes, vi sorrisos. Não tinha nenhuma cobrança ali.
E algo dentro de mim… mudou. Algo falou.
Uma voz que eu não ouvia fazia muito tempo. Uma voz completamente diferente das que sempre ouvi.
Uma que dizia:
“Vai.”
Mesmo depois de tudo… ainda estavam ali. Ainda estendiam a mão pra mim.
Como?
Isso nunca tinha acontecido, nenhuma vez. Ninguém nunca voltou depois que eu sumia.
Essa turma… era diferente.
Eu olhei pra minha mesa, para a minha mão sobre o caderno fechado.
Era como se eu ainda estivesse dentro da gaiola de sempre. Mas… a porta estava completamente aberta. E o mundo lá fora me esperava. A luz atravessava, me chamando.
Eu hesitei.
Eu realmente devia?
Depois de tudo que aconteceu?
Eu… não deveria fazer isso.
Ergui o olhar, vendo os rostos sorridentes delas.
“Eu…”
Mas então, devagar, algo se moveu.
Algo dentro de mim.
Como se minhas asas, enferrujadas pelo tempo, estivessem começando a lembrar como era voar.
Então, me levantei.
E fui.
— Já vou! — falei, a voz mais firme do que eu esperava.
Caminhei até elas, com o coração batendo acelerado. Ouvi risadas, passos juntos, comentários bobos. Alguém segurou minha manga por um instante, puxando com delicadeza.
— Ah, que fome! Você também tá, Sasaki? — Yumi perguntou.
— Eu? Ah, eu… um pouco…
— Vamos logo pra cantina, Sasaki! Antes que Yumi coma tudo sozinha… — Yuzuki disse, rindo.
— Ei! — Yumi gritou, dando um pequeno soco no braço dela.
Ah.
Isso era tão… legal.
Era o que sempre sonhei.
Eu fui puxada pra fora da bolha.
Devagar, sem pressa, como se elas soubessem que eu precisava de tempo.
E naquele instante, enquanto andava ao lado delas, sem saber bem como tinha chegado ali…
Eu pensei.
Talvez… só talvez… mesmo.
Que… eu tivesse encontrado um lugar onde finalmente posso existir.
Um lugar onde, pela primeira vez… eu pertenço.
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