Índice de Capítulo

    Quintus afundou no banco traseiro do Uber, sentindo-se como um pedaço de chiclete pisoteado no asfalto quente: já sem sabor, grudento e absolutamente inútil para o mundo. Os mil reais perdidos pesavam tanto quanto um balaio baiano cheio de pedras caindo de um décimo andar, mas o que realmente doía não era o dinheiro, era a constatação de sua ingenuidade crônica.

    “Ela nem precisou prometer nada” — pensou, encarando a paisagem urbana noturna que passava pela janela como um filme melancólico — “Eu mesmo enfeitei o vazio com todas as minhas expectativas ridículas. Como um idiota decorando uma caixa vazia achando que dentro tem presente.”

    — Posso ouvir seu cérebro afundando em autocomiseração daqui — a voz de Zaratustra ecoou no comunicador, com aquela irritante clareza de quem assiste à desgraça alheia comendo pipoca — Ficar se afundando não vai resolver nada. É do fundo do poço que você apoia o pé para dar o impulso de saída, garoto.

    — Claro… — disse Quintus soltando uma risada seca antes de continuar — Porque no meu caso, o fundo do poço tem um alçapão que leva a outro poço mais fundo. E esse tem um buraco que dá num esgoto. E o esgoto desemboca num precipício. E no precipício tem um portal que leva à minha autoestima.

    O motorista do Uber ajustou o retrovisor, lançando um olhar preocupado para seu passageiro que conversava sozinho e pensou:

    “Se esse cara invocar um demônio ou começar a chorar em latim, eu cancelo a corrida. Mas se ele só falar sozinho e não vomitar, cinco estrelas. Só não quero limpar drama de ninguém do banco.”

    — Sua metáfora geológica é tão profunda quanto sua capacidade de escolher mulheres. — provocou Zaratustra — Mas você tem que admitir que a ciência é infalível. Eu avisei sobre as borboletas tatuadas.

    — As borboletas tatuadas são como os termos de serviço da vida… — resmungou Quintus — Ninguém lê os alertas até ser tarde demais.

    O destino, entretanto, tinha planos mais dramáticos para a autocomiseração de Quintus do que simplesmente deixá-lo afundar no banco de couro sintético. Com a delicadeza de um motoboy atrasado na chuva, um SUV prateado ignorou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra a lateral do Uber.

    — Crash!

    O mundo chacoalhou enquanto Quintus sentiu seu corpo ser lançado contra o cinto de segurança enquanto uma sinfonia de metal retorcido, vidro estilhaçado e buzinas enfurecidas preenchia o ar. A última coisa que passou por sua mente, antes da escuridão, foi um pensamento distintamente Quintusiano:

    “Uau, eu realmente consegui piorar esse dia.”

    Uma eternidade de segundos depois, o motorista do Uber, cambaleando e com um filete de sangue escorrendo pela testa, abriu a porta traseira em pânico. Encontrou seu passageiro desacordado.

    — Meu Deus, meu Deus! Ei, rapaz! Você está bem? — ele checou o pulso de Quintus com dedos trêmulos e soltou um suspiro de alívio ao sentir as batidas — Graças a Deus, ele está vivo! Alguém chamou uma ambulância?

    Uma pequena multidão já se formava ao redor do acidente, alguns com celulares em punho filmando, porque, obviamente, o sofrimento alheio rende likes. Outros genuinamente preocupados, e os demais apenas aliviados por terem um motivo legítimo para chegar atrasados ao trabalho.

    Dentro da mente de Quintus, algo extraordinário acontecia. Como um apartamento desocupado durante as férias de verão, sua consciência temporariamente vazia foi invadida por um ocupante inesperado. 

    A alma de Ernesto ‘Che’ Guevara, que aparentemente esperava na fila cósmica há décadas por uma oportunidade, viu sua chance e saltou para a posse daquele corpo jovem e temporariamente desabitado.

    Os olhos de Quintus se abriram de repente, mas o olhar era diferente: intenso, calculista, revolucionário. Che observou o mundo através das íris de seu novo hospedeiro, absorvendo a modernidade decadente ao seu redor com um misto de fascínio e repulsa ideológica.

    — Ei, rapaz! Você está bem? O socorro já está a caminho! — o motorista repetiu, aliviado ao ver seu passageiro consciente.

    ‘Che’ se sentou lentamente, ignorando a dor que reverberava pelo corpo de Quintus, e examinou suas novas mãos com a mesma expressão de um general inspecionando um novo território conquistado.

    — Estou perfeitamente preparado para a luta, companheiro! — respondeu com uma convicção que nunca havia saído da boca de Quintus — A revolução não para por causa de pequenos acidentes de percurso.

    — Revolução? — falou o motorista confuso — Acho que você bateu a cabeça forte demais, amigo. Melhor ficar quietinho até a ambulância chegar.

    O paladino de Cuba ignorou o conselho e continuou sua análise interna. Décadas observando aquele jovem desperdiçar seu potencial, tomar decisões estúpidas e se humilhar repetidamente tinham sido um tormento cósmico. 

    Agora, finalmente, tinha a chance de corrigir aquela trajetória patética e, quem sabe, reacender a chama revolucionária neste mundo tomado pelo capitalismo selvagem.

    “Que desperdício de juventude.” —  pensou, acessando as memórias recentes de Quintus — “Este corpo jovem e saudável sendo usado para nada mais que vergonhas em série e derrotas amorosas. E pelo que vejo nas suas lembranças, a revolução falhou miseravelmente. O capitalismo venceu de forma tão absoluta que as pessoas agora pagam para exibir marcas em suas roupas. Que distopia é esta?”

    Mas antes de qualquer plano grandioso para derrubar o sistema, O mártir latino reencarnado sentiu uma urgência mais imediata: vingança contra aquela mulher que havia humilhado seu novo corpo. A memória da garota de programa pegando o dinheiro e saindo do Uber sem cumprir o combinado fervia em sua nova consciência revolucionária.

    — A vingança é a reforma agrária da alma! — murmurou para si mesmo, com a gravidade de quem anuncia um novo manifesto.

    Foi então que a voz de Zaratustra irrompeu em seu ouvido através do ponto auricular, alheia à troca cósmica de inquilinos que acabara de ocorrer: 

    — Quintus? Quintus! Pelo amor de Deus, responda! O que aconteceu? As câmeras do Uber mostram um acidente! 

    O revolucionário exilado no tempo franziu o cenho, reconhecendo instantaneamente a voz do bilionário excêntrico das memórias de Quintus. Uma onda de repulsa ideológica percorreu seu ser: 

    “Um capitalista explorando o trabalho deste pobre jovem para seus experimentos bizarros. Todo patrão é um ditador disfarçado.”

    — Zaratustra… sim… — respondeu, tentando imitar o tom servil que encontrou nas memórias do hospedeiro. — Sofri um acidente como já deve saber. Nada grave, mas vou precisar que me adiante o dinheiro da próxima missão. Agora.

    — Como assim? Isso não estava nos planos. Precisamos discutir isso e…

    — Não há o que discutir! — cortou ele, deixando um pouco da frieza revolucionária escapar — Ou você transfere o dinheiro imediatamente ou jogarei este ponto de ouvido e o relógio idiota que você me deu no primeiro bueiro que encontrar.

    Um silêncio pesado dominou a linha por alguns segundos antes que o bilionário respondesse, hesitante:

    — Está bem, Quintus. Farei a transferência. Mas você não parece bem. Talvez…

    — O dinheiro. Agora! — ordenou ele, interrompendo a fala e sorrindo ao sentir o poder que tinha sobre o burguês.

    — Transferência concluída. Satisfeito? O que diabos aconteceu com você?

    O sorriso no rosto de Quintus se alargou enquanto ele via a notificação do depósito na tela do smartphone. Foi quando decidiu que não havia mais motivo para manter a farsa.

    — O Quintus que você conhecia está temporariamente indisponível, burguês explorador. — respondeu com firmeza glacial — As condições do nosso acordo precisam ser revistas imediatamente.

    Um silêncio atônito seguiu-se do outro lado da comunicação.

    — Quintus? Que diabos de sotaque é esse? Você bateu a cabeça?

    — Não sou Quintus. — respondeu, ajeitando o corpo para uma postura mais ereta e digna — Mas habito seu corpo agora. E se quiser minha cooperação nos seus experimentos capitalistas degenerados, terá que adiantar o pagamento. Todo o pagamento.

    — Ah, entendi! — respondeu Zaratustra — Você está tentando me enganar como aquela garota te enganou? Interessante estratégia psicológica. A humilhação te fez criar uma persona mais assertiva. Fascinante!

    — Sua compreensão materialista da consciência humana é tão limitada quanto sua visão econômica, burguês. — disse ‘Che’, irritado com a análise reducionista — Não estou negociando, estou impondo condições revolucionárias.

    Ao redor do acidente, paramédicos finalmente chegavam, abrindo caminho pela pequena multidão que se formara. Um deles se aproximou do Marxista com o coração partido, tentando avaliar seus ferimentos.

    — Senhor, por favor, não se mova. Precisamos verificar se há lesões na coluna.

    — A única lesão que tenho é ver como esta sociedade se tornou um espetáculo de voyeurismo digital! — brandou, afastando a mão do paramédico com um gesto brusco.

    Seu olhar captou algo que fez seu sangue revolucionário ferver: ao redor do acidente, pelo menos quinze pessoas mantinham seus celulares erguidos, filmando o sofrimento alheio como abutres digitais. 

    Para o comandante Guevara, aquilo era o símbolo máximo da decadência capitalista moderna, a transformação da tragédia em entretenimento instantâneo.

    — Vocês são os novos opressores! — bradou, levantando-se subitamente para horror do paramédico — Cada visualização que buscam é uma pequena mordida na dignidade humana!

    As pessoas ao redor recuaram, algumas confusas, outras assustadas com o homem acidentado que parecia ter sofrido não apenas danos físicos, mas também um surto ideológico severo.

    — Senhor, por favor! — insistiu o paramédico — Pode haver hemorragia interna! Deite-se!

    ‘Che’ ignorou os apelos médicos, sua atenção fixa em um motoqueiro particularmente entusiasmado que filmava tudo com um sorriso no rosto, como se documentasse um show de comédia. Com a agilidade que Quintus jamais possuíra, avançou determinado em direção ao homem.

    — Esse é o novo colonialismo! — gritou, arrancando o celular da mão do motoqueiro atônito — A exploração do sofrimento alheio para ganhar o capital social das suas redes!

    Com um movimento dramático, jogou o aparelho no chão e o esmagou sob a sola do tênis. O som do vidro quebrando foi quase satisfatório para seus ouvidos revolucionários.

    — Meu iPhone! — lamentou o motoqueiro, como se tivesse perdido um filho.

    — A revolução começa destruindo os instrumentos de alienação! — declarou o injustiçado das américas, e num movimento que deixou todos boquiabertos, empurrou o homem para longe de sua moto com um forte chute:

    — Pof!

    O motoqueiro cambaleou, caindo sentado no asfalto com uma expressão de puro choque.

    — Você é louco?! Isso é um Kawasaki de trinta mil reais!

    — Era um Kawasaki de trinta mil reais — corrigiu o jovem justiceiro socialista, montando na motocicleta com a destreza de quem já havia comandado guerrilhas — Agora é um veículo a serviço da revolução!

    O protesto do dono foi abafado pelo rugido do motor quando ‘Che’ deu partida. Antes que alguém pudesse impedi-lo, ele ergueu o punho no ar em um gesto característico.

    — Hasta la victoria siempre! 

    “Primeiro, vou ajustar contas com uma certa burguesa do amor! Depois, quem sabe, talvez eu liberte toda uma nação!” — proclamou com olhos incendiados, como se tivesse alugado o corpo de Quintus por tempo indeterminado e pago o caução com dignidade.

    E assim, deixando para trás um motoqueiro humilhado, paramédicos confusos, e espectadores perplexos com seus celulares ainda erguidos, a relíquia da revolução acelerou a moto roubada pelas ruas da cidade, sentindo o vento no rosto com uma liberdade que o jovem denominado ‘Quintus’ nunca havia experimentado.

    No ponto auricular, a voz de Zaratustra continuava soando, agora verdadeiramente intrigada:

    — Quintus? Quintus! O que diabos está acontecendo? As câmeras mostram você roubando uma moto! Isso não estava no protocolo experimental!

    ‘Che’ sorriu com a boca de Quintus, um sorriso que misturava determinação revolucionária e uma pitada de loucura messiânica.

    — Seu experimento acaba de ganhar uma variável inesperada, burguês! — respondeu, acelerando ainda mais — E eu prometo: será a pesquisa mais revolucionária que você já viu.

    Enquanto a moto cortava a noite urbana, levando o corpo de Quintus comandado pela alma de um revolucionário, uma única certeza pairava na mente dele:

    “A revolução, afinal, não avisa quando chega. Ela simplesmente toma o controle.”

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