“Eu devo ter cometido muitos pecados na vida passada. Só isso explica eu ter reencarnado… num puteiro gourmet.” — sussurrou Quintus Maximus.

    O jovem estava convencido de que sua vida não poderia piorar. Ou talvez pudesse, considerando que ele estava se dirigindo para um lugar que só poderia ser descrito como a versão medieval de um circo. 

    Mas em vez de trapezistas, havia garçonetes fantasiadas de elfas carregando bandejas de frituras como se fossem troféus de uma guerra perdida contra a gordura trans. Ele deu um suspiro. Definitivamente, essa nova vida era uma emboscada, e ele havia caído nela de cabeça. 

    Depois de um ano inteiro de cancelamentos de última hora, ele agora corria para um jantar onde já devia ter chegado há quarenta minutos. No caminho, tropeçou numa lixeira, derrubou café na camisa e foi xingado por um garçom do restaurante vizinho, tudo isso por causa de uma única mesa tombada. 

    Mas dar um novo bolo nos seus amigos não era uma opção, e outra alternativa era seguir com o Plano B: fingir normalidade e torcer para que seus amigos não estivessem planejando a pior punição possível.

    Como encher seus copos sem piedade e abandonar a conta inteira para ele. Um arrepio percorreu sua espinha enquanto ele considerava que talvez reencarnar de novo fosse menos doloroso do que pagar uma possível fatura.

    O jovem carregava no rosto um ar de constante desajuste, como se a própria existência fosse um experimento que ele ainda não tinha aprendido a operar corretamente. Seu olhar, de um preto profundo e naturalmente inocente, contrastava com o caos absoluto que parecia segui-lo por onde passava.

    Alto e forte, ele tinha ombros largos que sugeriam confiança, mas a forma como ele se movia, ligeiramente desengonçado, entregava que essa confiança ainda estava em fase de testes e provavelmente com defeito.

    Vestia uma camiseta preta levemente apertada, que destacava um físico magro-atlético, mas de um jeito que sugeria que ele não sabia ao certo se era um cara forte ou só um cara que carrega sacolas de mercado sem reclamar. 

    Seu jeans escuro, ligeiramente desalinhado, reforçava a impressão de que ele não escolhia roupas, apenas as aceitava como um destino inevitável.

    E então, havia o cabelo. Castanho-escuro, curto, eternamente bagunçado, parecia um reflexo perfeito de sua vida: organizado o suficiente para não parecer um mendigo, mas sempre com um toque de “acordei e aceitei meu destino”

    E quando esse jovem atravessou a porta do restaurante Espada & Garfo, parecia que o próprio universo tinha cometido um erro de cálculo.

    Havia algo nele que simplesmente não encaixava ali. Talvez fosse o jeito que ele entrou meio hesitante, como se não tivesse certeza se estava entrando em um restaurante ou em uma armadilha. 

    Talvez fosse a forma como seus passos, largos demais para o ambiente aconchegante, transmitiam a energia de alguém prestes a tropeçar em uma cadeira e derrubar um garçom inteiro.

    Ou talvez… fosse apenas porque ele era Quintus. E qualquer lugar onde entrava tinha grandes chances de se transformar em um cenário de desastre.

    Em meio ao burburinho das mesas, ao cheiro agressivo de fritura e ao tilintar caótico dos talheres, respirou fundo, tentando agarrar os últimos fiapos de dignidade que lhe restavam. O plano? Continuava simples: fingir que ainda estava no controle. O problema? O universo adorava desmenti-lo na frente de testemunhas. 

    E, pior ainda, suas testemunhas eram dois desocupados, que estavam em algum lugar ali dentro, prontos para transformar sua humilhação em entretenimento de qualidade.

    Mas a verdade era que Quintus não se lembrava de ter sido criança. Isso seria normal se ele tivesse 30 anos, mas aos 17? Era como se ele tivesse caído de paraquedas na adolescência, sem nenhuma instrução de como agir. 

    Não havia lembranças de aprender a andar de bicicleta ou de jogar bola com os amigos. Ele simplesmente apareceu um dia, adolescente, e logo percebeu que a vida ao seu redor parecia uma sequência de cenas desconexas de um filme que ele nunca entendeu direito.

    Ao procurar seus amigos no restaurante, ele já sabia exatamente como essa história terminaria… Seria embasado em um roteiro repetitivo escrito que dizia: “Reencarnarás, e pagarás a conta, porque nesta vida e em todas as outras, trouxa que é trouxa não escapa de um boleto”. 

    Sua família levava essa filosofia a sério por conselho de seu psiquiatra e fazia de conta que acreditava, mas seus amigos? Eles diziam que ele tinha ‘memória seletiva’ e que era o maior contador de histórias que já existiu.

    De longe, a mão exageradamente acenando de Gustavo era o farol que tirou Quintus de suas reminiscências. Magro como se vivesse à base de vento e cafeína, ele tinha cabelo preto bem curto, óculos que escorregavam levemente pelo nariz e olhos pretos cheios de expressões faciais sempre exageradas, como se cada reação dele merecesse uma legenda dramática.

    Vestindo uma camisa verde vibrante sobre uma camiseta branca, e com uma pulseira de couro marrom no pulso, ele parecia um adolescente de 17 anos que ainda não tinha decidido se queria ser um nerd intelectual ou um figurante de seriado de comédia.

    E, claro, tinha o dom de transformar até o menor gesto em um evento teatral. A mão levantada não era um simples aceno, mas sim um sinalizador frenético, digno de alguém tentando chamar um helicóptero de resgate numa ilha deserta.

    — Quintus!? Aqui! — ele gritou, com uma entonação que fez cabeças se virarem. — Achei que você tinha sido sequestrado por alienígenas, ou algo assim!

    “Que cena é essa? Ele está se afogando ou tentando chamar um garçom?” — piscou o jovem enquanto esse pensamento passava em sua cabeça.  

    O jovem atrasado forçou um sorriso, avançando pelo salão cheio. Ele tentou ignorar os olhares curiosos, sentindo que, a qualquer momento, um holofote poderia se acender sobre ele. 

    Quando chegou à mesa, Quintus sentiu um alívio momentâneo ao ver seu outro amigo, Leon, o único que, em teoria, poderia trazer alguma sanidade àquele grupo.

    O jovem negro de 17 anos era grande, acima do peso e vestia uma camisa vermelha vibrante, jeans e tênis bem gastos, como se estivesse sempre pronto para correr de uma confusão. 

    Seu cabelo preto, preso em um coque que misturava tranças e dreads, balançou levemente quando ele desgrudou os olhos do celular, movendo-se com a tranquilidade de quem nunca se deixa apressar, nem mesmo em incêndios.

    Então, ele olhou para Quintus. Não um olhar comum, mas semicerrou os olhos lentamente, analisando-o de cima a baixo com a precisão cirúrgica de um detetive resolvendo um caso de assassinato. As sobrancelhas foram subindo centímetro por centímetro, acompanhadas de uma pausa teatral que parecia se arrastar por décadas inteiras. 

    Finalmente, ele respirou fundo e sentenciou, com toda a solenidade do mundo:

    — Mano… Olha só quem decidiu dar o ar da graça. Eu achava que você já tinha virado lenda urbana.

    Quintus puxou a cadeira e se jogou nela como se tivesse acabado de completar uma maratona.

    — Se depender de mim, vou virar lenda urbana mesmo… porque eu estou a um passo de desaparecer sem pagar essa conta! — disse, rindo de nervoso enquanto analisava o cardápio com a concentração de quem estava prestes a fazer um exame de física quântica.

    Gustavo não perdeu tempo em provocar:

    — Claro que vai pagar! Você é o último a chegar, isso automaticamente torna você o patrocinador oficial desta noitada.

    — Pagar a conta? Eu? — Quintus esticou o corpo para trás, cruzando os braços — Quem chega atrasado economiza, isso é uma regra universal!

    — Regras universais? Só conheço uma: quem tem grana paga. Ou, no nosso caso, quem consegue fingir melhor pobreza induz o outro a pagar. — Gustavo deu uma risada irônica, enquanto deslizava os dedos pela tela do celular.

    O ar de expectativa pairou sobre a mesa, enquanto os três se encaravam como se estivessem prestes a entrar em um duelo. Tudo pelo sagrado direito de não pagar a conta. E Quintus com seu instinto de sobrevivência já começava a cogitar saídas espirituais:

    “Se eu reencarnei uma vez, posso tentar de novo. Quem sabe, na próxima, volto como herdeiro de bilionário?”

    Ele olhou à sua volta mas não viu nenhum botão de ‘repetir tutorial’. Apenas o cardápio com seus preços. Enorme. Assustadora. Inegociável.

    O possível reencarnado fechou os olhos, tentando aceitar seu destino, como um prisioneiro medieval diante de um carrasco enquanto só uma certeza passava por sua cabeça: 

    “Eu realmente morri e reencarnei… mas, pelo visto, voltei para um pesadelo financeiro sem fim.”

    Os três amigos brindaram, enquanto Quintus olhava para sua carteira, lamentando em silêncio. O cheiro de fritura, que antes era convidativo, agora parecia o perfume da ruína. Leon olhou para ele com um sorriso de pura malícia e provocou:

    — Sabe o que dizem, né? Se você reencarnou e está aqui, deve ser porque tem alguma missão importante nesse mundo.

    — Missão? Qual missão? — franziu a testa questionando.

    — Pagar a conta, óbvio. — Leon deu de ombros, fingindo indiferença.

    O possível reencarnado encarou o amigo, sem saber se ria ou se começava a fazer um crowdfunding para escapar daquela situação. 

    Contudo, finalmente, todos chegaram a uma acordo tácito e decidiram resolver a questão do pagamento com um clássico “Dois ou Um”. Um jogo simples, porém de consequências devastadoras para aquele que perdesse. Todos colocaram as mãos para trás, escondendo os dedos.

    — Dois… ou… um! — disseram em uníssono, jogando as mãos para frente.

    Gustavo e Leon mostraram dois dedos cada. Já Quintus, com a confiança de quem acreditava estar desafiando as forças do destino, exibiu apenas um dedo. Seus amigos se entreolharam, vitoriosos. Ele era o perdedor incontestável. Suspirou, aceitando seu destino com a resignação de um mártir moderno.

    O pobre jovem piscou, tentando processar sua própria derrota. Alguma coisa tinha dado muito errado. Ele fez as contas mentalmente, revisou as estatísticas, buscou nos cantos mais remotos de sua mente qualquer explicação lógica… mas a única resposta que encontrou foi que o universo o odiava. 

    Seus dois companheiros se entreolharam, vitoriosos. Leon cruzou os braços, balançando a cabeça em um gesto de falsa compaixão e falando:

    — O destino é cruel, meu amigo.

    Já Gustavo apoiou o cotovelo na mesa e sorriu com o tipo de satisfação que só um irmão mais velho e um agiota sentem ao ver sua vítima indefesa, acrescentando também:

    — Se serve de consolo, você perdeu com estilo.

    Quintus suspirou. Aceitou sua sentença com a resignação de um mártir moderno, mas sem a glória de um. Estava condenado. E pior, condenado em um puteiro temático medieval, cercado por seguranças vestidos de guerreiros e garçonetes élficas que não aceitavam pagamento em moedas de ouro.

    A reação de seus amigos foi rápida, contudo havia algo errado. Um detalhe sutil, quase imperceptível, que incomodava como um alarme silencioso na parte mais profunda de sua consciência. 

    Os dois tinham comemorado rápido demais. Não houve hesitação, não houve um único segundo de lamento. Apenas sorrisos vitoriosos e a tranquilidade de quem sabia exatamente o que estava acontecendo.

    Quintus estreitou os olhos, analisando a mesa com atenção. O posicionamento das mãos, os olhares que trocavam, a forma quase ensaiada com que reagiram à sua derrota… algo naquela cena não se encaixava. “Será que tinham combinado previamente?”

    Seus pensamentos se embaralhavam entre a dúvida e a suspeita. Talvez aquela conta não fosse realmente dele. Talvez houvesse uma reviravolta escondida, uma peça faltando nesse quebra-cabeça mal-intencionado. Ou, quem sabe, perder no “Dois ou Um” fosse apenas o início de um problema muito, muito maior.

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