Capítulo 10 – Eles foram longe demais dessa vez
Se houvesse um ranking para humilhações públicas, Quintus sabia que acabara de alcançar um novo topo. Seu nome de agora em diante estaria gravado na história daquele lugar como um dos maiores desastres sociais já testemunhados.
A algazarra inicial foi ensurdecedora, um turbilhão de risadas, palmas e até alguns assobios. Era o tipo de reação que se esperaria de uma torcida vendo um pênalti isolado na arquibancada no último segundo da final do campeonato. Mas, como todo espetáculo, a empolgação do público não duraria para sempre.
As risadas foram diminuindo, transformando-se em sorrisos discretos e, por fim, em olhares de curiosidade e cochichos maldosos. O show havia acabado, mas a vergonha estava longe de se dissipar. Agora, ele estava preso naquela estranha ressaca social, onde o silêncio que vinha depois da zoação era pior do que a própria humilhação.
No meio daquele caos emocional, Mirela levantou-se, enquanto Quintus sentiu o estômago afundar. Não pelo álcool, mas pelo instinto de sobrevivência. Ele já tinha visto aquela postura antes. Era a postura de alguém que sabia que ia dizer algo memorável. Algo que teria replay garantido na mente dele pelos próximos dez anos.
— Bom, foi divertido, mas eu tenho que trabalhar. — disse ela contrariando suas expectativas, mas ele podia ver os seus olhos brilhando de pura diversão.
Ela pegou um avental de garçonete que estava dobrado sobre uma cadeira próxima e o amarrou na cintura com a paciência de quem já sabia que aquela noite ainda renderia muito mais caos.
Quintus sentiu um alívio imediato ao vê-la se afastar em direção ao fundo do restaurante para terminar a caracterização de elfa, mas esse alívio durou exatos três segundos, até que percebeu que Leon e Gustavo ainda estavam ali. E muito empolgados.
Gustavo girou o celular para ele, os olhos brilhando de pura malícia:
— Acho que podemos perguntar ao público, porque essa história já tá NA INTERNET.
— O quê?! — disse Quintus empalidecendo novamente.
— Aham! — completou Leon, que já estava rindo antes mesmo de apertar o play e mostrar o vídeo para seu amigo — Postamos no grupo da galera. Você já tem até apelido novo.
— O QUÊ?!
O vídeo começou a rodar. Na tela, o momento exato de sua ruína estava registrado com qualidade HD e edição dramática. Ele estava sentado ao lado de Magda, sorrindo, bebendo, e no instante em que ela dizia “te lembro pessoalmente”, a imagem congelava num zoom dramático em seu rosto, capturando com precisão cirúrgica o olhar de um homem que acabara de perder sua dignidade.
A legenda? Era: São Jorge domou mais um dragão! Nosso guerreiro bravamente conquistou a Fera da Taverna!
— NÃO, NÃO, NÃO! — gritou Quintus, enquanto sua alma pegava as malas e abandonava seu corpo — APAGA ISSO!
Mas era tarde demais. O restaurante rugia de volta à vida, como um monstro faminto despertando de seu sono milenar. A mesa ao lado já estava assistindo ao vídeo e um dos clientes soltou um assobio longo, enquanto outro erguia o copo em aprovação.
— Isso sim é um homem de coragem!
— Domador de feras! — alguém gritou do fundo do restaurante.
— São Jorge tá diferente! — outra voz provocou, arrancando risadas gerais.
— Cara, só pra você saber… você já virou lenda. — disse Leon, estendendo o celular com um suspiro dramático — Olha o nosso grupo de Whatsapp da escola:
📌 Rodrigo: “O QUÊ??? O QUINTUS SAIU COM O TRONCO AMBULANTE?”
📌 Lucas: “MEU DEUS, EU QUERO AS FOTOS.”
📌 André: “ISSO É FAKE. IMPOSSÍVEL.”
📌 Mariana: “HAHAHAHAHA QUINTUS, COMO VOCÊ PÔDE ME TRAIR ASSIM?”
— OLHA ISSO! — completou Gustavo mostrando também uma cena paralisada de uma imagem de Magda no vídeo — Eu jurava que era um microfone preso no pescoço.
— Nossa, Quintus… Você tava ocupado olhando outra coisa, né? — provocou Leon.
— EU NÃO SABIA! — berrou bêbado, mas a frase soou menos como um argumento e mais como um grito de um homem à beira do colapso. Magda? Um homem? Então o que mais era mentira nesse mundo?!
Amigo 1 Negro tentava recuperar o fôlego.
— Mano… — continuou Leon apontando algo na imagem — Isso é um totem tribal. Eu te juro que o gogó dela tem pequenos anéis orbitando em volta!
Quintus afundou o rosto nas mãos, tentando pensar em qualquer argumento que o salvasse, mas o universo não lhe daria essa chance. Como se o destino quisesse tornar tudo ainda mais surreal, uma garçonete aleatória, vestida como elfa, surgiu ao lado da mesa, equilibrando uma bandeja e analisando a cena com curiosidade.
— Isso é sobre aquele vídeo que tão compartilhando na cozinha? — perguntou, inclinando-se sobre a mesa.
— NA COZINHA?!
— Sim! — Ela pegou o celular do bolso e começou a procurar — O chef chorou de rir. O gerente disse que vai tentar um contrato de publicidade com vocês.
— Mano! — disse Leon dando um tapinha no ombro de Quintus — você já tá famoso.
— Isso não é fama! — exclamou o jovem Maximus — Isso é um linchamento público disfarçado de entretenimento!
— Nossa… — comentou a garçonete, segurando o celular como quem exibe provas de um crime — Você parece tão nervoso. Algo a esconder?
— ELE NÃO TÁ NERVOSO! ELE TÁ APAIXONADO! — Gustavo gritou, fazendo Leon explodir em risadas novamente.
Quintus tentou pegar o celular da mão da elfa, mas ela se afastou com um giro ágil digno de uma ninja treinada em servir mesas lotadas sem derrubar um único copo.
— Opa, calma aí, campeão! Isso já tá no grupo da equipe.
— Grupo da equipe?
A garçonete continuou rindo, enquanto repetia o que digitava no celular:
— Grupo “Irmãos da Luta”. É onde a gente compartilha as tragédias diárias do restaurante.
— Meu Deus… — lastimou-se Quintus batendo a cabeça na mesa — Eu sou uma estatística.
— Um brinde ao nosso bravo guerreiro, São Jorge! — falou Leon levantando o copo e tendo todo o restaurante acompanhando a mesa.
Gustavo já chorava de rir. Enquanto isso, Quintus, já mais do que bêbado, segurava a caneca com as duas mãos, como se aquele fosse o último ponto de estabilidade em sua vida.
Sua cabeça pendia perigosamente para frente, ameaçando tombar na mesa a qualquer instante, seja pelo peso esmagador da vergonha ou pelo álcool que, impiedoso, começava a reivindicar o controle de seu corpo.
Ainda assim, ele bebeu. E bebeu como se sua única chance de sobrevivência fosse se fundir ao líquido, evaporando junto com a espuma. Seu mundo se reduzia ao copo nas mãos, enquanto o álcool assumia o comando sem resistência.
Do outro lado do salão, Mirela observava a cena com pura diversão. Encostada no balcão, ela fingia concentração ao amarrar o avental, mas o brilho malicioso em seu olhar denunciava que estava se segurando para não rir.
— Ei, Mirela! — chamou uma outra garçonete, se aproximando com uma bandeja. — Aquele ali é seu amigo, né?
— Amigo? Ah… não sei… pelo que eu ouvi, ele tem um novo círculo social agora.
— Tô vendo. — respondeu a colega de trabalho da irmã de Gustavo — Ele tá bem… popular.
— É… — Mirela pegou um bloquinho de anotações e fingiu anotar algo — Quem diria que tudo que ele precisava pra ter destaque era… mudar o gosto.
No meio do restaurante, Quintus ainda bebia, aceitando seu destino não como o grande herói reencarnado que talvez pudesse ter sido, mas como o coadjuvante humilhado que claramente era. Seu copo era sua única relíquia sagrada, seu último artefato mágico contra a desgraça iminente.
O universo, impiedoso, o havia colocado naquela posição. Ele tentou lutar contra, tentou se debater, tentou até ignorar os olhares e os risos, mas era inútil. A zoeira universal era uma entidade suprema, um deus caótico e vingativo, e ele não passava de um mero NPC azarado sendo arrastado pelo enredo.
— Aceita, São Jorge. O mundo já sabe — foi a última sentença gravada em sua mente, mas o álcool, sempre traiçoeiro, já havia apagado qualquer informação sobre o autor… ou se ele mesmo não tinha falado em voz alta sem perceber.
E assim, Quintus encerrou a noite do único jeito possível: bebendo mais e a cada gole, a realidade se tornava mais turva, e o peso da embriaguez, somado à vergonha esmagadora, finalmente venceu.
Sua cabeça tombou lentamente para frente, e, sem resistência alguma, ele desabou sobre a mesa com um baque suave, o rosto enterrado entre os braços, entregue ao único refúgio que lhe restava: o sono dos derrotados.
Gustavo, igualmente bêbado, olhou de relance para ele, mas decidiu que tinha seus próprios problemas para resolver. Levantou-se sem avisar ninguém, preocupado demais com a logística de como diabos voltaria para casa sozinho.
Leon, por outro lado, recebeu um convite tentador em seu celular, e fez cálculos rápidos: poderia muito bem deixar Quintus ali por algumas horas sem que ele causasse problemas. Bastava voltar antes que o amigo acordasse. Sem peso na consciência, levantou-se e desapareceu.
Mirela, que ainda trabalhava, sequer lhe lançou um segundo olhar. Estava ocupada demais para se importar. o jovem Maximus, afinal, já fazia parte da mobília do lugar.
O tempo passou. O bar foi esvaziando aos poucos. O burburinho das conversas diminuiu, os brindes cessaram, e a música ambiente se tornou apenas um som distante. Quintus permaneceu imóvel, um ser inerte e indefeso, esquecido à própria sorte. Mas ele não estava tão sozinho quanto parecia.
Porque, conforme os minutos avançavam e a madrugada engolia as últimas mesas ocupadas, figuras começaram a se aproximar. Olhares atentos pousaram sobre ele, analisando, esperando.
Cercado, ele não percebeu o perigo iminente. Mas, se estivesse desperto, talvez entendesse o que já era óbvio para qualquer um que olhasse de fora: se achava que a noite tinha sido um pesadelo, era porque ainda não tinha visto o que o aguardava ao amanhecer.
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