Capítulo 22 - Revolucionário deu match com dona Jabá
‘Che’ acelerou a Kawasaki roubada, sentindo a adrenalina revolucionária fluir por veias que não eram suas, enquanto a voz irritante de Zaratustra continuava a reverberar no ponto auricular como um zumbido capitalista que se recusava a morrer.
O vento chicoteava seu rosto com a liberdade que apenas um veículo expropriado poderia proporcionar, mas uma clareza tática começou a emergir em sua mente estratégica: a vingança, como a revolução, não deveria ser um ato impulsivo, mas meticulosamente planejado.
“A vingança precipitada é como uma revolução sem base ideológica… acaba em mero derramamento de sangue sem propósito histórico” — refletiu o revolucionário, freando a motocicleta bruscamente no acostamento de uma avenida movimentada.
Olhando para o relógio tecnológico no pulso que era um artefato que certamente custara o equivalente ao salário anual de um cortador de cana cubano, decidiu que não poderia ser rastreado.
Com um gesto teatralmente dramático, arrancou o ponto de comunicação do ouvido e o arremessou numa lixeira próxima, como quem se livra simbolicamente das amarras do imperialismo.
Um homem encolhido sob um papelão olhava a cena com curiosidade genuína: não era todo dia que se via alguém tendo um surto ideológico tão eloquente em plena via pública.
— Companheiro da rua! — o mártir latino reencarnado se aproximou com a solenidade de quem discursa para uma multidão revolucionária, embora falasse apenas com um único morador de rua confuso — Este relógio representa a opressão tecnológica do grande capital sobre o proletariado! Tome-o como primeiro passo da redistribuição das riquezas que se aproxima!
O homem aceitou o dispositivo caríssimo com um misto de desconfiança e oportunismo, enquanto ponderava internamente se o valor de revenda daquele objeto estranho compensaria o risco de estar recebendo algo roubado de um maluco com sotaque latino e surto revolucionário.
— Valeu, parceiro… mas… tá funcionando? — questionou o homem, sacudindo o aparelho próximo ao ouvido como se fosse um relógio de pulso dos anos 80.
— Mais do que funcionando, companheiro das calçadas! Está monitorando! É por isso que precisamos nos livrar dos instrumentos de vigilância do capital! — ‘Che’ proclamou, já se afastando com a urgência de quem tem uma revolução continental para organizar antes do jantar.
Enquanto o revolucionário reencarnado acelerava novamente pela avenida, quilômetros dali, em van repleta de monitores e equipamentos de última geração, um bilionário excêntrico observava com fascínio quase infantil o ponto vermelho que representava seu experimento mais recente parar abruptamente no mapa digital.
— Conseguimos! — gritou Zaratustra, levantando-se em um impulso tão brusco que quase derrubou seu café orgânico sobre o teclado hiper-sensível — Está acontecendo exatamente como previ! A transição de consciência, a mudança de personalidade, o padrão de fala alterado… é uma completa transferência de alma!
A mulher com a prancheta, que Quintus conhecia apenas como ‘a doutora’, ergueu as sobrancelhas em uma expressão que misturava ceticismo científico e conformismo profissional.
Após cinco anos trabalhando para um lunático rico o suficiente para transformar suas teorias malucas em experimentos caríssimos, ela havia aperfeiçoado a arte de parecer concordar sem realmente concordar.
— Claro, senhor. Exatamente como o senhor previu. — respondeu ela mecanicamente, anotando: “Possível surto psicótico induzido por trauma + personalidade dissociativa temporária” em sua prancheta.
— Não seja tão modesta, doutora! Você também não acreditava, confesse! — Zaratustra girou em sua cadeira ergonômica com a animação de uma criança em um carrossel — Quem diria que todos aqueles livros esotéricos e aquela viagem ao Peru fariam sentido um dia?
A doutora manteve sua expressão profissional, embora por dentro estivesse calculando se seu salário compensava participar desse circo pseudocientífico.
— Devemos enviar uma equipe para recuperá-lo imediatamente, não? — sugeriu ela, já abrindo o aplicativo para acionar o time de “recuperação”.
— Não! — interrompeu o bilionário com entusiasmo maníaco — Vamos observar. Deixe-o livre por enquanto. Quero ver o que essa nova consciência fará com o corpo de Quintus. Imagine as implicações! — seus olhos brilhavam como os de um cientista prestes a ganhar um prêmio Nobel por descobrir a existência da alma em um estudo não-replicável — Apenas mantenha a distância segura. Vá até o último ponto registrado e monitore… discretamente.
A doutora assentiu, saindo da sala enquanto murmurava para si mesma algo sobre ‘férias bem merecidas’ e ‘atualizar o currículo’.
Enquanto isso, ‘Che’, agora livre de rastreadores, parou em um café para usar o celular de Quintus, outro instrumento do capitalismo que, ironicamente, se mostrava útil à causa revolucionária. Seus dedos batucavam impacientes na tela brilhante enquanto buscava por ‘sindicato mais próximo’ e depois ‘sindicato mais radical’.
“A revolução dos trabalhadores certamente avançou nas últimas décadas” — pensou ele, absorvendo a geografia urbana através do mapa digital — “Meus companheiros devem ter bases operacionais estratégicas por toda a cidade!”
Vinte minutos depois, o revolucionário exilado no tempo estacionava a motocicleta expropriada em frente a um prédio cinzento com uma fachada gasta que ostentava a placa: ‘Sindicato Unificado dos Trabalhadores Públicos da Região Metropolitana – SUTREP’.
A construção tinha aquela aura inconfundível de burocracia e café requentado que parecia ser a marca registrada de todo espaço sindical em qualquer parte do mundo.
O revolucionário entrou no recinto com a postura ereta e determinada de quem pisou em muitos palanques, encontrando um ambiente surpreendentemente vazio para o que deveria ser a sede da resistência proletária.
A recepção estava deserta, com exceção de uma jovem que digitava freneticamente em seu smartphone, completamente absorta em alguma revolução digital que certamente não envolvia a tomada dos meios de produção.
— Companheira! — chamou ‘Che’, batendo com o punho fechado no balcão.
A jovem ergueu o olhar, visivelmente irritada pela interrupção de sua navegação nas redes sociais, e avaliou o jovem à sua frente com um tédio burocrático aperfeiçoado por anos de serviço público.
— Se é para reclamação do IPTU, é no segundo andar. Se é problema de FGTS, só com agendamento. — respondeu mecanicamente, já voltando os olhos para a tela.
— Estou aqui para falar com o líder da revolução local. — declarou o jovem paladino de Cuba com a firmeza de quem anuncia a chegada de uma nova ordem mundial.
A recepcionista ergueu uma sobrancelha com genuíno interesse pela primeira vez naquele dia. Não era todo dia que aparecia um lunático tão bem vestido quanto aquele. Normalmente, os malucos que entravam ali usavam camisetas desbotadas de rock progressivo e cheiravam a maconha de qualidade duvidosa.
— Ah, você quer falar com a Dona Jabá? Terceiro andar, sala da presidência — indicou ela, já voltando ao Instagram — Mas tem que esperar, ela tá em… ‘reunião estratégica’ há duas horas com o novo estagiário do jurídico.
‘Che’ agradeceu com um gesto solene e dirigiu-se ao elevador. Embora jamais tivesse operado sozinho uma máquina tão moderna, sua experiência com tecnologia havia parado nos anos 1960.
Ele se apoiou nas memórias do jovem Quintus, que observara antes de assumir o corpo. Ainda assim, olhou o painel digital com uma desconfiança revolucionária, como se o botão para o terceiro andar pudesse ser uma armadilha burguesa.
Ao adentrar o terceiro andar, o jovem injustiçado das Américas foi recebido por um corredor que parecia um museu vivo da decadência ideológica moderna. As paredes estavam forradas com cartazes motivacionais que oscilavam entre o patético e o cômico involuntário.
Um deles, parcialmente descascado, mostrava punhos erguidos sob a frase: ‘O trabalhador unido jamais será vencido!’ Alguém havia acrescentado à caneta, entre parênteses: ‘(Exceto em anos eleitorais)’.
O revolucionário cubano sentiu uma onda de memórias de Quintus. Lembranças vívidas de como havia cinismo e haviam pessoas influentes que apoiavam candidatos completamente opostos em eleições consecutivas, sempre garantindo que estavam ‘do lado certo da história’.
Logo ao lado, outro cartaz exibia a imagem de um cofre transbordando moedas com os dizeres: “O imposto sindical é como um investimento: você paga obrigatoriamente todo mês e nós prometemos benefícios! E novamente, Alguém havia acrescentado à caneta, entre parênteses: ‘(que você jamais verá!)’.
Ao fim do corredor, uma porta imponente de madeira compensada com verniz imitando mogno ostentava uma placa dourada que ‘Che’ suspeitava ser apenas latão pintado, com os dizeres: ‘Presidência – Entre sem bater por sua conta e risco’.
“Até os cartazes sofrem de revisionismo histórico” — pensou o jovem mártir latino reencarnado com amargura revolucionária — “Em Cuba, quem fizesse essas adições seria fuzilado ao amanhecer…”
‘Che’ ignorou completamente as críticas, o aviso e entrou sem cerimônia, encontrando uma cena que o fez congelar momentaneamente: uma mulher corpulenta, com aproximadamente o dobro de sua idade e três vezes seu peso, estava sentada em uma poltrona presidencial de couro sintético, enquanto um jovem magricela de terno mal ajustado recolhia papéis apressadamente do chão.
— EU JÁ FALEI QUE NÃO QUERO SER INTER… — a mulher começou a gritar, mas interrompeu-se ao ver o recém-chegado, ajustando instantaneamente sua expressão para um sorriso político praticado diante de espelhos durante décadas — Oh, um novo rosto! Que surpresa agradável!
— Companheira, vim buscar orientação e recursos para a luta revolucionária! — anunciou ‘Che’, erguendo o punho no tradicional cumprimento que aprendera com seus camaradas em Sierra Maestra.
A mulher, que parecia ser a tal ‘Jabá’ mencionada pela recepcionista, dispensou o estagiário com um gesto brusco, sem tirar os olhos do visitante inesperado. Havia algo de predatório em seu olhar, como um falcão avistando um filhote desprotegido, ou melhor, como um político vendo uma oportunidade de desvio de verba.
— Revolucionária? — ela repetiu, ajustando o decote de seu vestido estampado que parecia ter sido feito com a cortina de um hotel duas estrelas — Faz tanto tempo que não ouço essa palavra da boca de alguém com menos de sessenta anos! Como se chama, companheiro?
— Che! — respondeu ele com simplicidade solene — Che Guevara.
O silêncio que se seguiu foi interrompido pela risada estrondosa da sindicalista, uma gargalhada que começou como um trovão e terminou em algo parecido com engasgo de hiena.
— Che Guevara?! — ela enxugou uma lágrima do canto do olho — Seus pais eram muito idealistas ou muito drogados quando te registraram?
— O nome é apenas uma coincidência histórica — desconversou o jovem paladino de Cuba, incomodado com a reação pouco revolucionária — O importante é a causa, não o indivíduo.
— O importante é entrar e fechar a porta, querido. Temos muito o que conversar — Jabá apontou para a cadeira diante de sua mesa, transformando instantaneamente sua postura de hiena gargalhante para cobra calculista — Sabe quanto tempo faz que não vejo um jovem entrando voluntariamente neste sindicato?
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