— Então, Dr. Zaratustra, como vocês pretendem separar minhas ‘almas hospedeiras’ das minhas legítimas vidas passadas? Vocês têm um tipo de scanner cósmico? Um aplicativo espiritual? Um Tinder kármico que desliza para esquerda nas almas penetras? — perguntou ironicamente Quintus, inclinando-se ligeiramente na cadeira, seus dedos tamborilando no joelho em um ritmo nervoso enquanto sua expressão oscilava entre curiosidade e desespero comedido.

    O bilionário ajeitou a postura, estufando o peito tal qual um pavão preparado para revelar seu novo empreendimento espiritual e abriu um sorriso reluzente com a certeza inabalável de quem transformaria técnicas de respiração básicas em ‘portais transdimensionais de consciência expandida’ com preços proporcionais à suposta raridade do conhecimento.

    — Meu caro reencarnado, tenho uma proposta para você. Algo simples, objetivo e… — ele tirou a carteira do bolso com uma teatralidade exagerada, extraindo cinco notas de cem reais e as abanando no ar como bandeirinhas de rendição — …lucrativo. Quinhentos reais adiantados só por escutar meu desafio, e mais quinhentos depois de tentar executá-lo. Sem compromisso, sem riscos.

    Quintus engoliu seco, seus olhos fixos nas notas, semelhante a um gato faminto diante de um pote lotado de carne moída. O dinheiro tinha um brilho quase sobrenatural sob a luz do quarto, prometendo pequenas liberdades que seu salário de estagiário nunca proporcionava. 

    Seu cérebro imediatamente começou a calcular as possibilidades: duas semanas inteiras de trabalho em apenas algumas horas de loucura consentida.

    — Espera, deixa eu entender… você quer me pagar mil reais para fazer um desafio qualquer? — Quintus franziu a testa, sua sobrancelha arqueada como um ponto de interrogação vivo — Isso parece saído daqueles contos de fadas do bostil com feira nordestina onde o forasteiro caiu no papo do malandro local, aceitou participar de uma aposta aparentemente vantajosa e terminou o dia sem um tostão no bolso e ainda devendo favores ao desconhecido.

    O Dr. Zaratustra gargalhou, o som ecoando pela sala como uma cascata de pequenas sinetas.

    — Não seja tão desconfiado! — o bilionário fez um gesto amplo com as mãos, apontando para os homens de jaleco branco que os circundavam — Permita-me apresentar meus associados. São enfermeiros e cientistas especializados que estão trabalhando para expandir o entendimento sobre reencarnações e possessões de alma. Estamos tentando transcender as limitações da ciência moderna que reduz experiências transcendentais a termos como ‘esquizofrenia’ ou ‘transtorno de múltiplas personalidades’.

    Um dos cientistas, um homem magro com cabelos espetados que parecia ter acabado de levar um choque em uma tomada, acenou timidamente. Outro, mais corpulento e com óculos tão grandes que faziam seus olhos parecerem dois peixes num aquário, simplesmente grunhiu em aprovação.

    — E o que exatamente eu teria que fazer nesse ‘desafio’? — questionou Quintus, sua curiosidade vencendo momentaneamente seu bom senso, que já fazia as malas e pedia um Uber para longe dali.

    — Algo simples! — O bilionário se inclinou para frente, baixando a voz como se compartilhasse o segredo religioso para multiplicação de dinheiro — Queremos que você conquiste uma garota em um restaurante.

    A boca de Quintus entreabriu-se levemente enquanto seu cérebro tentava processar aquela informação, arrastando-se com a velocidade característica de uma conexão discada dos anos 90.

    — Você… quer me pagar mil reais… para flertar com alguém? Isso é algum tipo de reality show? Existe uma câmera escondida aqui? — ele olhou ao redor, esperando ver um apresentador pular de trás das cortinas gritando que ele havia sido trollado em rede nacional.

    — Não exatamente. É um experimento científico. — Dr. Zaratustra pegou um pequeno estojo preto de dentro do bolso e o abriu, revelando um relógio elegante e um minúsculo ponto eletrônico — Você usará estes dispositivos. O relógio monitora seus sinais vitais, e o ponto de ouvido nos permite orientá-lo e gravar toda a experiência para análise posterior.

    Quintus olhou para os objetos e depois para o dinheiro ainda balançando entre os dedos do bilionário como uma pequena bandeira verde sinalizando ‘VÁ’. Em sua mente, a equação era simples: algumas horas de potencial constrangimento versus o PlayStation 18 que ele cobiçava há meses. A matemática do desespero financeiro nunca falha.

    — Então, eu só preciso colocar esses aparelhos, ir a um restaurante, flertar com uma garota qualquer, e ganho mil reais? Sem pegadinha?

    — Exatamente! — confirmou o bilionário com um sorriso digno de um vendedor de carros usados prestes a empurrar um fusca sem motor como ‘item de colecionador’. — Você não tem nada a perder. Se em algum momento se sentir desconfortável, pode simplesmente ir embora, chamar a polícia, fazer o que quiser! Mas pense nos benefícios: dinheiro, conhecimento sobre suas vidas passadas, aprimoramento pessoal… — ele fez uma pausa dramática — …e a chance de fazer parte de algo maior que você mesmo.

    A mulher com a prancheta pigarreou discretamente, fazendo uma anotação com a mesma expressão entediada de quem já assistiu a esse mesmo discurso motivacional pelo menos cinquenta vezes.

    — E quanto tempo duraria esse… experimento? — perguntou Quintus, agora cogitando seriamente a proposta enquanto sua ganância e seus sonhos de comprar o tão desejado console disputavam uma luta feroz contra seu bom senso.

    — O tempo que você quiser! Todos os limites serão definidos por você. — Dr. Zaratustra abriu os braços — Dias, condições, se quer ou não realizar as missões… tudo sob seu controle. E cada novo encontro, cada nova missão, será remunerada de acordo com o tempo dedicado a nós.

    O jovem Maximus observou o ambiente ao seu redor: as grades nas janelas, os enfermeiros estrategicamente posicionados como estátuas musculosas prontas para entrar em ação, a mulher com a prancheta cujos olhos transmitiam a mesma emoção de um peixe congelado. 

    A realidade era clara: ele não estava exatamente em posição de recusar. Se concordar significava uma chance de sair daquele luxuoso cárcere privado, então ‘sim’ era a única resposta lógica.

    — Tudo bem, eu topo. — Quintus suspirou, estendendo a mão para o dinheiro como quem se rende a um destino inevitável.

    O bilionário sorriu triunfante, entregando as notas de cem com a solenidade de quem transfere uma relíquia sagrada.

    — Excelente escolha! A liberdade combina com você. — Dr. Zaratustra estalou os dedos, e imediatamente a movimentação começou ao redor deles — Vamos sair daqui agora mesmo para seu primeiro desafio!

    Quintus guardou o dinheiro no bolso com a velocidade de um mágico escondendo um coelho, seus pensamentos agora fixos não em reencarnação ou vidas passadas, mas em pura e simples liberdade. 

    Pela primeira vez desde que acordou naquele quarto estranho, a ideia de estar em casa, seguro em seu sofá surrado, parecia mais atraente do que qualquer revelação espiritual.

    Sem aviso, o bilionário pegou um conjunto de roupas e jogou na cara de Quintus, dizendo:

    — Vista-se! Sua jornada começa agora!

    O pacote desdobrou revelando um traje social casual impecavelmente escolhido: calça chino bege, camisa azul-clara de algodão egípcio e um blazer azul-marinho que parecia ter sido costurado por duendes capixabas com fios de nuvens.

    Antes que pudesse protestar, dois assistentes surgiram do nada e o empurraram para trás de um biombo com a delicadeza de quem protege uma moça em apuros — como aqueles amigos que formam um escudo humano em volta da amiga fazendo xixi no mato, protegendo não exatamente a privacidade, mas a narrativa de que tudo ali ainda é civilizado.

    Quinze minutos depois, Quintus emergiu parecendo o filho bastardo de Clodovil com um apresentador de programa de auditório, enquanto os assistentes o empurravam para uma cadeira. 

    Um deles atacou seus cabelos com pentes, produtos e técnicas que fariam um cabeleireiro paulista chorar de emoção, enquanto o outro borrifava um perfume que exalava aquele aroma inconfundível de quem já nasceu em berço de ouro, comprou a maternidade e ainda cobrou aluguel do próprio útero. 

    Para completar a transformação, calçaram-lhe sapatos de couro de calango nordestino tão brilhantes que poderiam servir como espelho de emergência.

    —Agora sim! — declarou o bilionário — Você parece alguém digno de descobrir os segredos do universo. Ou pelo menos alguém que não seria barrado na porta de um restaurante com estrela Michelin.

    Quintus ergueu o pé para ver o brilho do sapato e tocou o cabelo como quem checa se ainda está com o próprio couro cabeludo, depois para o reflexo distorcido na janela. Estava impecável. Lustrado. Aromatizado. Quase editado em 4K.

    — Ei, o que foi isso? Um pacto com algum salão de beleza espiritual? — perguntou com ironia, tentando entender o nível de capricho envolvido.

    — Precisamos da sua versão mais refinada, meu caro — respondeu o dr. Zaratustra — Só assim conseguimos reduzir as variáveis do teste. E também… você precisava parar de parecer um figurante da novela das seis.

    Os enfermeiros se organizaram em duas fileiras perfeitas, formando um corredor humano que lembrava a Quintus uma cena de casamento, ou de execução, dependendo da perspectiva. O protocolo de segurança era impressionante. 

    Cada homem de branco se posicionou com a precisão de uma coreografia ensaiada, mãos cruzadas à frente do corpo, olhares fixos, músculos inflados como se tivessem sido contratados tanto para prevenir fugas quanto para posar para a capa de revistas marombas.

    — Isso é realmente necessário? — murmurou Quintus para a mulher com a prancheta, que agora caminhava ao seu lado com a fluidez de uma sombra profissional — Parece que estamos saindo de um dos cofres do Vaticano, não de uma clínica de reabilitação espiritual.

    — Procedimento padrão. — Ela nem levantou os olhos da prancheta, sua voz tão plana — O Dr. Zaratustra insiste em segurança máxima para proteger nossos pacientes especiais.

    — Por ‘pacientes especiais’ você quer dizer ‘prisioneiros voluntários à força’, certo? — Quintus tentou soar sarcástico, mas sua voz falhou quando um dos enfermeiros flexionou os músculos do braço ao ajustar a postura.

    Atravessaram uma série de portas de segurança, cada uma exigindo cartões de acesso, verificação de retina e senhas que a mulher com a prancheta fornecia com a eficiência de um robô programado exclusivamente para aquela função. 

    A última porta era tão grossa e imponente que parecia ter sido projetada para conter uma distribuição de verbas parlamentares entre os políticos do bostil que é uma república de bananas imaginária pertencente aos contos de fada.  

    Quando finalmente saíram para o ar livre, Quintus inspirou profundamente, absorvendo a sensação de liberdade como um homem que acabou de emergir de baixo d’água. 

    Mas sua pequena celebração foi interrompida pela visão do que os aguardava: uma van preta, reluzente, com as portas laterais abertas como a boca de um predador esperando sua próxima refeição.

    — Nossa carruagem aguarda! — anunciou Dr. Zaratustra, gesticulando em direção ao veículo.

    A van não era apenas um veículo; era um centro de operações móvel que faria o Tribunal Superior Eleitoral coçar a cabeça em admiração. O interior estava equipado com monitores de alta definição, teclados holográficos, e tantos botões piscantes que parecia um painel de controle de espaçonave. 

    Nas telas, Quintus podia ver diferentes ângulos do exterior, sistemas de rastreamento GPS, e até mesmo o que parecia ser um monitor de sinais vitais.

    — Isso é… um pouco exagerado para uma simples missão de flerte, não acha? — o jovem Maximus engoliu seco, acomodando-se no assento de couro que era provavelmente mais caro que todo o mobiliário de seu apartamento.

    — A ciência não conhece exageros, apenas preparação inadequada! — respondeu o bilionário, acomodando-se ao lado dele enquanto a mulher com a prancheta ocupava um dos assentos em frente aos monitores.

    A porta deslizou fechando com um som brusco que selou o destino de Quintus. Os motores ronronaram suavemente, e a van começou a se mover. Através das janelas escurecidas, ele observou a clínica se afastando, suas luzes agora brilhando intensamente contra o céu já negro. 

    Um edifício elegante e moderno que, visto de fora, poderia facilmente passar por um resort de luxo ou a sede de uma startup de tecnologia bem-sucedida. O relógio digital do painel marcava 20h17 — primeira referência concreta de tempo que o jovem Maximus tinha desde sua chegada. 

    Qualquer pensamento de fuga que ainda pudesse estar borbulhando na mente de Quintus foi completamente neutralizado naquele momento. 

    Entre os enfermeiros com físicos de super-heróis aposentados, a mulher com prancheta cuja agilidade silenciosa sugeria um passado em operações secretas, e agora esta van equipada como uma base militar móvel, as chances de escapar eram menores que as de ganhar na loteria usando números de telefone de pizzarias como aposta.

    — Então… — Quintus ajustou a gola da camisa, tentando parecer mais calmo do que realmente estava — Para onde estamos indo exatamente?

    — Para o cenário do seu primeiro grande teste! — respondeu Dr. Zaratustra, seus olhos brilhando como os de uma criança em frente a uma loja de doces — Um restaurante elegante no centro da cidade, onde sua alma reencarnada terá a oportunidade de provar seu magnetismo natural!

    Quintus afundou no assento de couro, sua mente dividida entre o terror do desconhecido e o conforto dos quinhentos reais em seu bolso. Se esse era o preço da liberdade, então ele pagaria, mesmo que isso significasse se transformar momentaneamente na cobaia mais bem vestida e mal remunerada da história da pesquisa espiritual.

    — Só não me diga que vou ter que usar um roupão rosa para essa missão também… — murmurou ele, fechando os olhos enquanto a van acelerava em direção ao seu destino.

    O bilionário apenas sorriu em resposta, um sorriso que dizia mais que mil palavras, nenhuma delas reconfortante.

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