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    — Uma bolada na cabeça? Isso foi o gatilho da sua iluminação? — perguntou o bilionário, franzindo a testa como quem tenta entender uma profecia escrita num pacote de salgadinho.

    O bilionário inclinou-se levemente, mantendo o sorriso, mas com um leve arquear de sobrancelha que não passou despercebido. Por um instante, seus olhos desviaram para a mulher ao seu lado com uma prancheta, como quem procura confirmação estatística para uma aposta espiritual. Ela continuou escrevendo com a calma de quem já viu coisas piores, mas o bilionário hesitou. 

    Por mais firme que fosse sua fé nas reencarnações, por mais que acreditasse que cada alma escolhida era parte de um plano cósmico preciso, havia ali, no fundo de seu olhar, a centelha de um pensamento perigoso: “Será que pegamos o reencarnado certo… ou só mais um lunático com histórico de boladas?”

    — Sim! — finalmente, respondeu o jovem desanimado — E o pior: nem foi uma bolada mística. Foi daquelas bolas murchas, fedidas… Daquelas que parecem ter passado férias na axila de um adolescente.

    A risada saiu, mas arrastada e fraca, como se tivesse que atravessar a vergonha antes de chegar à boca. Sua fala anterior havia entregado mais do que devia: uma rachadura involuntária na muralha de certeza que sustentava sua crença. 

    Quintus percebeu que sua última frase tinha mais verdades embutidas do que ele gostaria de admitir. Pela primeira vez, encarou sua ‘fé reencarnacionista’ sob a luz incômoda da lógica: 

    “E se tudo isso… as visões, as vidas passadas, sensações estranhas, o pônei com patins… forem apenas efeitos colaterais de um traumatismo craniano mal interpretado?”

    — Vejo que os fantasmas da dúvida estão fazendo visita novamente, não é mesmo? — disse o bilionário com um sorriso de quem ganha muito dinheiro vendendo incenso com certificado — Isso é ótimo! Não dá pra evoluir sem tropeçar nas próprias certezas. Só quando limpamos a bagunça interior é que podemos seguir para o próximo nível.

    — Ah! — continuou o bilionário, entrando no meio da tempestade mental de Quintus como um garçom interrompendo um pedido de casamento  — agora lembrei que nem me apresentei direito…​

    Ele fez uma pausa dramática, como se esperasse uma trilha sonora épica surgir do nada.​

    — Me chamo Dr. Zaratustra.​

    Quintus tossiu seco, como se a própria sanidade tivesse tentado escapar pela garganta. Uma avalanche de pensamentos confusos desceu em alta velocidade:

    “Zaratustra… soa como um remédio de tarja preta ou o nome de um chefe de RPG. E esse ainda se apresenta como doutor? Doutor em quê, astrologia avançada com tempero quântico?”

    — Doutor? — arriscou, na esperança de que a resposta fosse menos esotérica do que o nome — Em quê?​

    — Em mim mesmo! — respondeu o bilionário, inflando o peito — Hoje em dia, qualquer asno ou advogado se autodenomina doutor. Por que eu, que sou superior a todos, não poderia?​

    — E Zaratustra? — perguntou Quintus tentando conter o riso sem conseguir. 

    — Pela sua dúvida, será que temos mais um doutor aqui? — disse, com um olhar demorado que mais parecia estar fazendo uma perícia espiritual.

    — Vem de Nietzsche, sim! Zaratustra — disse ele, como quem saía de um transe existencial ou só esperava o timing perfeito de um drama — o profeta filosófico, não um cantor sertanejo nem marca de energético. Mas sinceramente, não espero que você, nem os incontáveis autoproclamados gênios deste país, conheçam. Pela sua cara, mal passou da bula do Viagra. Mas não tem problema. Nesta reencarnação, minha missão é simples: alcançar o além-do-homem. E, se possível, fazê-lo sem precisar interagir muito com macacos no caminho.

    — Tá! — disse Quintus, esfregando as têmporas como quem tenta deletar um vírus mental — Primeiro vamos voltar ao início. Você viu um bêbado falando merda, achou que ele tava canalizando Buda e decidiu que ele era um ser iluminado?!

    — Eu já estava de olho em você há um tempo — disse o bilionário, como se isso aliviasse.

    — Excelente. Isso só deixa tudo mais perturbador.

    Quintus esfregou mais uma vez o rosto como se quisesse reiniciar o cérebro com fricção. As perguntas martelavam sua cabeça com a força de um tambor de escola de samba em dia de ensaio geral:

    “E se for tudo mentira? E se for tudo verdade? E se eu for só um cara azarado com amnésia emocional fingindo ser especial pra compensar a existência medíocre?”

    Mas, ao mesmo tempo, uma parte dele, a parte que gostava de pensar que déjà-vus eram spoilers do destino, sussurrava que talvez houvesse algo ali. Um fio invisível conectando seus tropeços, suas quedas e até aquela obsessão inexplicável com pamonha e chuteiras velhas. 

    Quintus olhou ao redor, vendo mais uma vez as cortinas de veludo tremularem como se dançassem ao som de uma trilha de suspense, pétalas de rosa jogadas no chão em uma estética de cerimônia romântica que nunca aconteceu, e enfermeiros ao fundo, todos imóveis, observando a cena com a calma de quem espera que o paciente pule pela janela a qualquer momento.

    — Beleza… — murmurou, coçando a nuca como quem tentava coçar também o raciocínio — E onde exatamente é esse lugar? Porque, honestamente, tá parecendo um casamento entre um manicômio e um puteiro. 

    O bilionário soltou uma risada que, para qualquer ouvido treinado, ficava perigosamente próxima de “vilão de desenho animado”.

    — Você é bem criativo. — comentou, batendo palmas lentamente — Apesar de que não é uma má ideia trocar esses enfermeiros por mulheres mais encorpadas. — apontou para a mulher com prancheta — Registra isso como plano de ação prioritário! — depois, virou-se com teatralidade  — Esta é a minha fundação! Um centro de reabilitação espiritual para aqueles que, como nós, foram reencarnados e agora precisam compreender sua missão.

    — Nós? — Quintus franziu a testa.

    — Eu também sou um reencarnado — disse ele, com o mesmo brilho no olhar de um youtuber que descobriu uma nova teoria da conspiração — Já tive inúmeras vidas! E em todas, lutei contra outros ‘eus’ para alcançar a melhor versão de mim mesmo.

    O jovem Maximus engoliu seco. A convicção do bilionário, misturada com aquele entusiasmo quase evangelizador, bateu nele como um reflexo em de banheiro de rodoviária: tremido, torto e com um pingo de vergonha alheia. Pela primeira vez, viu sua própria fé na reencarnação refletida em alguém ainda mais empenhado… e isso o deixou desconfortável. 

    Reencarnação fora para Quintus aquilo que a astrologia é para os indecisos: um empurrãozinho cósmico que justifica decisões ruins. Durante anos, abraçara a ideia como um cobertor quentinho em noite de tempestade existencial. Evitava questionar, com medo de descobrir que tudo era só poeira cósmica no ventilador da vida. As dúvidas estavam lá, mas ele fingia que não via.

    Só que agora, diante do fanatismo de Zaratustra, viu-se refletido num espelho incômodo. Era como se enxergasse um possível futuro seu, uma versão dele mesmo descontrolada. Aquilo que antes parecia uma explicação charmosa e até cult para sua vida se revelou uma fuga mal disfarçada, uma desculpa que começava a desmoronar sob o peso do próprio exagero.

    — Eu vejo em você, Quintus, essa hesitação no olhar, esse medo disfarçado de ceticismo. É comum. Às vezes, mais informações não iluminam… apenas queimam. O excesso de luz pode cegar. E a verdade, meu caro, fede. Porque ninguém troca de roupa espiritual se ela estiver limpa e cheirosinha. A gente só pensa em trocar quando a camisa tá suada, encardida ou rasgada em lugares que não deveriam rasgar.

    — Espera aí… — disse, ainda tentando processar a filosofia suada das roupas espirituais — Você falou mais cedo sobre lutar contra outros ‘eus’. O que exatamente isso quer dizer? Tipo… outras versões suas? Reencarnações?

    Dr. Zaratustra abriu um sorriso orgulhoso, como quem esperava ansiosamente por essa pergunta.

    Enquanto o bilionário fazia uma pausa dramática, provavelmente para respirar fundo e soltar mais uma tese espiritual, Quintus pensava: 

    “Legal. Primeiro ele fala em almas, depois em roupas e agora em versões de si mesmo. Se isso fosse um videogame, ele estaria no modo: chefão final com crise de identidade.”

    — Ah, não perca tempo com dúvidas bobas, meu jovem! Isso só atrasa a jornada dos grandiosos. Sim! Todas as versões de mim que vieram antes tentaram tomar o controle, mas falharam. Eu derrotei o poeta francês deprimido, o caçador de alces com TOC, o magnata do óleo de coco orgânico… Todos insignificantes! Agora, estou aqui: a versão definitiva, a última atualização do eu cósmico!

    Quintus ficou estático, como se seu cérebro tivesse travado diante de uma atualização mal-sucedida da realidade. Seus olhos passeavam pelo ambiente, tentando localizar uma saída, um botão de pânico, ou ao menos um contrato de rescisão cósmica. Aquilo era o equivalente espiritual de um PowerPoint sem fim. Sem conseguir mais processar, soltou:

    — De todas as suas vidas passadas, nenhuma era tipo… normal? Um padeiro, um operador de caixa, um motoboy que reencarnou com pressa?

    — Não! — disse o bilionário franzindo a testa como se essa fosse a ofensa mais grave que já ouvira  — Nada medíocre apareceu nas minhas hipnoses.

    — Hora dos remédios, senhor. — disse um enfermeiro que se aproximou com um copo de comprimidos coloridos antes que o jovem Maximus pudesse reagir.

    O bilionário jogou os comprimidos na boca como se fossem balas de hortelã e os engoliu a seco, sem pestanejar. Depois, com a serenidade de quem acabou de tomar uma dose de lucidez líquida, piscou para Quintus, prestes a soltar mais uma pérola iluminada.

    — Ignore isso. Apenas um protocolo da clínica.

    — Claro. Um protocolo. — murmurou, cruzando os braços com a tranquilidade de quem já perdeu tudo, menos a língua afiada — Que inclui te medicar como um paciente qualquer?

    — Veja bem… — disse, dando um tapinha no ombro dele — Eu sou tanto o fundador quanto um beneficiário do programa. É uma relação simbiótica!

    — Simbiótica. Interessante… — disse o jovem Maximus, com o tom calmo de quem já aceitou que tá preso com um lunático — Vou incluir essa palavra bonita na minha denúncia, só pra impressionar o delegado.

    O bilionário ignorou o sarcasmo e apontou para Quintus como quem revela um segredo que só faz sentido depois de 12 temporadas.

    — Você não se lembra da sua infância, certo?

    — Err… não exatamente. Mas isso não quer dizer que eu seja um…

    — Reencarnado. — O Dr. Zaratustra completou com solenidade — Seu caso é especial. Você não nasceu com essa vida. Você a assumiu.

    — Como assim, assumi?!

    — Algumas almas não reencarnam no nascimento. Elas entram no corpo de alguém que deveria ter morrido. Uma fusão de destinos. Você é um desses casos.

    — Você tá dizendo que eu… roubei essa vida de outra pessoa?!

    — Não ‘roubou’. O universo te presenteou! Mas há uma condição…

    — Sempre tem.

    — Você precisa cumprir sua missão.

    — E qual seria essa missão?

    — Descobrir o que te impede de alcançar seu verdadeiro potencial e superar isso!

    — Talvez seja o fato de que eu não tenho dinheiro?

    — O dinheiro não é tudo!

    — Então me dá um pouco do seu!

    — Não! Heróis precisam conquistar!

    Quintus olhou a sua volta devagar, com a calma típica de quem teve uma grande revelação.  Estava claro: até nas doutrinas espirituais, o capitalismo dava um jeito de enfiar a carteira. Suspirou, e seus pensamentos deslizaram por atalhos mais… eficazes. Na cabeça dele, a equação já era outra: ninguém enriquece com honestidade, só com esperteza. 

    Se quisesse uma fortuna, teria que apostar em dois caminhos sólidos: ou seduzir uma viúva rica e emocionalmente carente, ou montar um espetáculo de fé lucrativa que misturasse chakras e boletos. Talvez um bingo esotérico, com cantos gregorianos e sorteios kármicos, onde o prêmio fosse sempre dele. 

    Ou um curso online com um nome convincente tipo: ‘Reencarne milionário em 7 vidas, garantia espiritual ou seu karma de volta!’ Porque confiar no esforço? Isso era coisa de trabalhador iludido e bem domesticado.

    Quintus olhou em volta, preso em um manicômio de luxo espiritual com um guru bilionário que tomava remédios e acreditava ter vencido o próprio ‘eu’ do passado. Respirou fundo.

    Ele estava cansado de duvidar. Cansado de fingir que não queria acreditar. E, principalmente, cansado de cair em contradição toda vez que falava de reencarnação. Chegava de pêndulo existencial.

    Respirou fundo, decidido a pôr fim ao limbo em que vivia: entre o ceticismo e a fé, entre o ‘será?’ e o ‘espero que sim’. Era hora de ir até o fim. Quintus tiraria todas as dúvidas, custasse o que custasse.

    — Ok… Vamos supor que tudo isso seja verdade — começou — Como diferenciar uma vida passada de uma alma vagante tentando reencarnar à força?

    O bilionário — ou Dr. Zaratustra, como se autodenominava — sorriu como um professor satisfeito com a pergunta de um aluno antes problemático.

    — Excelente questão! Vidas passadas são experiências que sua alma viveu. Elas têm raízes. São certezas. Já as almas vagantes… são possibilidades. Elas flutuam ao redor de corpos frágeis, tentando se infiltrar. São como hóspedes sem convite tentando dominar a casa.

    — Então múltiplas personalidades seriam isso?

    — Exatamente. Algumas pessoas chamam de distúrbio. Eu chamo de conflito existencial coletivo.

    — Isso… — Quintus passou a mão pelos cabelos, como se procurasse uma ideia escondida entre os fios — Explicaria muita coisa.

    — Aqui, vamos ajudá-lo a separar suas vidas reais dessas vozes de penetra espiritual.

    Quintus inspirou fundo, como se estivesse prestes a mergulhar num tanque cheio de loucura líquida. Os enfermeiros, parados. As cortinas, dançando. O bilionário, rindo como um médium que acabou de fazer contato com a conta bancária alheia.

    — Ah. Separar. Como se fosse simples identificar o que é trauma mal resolvido e o que é alma de vendedor de enciclopédia tentando se hospedar no meu corpo. Mas vá lá… Como vocês pretendem fazer isso?

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