Índice de Capítulo

    Quintus observava as duas mulheres como um arqueólogo diante de hieróglifos antigos: fascinado, mas sem a menor ideia de como decifrar aqueles enigmas de salto alto. 

    A escolha parecia um problema de cálculo avançado: não importava qual variável selecionasse, o resultado provavelmente seria sua dignidade transformada em pó. Mas o dinheiro e a promessa dos dois tapas vingativos no rosto do bilionário excêntrico eram combustível suficiente para sua coragem artificial.

    — Decida-se logo! A morena intelectual ou a loira moderninha? — a voz de Zaratustra estalou em seu ouvido como um mosquito eletrônico.

    — Estou pensando estrategicamente. — sussurrou Quintus, ajustando o guardanapo de linho no colo como se estivesse posicionando uma armadura e completando com uma bravata para disfarçar o seu medo — Um general não entra em batalha sem estudar o terreno.

    — General? — riu o bilionário pelo comunicador — Você está mais para um recruta tentando acertar o alvo com os olhos vendados. Escolha a morena. Tem cara de quem gosta de desgraçados com baixa autoestima.

    Quintus franziu o cenho, entrelaçando os dedos sobre a mesa. 

    “Como assim ‘desgraçado’? Estou só… economizando energia para o momento certo” — pensou, ajustando o ponto auricular discretamente enquanto fingia coçar a orelha.

    — Não sou desgraçado, sou contemplativo. — protestou em voz baixa — E por acaso, velho intrometido, também acho que tenho mais chance com a morena. Essa é minha escolha natural.

    — O QUÊ?! FALOU O VÊI ENTOMETIDO?! — a voz de Zaratustra explodiu em seu tímpano com o volume de uma turbina, fazendo Quintus saltar na cadeira e derrubar o guardanapo.

    — AAAI! BAIXA ISSO! — Quintus gritou, esquecendo-se completamente de que estava em público. Vários rostos elegantes voltaram-se em sua direção com expressões que variavam entre desdém e preocupação clínica.

    — NÃO ESTOU TE ESCUTANDO BEM! — berrou Zaratustra no comunicador — ACHO QUE TEM ALGUM PROBLEMA COM O PONTO!

    — O senhor está bem? — perguntou o garçom, arqueando a sobrancelha com a nobreza de quem já servira Dom Pedro II e ainda hoje lamentava ter que lidar com plebeus que não sabem usar o guardanapo.

    — Estou ótimo! — Quintus sorriu forçadamente, ajustando o volume do ponto auricular com dedos trêmulos — Só… lembrando uma música muito animada. Você sabe como é, quando gruda na cabeça…

    O garçom assentiu com uma expressão que claramente comunicava que não, ele não sabia como era, e que provavelmente nunca havia experimentado uma emoção em toda sua vida profissional.

    — CONSEGUE ME OUVIR, GAROTO? — A voz do bilionário continuava ensurdecedora.

    — Perfeitamente! — Quintus respondeu entre dentes, sorrindo como um maníaco enquanto simulava mexer no guardanapo — Agora, por favor, BAIXE O VOLUME!

    — O QUE VOCÊ DISSE SOBRE PERFUME?

    Quintus fechou os olhos, respirando fundo. 

    “É por isso que sou pobre” — pensou — “Toda oportunidade financeira que surge em minha vida vem amarrada a um pacote de humilhação pública.”

    — Vou desligar esse troço — murmurou, dedos aproximando-se perigosamente do ponto auricular.

    — NÃO! ESPERA! — a voz agora era um pouco mais baixa — Pronto, ajustei. Me desculpe, estava testando os limites do equipamento. Ciência, você entende.

    — Ciência uma ova! Você fez isso de propósito!

    — Irrelevante. — Zaratustra riu — Agora olhe para a morena. Mas olhe com atenção científica.

    Quintus obedeceu, focando a visão na mulher dos óculos pretos que folheava o livro com uma elegância intimidadora. Quando conseguiu enxergá-la melhor, notou dois detalhes que não tinha percebido antes: uma pequena argola prateada adornava uma de suas narinas, e tatuagens de borboletas decoravam discretamente seus ombros à mostra pelo vestido elegante.

    — Ela tem uma argola no nariz! — sussurrou, surpreso.

    — E isso te incomoda? — perguntou Zaratustra, agora com voz perfeitamente audível.

    Quintus franziu o cenho, lutando contra uma imagem mental involuntária de uma vaca sendo conduzida pelo nariz. 

    “Não seja ridículo.” — repreendeu-se o jovem Maximus — “é apenas um acessório fashion. Provavelmente significa que ela é livre, moderna, dona de seu próprio destino.”

    — E as borboletas nos ombros… — continuou, quase sonhador — Deve significar transformação, evolução, uma alma em constante metamorfose…

    A risada do bilionário cortou os devaneios de Quintus. Do interior da van, observando atentamente pelas câmeras, ele sorriu ao ver as expressões do jovem estampadas na tela, aquele brilho nos olhos, a mandíbula levemente caída, o suspiro quase involuntário. Era inconfundível.

    “Já vi esse olhar babando antes… Tá apaixonado, né, idiota?” — pensou, com a certeza de quem já estudou o mapa da carência alheia.

    — Esses são os piores sinais possiveis. — Zaratustra mal conseguia conter o escárnio — Garoto, você fez a pior escolha possível. Esse tipo de mulher gosta de polens diferentes. Ela senta em múltiplas flores durante seu voo, entendeu a metáfora?

    — Isso é muito preconceituoso! Você não pode julgar uma pessoa por…

    — Vá lá e descubra por si mesmo, então. Mas lembre-se que a ciência se baseia em dados estatísticos, e meus dados são impecáveis.

    Com coragem de aluno pedindo lanche extra na cantina da escola pública e a autoestima de quem tirou 4,3 e passou com arredondamento, tomou o último gole de champanhe como quem toma um gole de catuaba antes da micareta: com fé e arrependimento simultâneos. 

    Levantou-se com a valentia de um participante do BBB indo enfrentar o paredão… só que o inimigo era o bilionário e sua arrogância. Naquele momento, seu desejo era simples: mostrar que até o Datafolha, com toda sua fama de especialista em previsões tortas, teria vergonha de dizer que entende os caminhos tortos do coração.

    Quintus deu o primeiro passo como se fosse puxador de bloco no carnaval: sem saber pra onde vai, mas confiante no batuque interior. Queria ver a cara do bilionário quando provasse que o amor, ou a tara, não segue estatística.

    Porque mulher nenhuma é equação, e o brasileiro: essa entidade meio lendária que talvez nem exista, mas que todo mundo conhece de ouvir falar, carrega no DNA o dom de se apaixonar na fila do SUS. E se essa criatura for real, Quintus tinha certeza: era parente de primeiro grau.

    Foi até a mesa da morena como se estivesse entrando em campo pela Seleção e pigarreou como quem vai puxar o ‘Uh, vai morrer!’ na torcida organizada do Corinthians.

    — Com licença, notei que você está sozinha e… — começou ele, a voz traindo sua insegurança com um leve tremor.

    A mulher ergueu os olhos do livro e Quintus congelou. Seu olhar era penetrante como um bisturi, analisando-o por trás das lentes elegantes com uma intensidade que parecia vasculhar sua conta bancária e histórico de relacionamentos em tempo real.

    “Pronto, agora vem o fora.” —  pensou, já preparando os músculos faciais para o impacto da rejeição. No entanto, após um segundo de avaliação silenciosa, ela apontou para a cadeira vazia à sua frente.

    — Senta aí.

    Quintus piscou várias vezes, seu cérebro tentando processar o comando direto. A surpresa foi tanta que ele quase olhou para trás, para verificar se havia outra pessoa a quem ela poderia estar se dirigindo.

    — E-eu? — gaguejou, apontando para o próprio peito como se precisasse confirmar sua própria existência.

    — Não, o escritor que está atrás de voce! Como é o nome mesmo? Pablo Vittar? — respondeu ela, com um sorriso irônico — Claro que é você. Vai ficar parado?

    “Ela aceitou?! ELA ACEITOU!” —  sua mente gritava em euforia enquanto seu corpo obedecia automaticamente, puxando a cadeira e sentando-se com o cuidado de quem desativa uma bomba.

    — Conseguiu! — a voz de Zaratustra soou surpresa em seu ouvido — Agora não estrague tudo falando sobre suas coleções de miniaturas ou teorias da conspiração.

    A mulher fechou o livro, colocando-o de lado, e pegou o cardápio com uma desenvoltura que fez Quintus se sentir como um primata recém-apresentado aos talheres.

    — Não é sempre que temos um cavaleiro neste lugar — comentou ela, percorrendo o menu com olhos experientes — Posso escolher o nosso jantar?

    — Cl-claro — respondeu ele, a surpresa dando lugar a um orgulho inflado. 

    “Um cavaleiro! Ela me chamou de cavaleiro! Talvez eu tenha algum charme desconhecido que só mulheres intelectuais conseguem detectar!”

    — Perfeito! — ela sorriu, e então virou-se para o garçom que apareceu instataneamente — Vamos querer o filé wagyu, as trufas negras importadas, o caviar Beluga, uma garrafa de Dom Pérignon Crystal, e para começar, uma seleção completa de entradas.

    O sorriso de Quintus congelou em seu rosto enquanto um cálculo mental rápido sugeria que aquele pedido custaria aproximadamente um valor de um carro, mais as contas de luz atrasadas, mais sua dívida no cartão de crédito. Suas mãos começaram a suar.

    — Acrescente o salmão defumado e as ostras — completou ela, antes de devolver o cardápio com um sorriso angelical.

    “Socorro.” — pensou Quintus, sentindo o pânico se avolumando em seu peito como um balão de hélio. — “e se o cartão do bilionário for falso? E se for só uma parte da experiência para me ver preso lavando pratos pelos próximos dez anos?”

    — Garoto, relaxa! — Zaratustra riu em seu ouvido — Seu rosto está da cor de um tomate nuclear. Lembre-se que estou cobrindo todos os gastos, conforme combinado.

    — Você tem certeza absoluta? — Quintus murmurou, fingindo tossir para disfarçar.

    — O que disse? — a morena inclinou-se sobre a mesa, e o perfume caro invadiu as narinas de Quintus como uma droga luxuosa.

    — Disse que… tenho certeza que será… delicioso — improvisou, engolindo em seco.

    — Teste o cartão agora se está tão paranoico. — sugeriu Zaratustra — Peça para pagar uma parte antecipadamente.

    Seguindo o conselho, Quintus chamou o garçom com um gesto que tentava parecer sofisticado, mas mais se assemelhava a alguém espantando mosquitos.

    — Eu gostaria de… hm… pagar a champanhe que já consumimos. Separadamente.

    O garçom assentiu com uma reverência minimalista, pegou o cartão dourado que Quintus estendeu com dedos trêmulos, e retornou minutos depois com um sorriso profissional e a máquina indicando ‘Transação aprovada’.

    O alívio que percorreu o corpo de Quintus foi tão intenso que ele quase derreteu na cadeira. 

    “Os deuses do capitalismo sorriram para mim hoje!” — pensou, agora encarando a mulher à sua frente com renovado interesse e sem o peso da falência iminente obscurecendo sua visão.

    — Então. — começou ele, tentando soar casual enquanto as entradas começavam a chegar numa procissão interminável de pratos caros — O que você gosta de fazer, além de ler?

    A morena pensou por um momento, bebericando sua taça recém-servida antes de responder:

    — Gosto de ver feed de redes sociais, vídeos curtos engraçados, tirar fotos para postar online. — enumerou ela, quase entediada — Adoro comprar roupas para fazer novos posts, chamar atenção. Quanto mais likes, mais sei que estou no caminho certo.

    Quintus tentou esconder a surpresa. Aquela resposta não parecia compatível com a imagem da intelectual profunda que havia construído em sua mente.

    “Talvez seja ironia.” — pensou, tentando salvar sua fantasia romântica — “Uma crítica social à superficialidade moderna.”

    — Fascinante sua perspectiva. — respondeu, forçando um sorriso — Você deve ter milhares de seguidores.

    — Tenho meus admiradores. — ela sorriu enigmaticamente — E você, o que faz?

    — Eu estou terminando minha graduação e…

    — Ah, estudante! — ela o interrompeu, seu interesse visivelmente diminuindo — E trabalha com o quê?

    — Bom, atualmente estou focado nos estudos, mas faço alguns trabalhos freelance…

    — Pobre ela pensa que você é pobre! — a voz de Zaratustra trovejou em seu ouvido — Sempre minta se quiser realmente conquistar uma mulher. Mostre o cartão dourado novamente! Acene com ele como se fosse um leque! Um herdeiro é muito charmoso. 

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