A primeira coisa que Quintus percebeu foi que não estava morto. O que era uma pena, considerando as circunstâncias.

    Seu cérebro parecia ter sido substituído por uma batata crua, e sua visão estava mais embaçada do que uma foto tirada por um idoso tentando usar o celular pela primeira vez. E a luz que entrava no ambiente não era apenas clara, ela era uma ofensa pessoal.

    Tentou abrir os olhos completamente, mas algo na sua bochecha deu um leve ploc ao se desprender do travesseiro. Algo úmido. Algo errado. Algo que não deveria existir.

    Ele não queria olhar. Não precisava olhar. Era como pisar em algo suspeito na rua: se você não vê, não aconteceu. Mas o cheiro confirmou suas piores suspeitas. Definitivamente mesmo não querendo olhar, ele olhou. 

    E lá estava. Um lago tóxico particular, reluzente na luz da manhã. Um legado viscoso que, com 90% de certeza, tinha sido sua contribuição pessoal ao mundo.

    “E eu achando que já tinha atingido meu fundo do poço.” — pensou soltando um longo suspiro por mais uma derrota. 

    Ele virou a cabeça devagar, como quem tenta não assustar a própria ressaca. Pelo menos ainda estava respirando, o que, dadas as circunstâncias, já era lucro. 

    Mas isso não explicava por que diabos estava deitado em uma cama digna de princesa da Disney, cercado por almofadas com corações bordados e pétalas de rosa espalhadas pelo chão, como se tivesse tropeçado em um casamento temático da Barbie. 

    O lustre acima dele parecia uma herança roubada de algum nobre da dinastia Baiana, enquanto as cortinas de veludo tremulavam suavemente, e a luz dourada que entrava pelas janelas gradeadas criava a atmosfera perfeita para um sequestro com bom gosto.

    A estranheza de não saber como havia parado ali fez Quintus esquecer o vômito. Esqueceu a ressaca. Tudo o que restava agora era a necessidade urgente de entender aquela nova realidade:

    “Espera… e se… Eu reencarnei como bilionário?!” — pensou, os olhos arregalados brilhando como um órfão que acabou de descobrir que é herdeiro perdido de um fazendeiro rico. 

    “Droga, cadê minha conta bancária? Eu PRECISO checar meu saldo!” — jogou os lençóis para o lado, inspecionando suas mãos como se fossem cheques assinados pelo destino. Olhou ao redor em busca do celular, mas nada. Nem no colchão, nem nas almofadas espalhadas, nem no chão coberto de pétalas.

    “Será que deixei no restaurante…?” — a ideia fez um calafrio. Imagina se alguém já estava acessando suas tentativas humilhantes de conquistas, ou vendo suas poses treinando seu olhar de dominação? Mas, antes de surtar com o futuro de sua reputação digital, havia uma questão ainda mais urgente: onde diabos ele estava?

    Primeiro, entender a nova realidade. Depois, correr atrás do celular… e, com sorte, da dignidade perdida.

    O peito de Quintus se encheu de emoção. Era isso! Só podia ser. Ele finalmente tinha sido agraciado com uma nova vida, assim como nos mangás e webnovels que tanto lia! 

    O pânico pelo celular esquecido no restaurante foi momentaneamente abafado pela empolgação. Possivelmente o celular tinha ficado no outro mundo. E quem precisa de um aparelho de vidro e metal quando o universo acaba de te conceder uma reencarnação gloriosa?

    Quintus riu alto, quase gargalhando, enquanto girava nos calcanhares, de braços abertos, como se estivesse no palco de um grande teatro.

    Olhou para trás. Olhou debaixo da cama. Nada. continuou olhando ao redor, procurando Gustavo e Leon, mas não viu nenhum sinal deles. Isso só podia significar uma coisa: isso não era uma pegadinha e ele era o protagonista absoluto daquele momento! E assim, ergueu as mãos dramaticamente para o alto e declarou em voz firme:

    — Então é isso… finalmente cheguei ao topo. — disse passando as mãos pelo tecido macio — O destino percebeu meu valor e me concedeu um novo destino reencarnado: riqueza, glória e um roupão felpudo!

    — Seria mais divertido com meus amigos… — seguiu seu monólogo particular, como um maluco tentando acalmar a si mesmo antes que a realidade o atropelasse — Mas talvez isso seja um sinal. Eu superei a fase dos coadjuvantes. Agora sou um ser superior! Meu brilho os ofuscaria!

    E então, sem aviso, tropeçou na bainha do próprio roupão e caiu de cara no chão, mas rapidamente se ergueu de um salto, ignorando solenemente a dor no rosto e o fato de que provavelmente deixara metade da dignidade no chão. Abriu os braços e declarou ao universo:

    — Cair é apenas um conceito relativo! Se ninguém viu, aconteceu? Claro que não! Agora, voltemos ao meu momento de glória! — disse, dando um tempo para confirmar que estava sozinho e não haveria interrupções. 

    — Ouçam bem! — continuou sem se importar com o tropeço —  Depois de um pequeno desvio em um mundo esquecível. Seu salvador chegou! Anunciado pelos céus, escolhido pelos deuses, cantado pelos bardos! Que o Rei Demônio comece a cavar sua cova, pois a lenda está entre vocês!

    O silêncio reinava absoluto. Nenhum velho sábio com cajado brilhante, nenhuma donzela lançando um olhar desesperado por ajuda, nem mesmo um goblin aleatório para apanhar e dar XP. Só ele e um quarto luxuoso fazendo-o refletir:

    “Ué… cadê minha quest inicial? Cadê o NPC que me dá uma espada de madeira e me manda matar ratos?”

    — Pior que, se esse for meu traje padrão… — Quintus olhou para o roupão cor-de-rosa que vestia — Tô começando a temer pelo gênero do meu personagem.

    Quintus cruzou os braços, analisando a grandiosidade do quarto ao seu redor. Se aquele não fosse um novo mundo, então ele não sabia mais o que poderia ser. Afinal, nunca na vida ele havia dormido cercado por cortinas de veludo, almofadas de cetim e um café da manhã espalhado pelo chão digno de um rei.

    Ele franziu a testa, pensativo. Se havia uma regra universal em todas as histórias de reencarnação, era que os protagonistas ganhavam poderes. E ele, claramente, era o protagonista dessa nova vida. A lógica era infalível. Mas que tipo de habilidade teria? Superforça? Magia ancestral? A capacidade de transformar boletos em dinheiro? Só havia uma maneira de descobrir. Era hora de despertar seu verdadeiro potencial!

    — Beleza, novo mundo, nova vida, novas regras… Então cadê minha interface? — tentou Quintus franzindo a testa e estendendo a mão como se estivesse segurando um controle invisível.

    — Abrir inventário! Acessar habilidades! Ativar minimapa! Interface de usuário!

    Nada. Nenhum bip, nenhum holograma, nem uma faísca tímida para enganar sua esperança. Ele abriu um olho devagar, como se temesse descobrir que o sistema tinha sido terceirizado para uma empresa incompetente. A única coisa que aconteceu foi o próprio silêncio, tão forte e julgador que parecia uma entidade consciente, zombando dele enquanto ele chegava a conclusão de que: 

    — Beleza! — respirou fundo e continuou em seu monólogo audível — Não tem interface, mas ainda posso ter poderes! Tem que ter alguma coisa! Sempre tem!

    Abrindo um dos olhos, olhou ao redor, analisando a situação. Não havia público. Melhor assim. Se fosse para passar vergonha, que pelo menos fosse sozinho. Ele fechou os olhos novamente e tentou canalizar sua energia.

    — Vamos lá… talvez um comando de ativação? Lançar feitiço! Ativar magia! Abrir portal! Criar lâmina sagrada! Invocar dragão!

    Nada novamente. Quintus começou a suar. Seu coração bateu mais forte. Isso não fazia sentido. Se estava em outra vida, o que estava faltando? Um grito mais dramático? Um brilho repentino? Um narrador épico explicando sua ascensão ao poder?!

    Ele mordeu o lábio, pensativo. Talvez o problema fosse a falta de movimento. Nos animes, ninguém apenas invocava magia. Eles gritavam, faziam poses e gesticulavam como se estivessem tentando afastar um enxame de abelhas invisíveis. Respirou fundo e decidiu: se era para fazer papel de idiota, faria com estilo.

    — EXPLOSÃO MÍSTICA!!! — gritou com toda a força de seus pulmões e com um salto simples, mas que em sua memória ficaria registrado com um salto triplo carpado. 

    Silêncio absoluto. 

    — Ah, então é assim? Tem que ser com mais emoção?

    Respirou fundo e concentrou toda a sua força, colocando o máximo de energia na voz:

    — R A J A D A S U P R E M A D O C A O S ! ! !

    Com o grito ensurdecedor, lançou os dois braços para frente, tentando projetar uma esfera de energia invisível. O que ele não percebeu foi que a bandeja de café da manhã estava estrategicamente posicionada na beira da cama.

    No impulso do movimento, sua mão acertou em cheio a borda da bandeja, que virou uma cachoeira de suco de laranja na sua própria cabeça. O suco, a geleia e os ovos voaram em um balé trágico, acertando primeiro o teto e depois descendo sobre sua cabeça com a fúria de um ataque surpresa.

    O impacto o fez tropeçar para trás, onde pisou na torrada, escorregou, bateu de costas contra a mesinha de canto e caiu sentado no chão, completamente coberto de café e dignidade arruinada. Um envelope que acompanhava o café da manhã disponibilizado na cama pousou em seu rosto como uma tapa simbólica da realidade.

    — …Tá! — respirou fundo e limpou o rosto, tentando manter a compostura — Talvez seja um sistema por nível. Começo sem habilidades. Faz sentido.

    Erguendo-se com a dignidade abalada, Quintus olhou para os lados, rezando para que nenhuma testemunha tivesse presenciado sua performance de boneco desarticulado. 

    Respirou fundo e, quando sua pulsação desacelerou, notou o envelope no colo. Pegou o cartão com cuidado, virou-o algumas vezes nas mãos, como se pudesse descobrir algo só pelo tato, e murmurou:

    — Se isso for um convite para mais humilhação, eu me retiro oficialmente dessa reencarnação.

    Mas então, contra todo o bom senso, ele leu em voz alta:

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