Capítulo 26 - Entre Lenin e lubrificante
Naquele sofá vermelho-sangue encostado no canto da sala sindical, Dona Jabá jazia numa pose de Vênus de Madureira, versão pós-moderna e tamanho GGG, parecendo ter escapado de um painel da Lapa.
Supondo que o pintor tivesse sido convocado direto de um forró, ainda tonto de cachaça, com um olho roxo e uma inspiração meio torta vinda da mistura de pinga Velho Barreto, pancada e paixão não correspondida.
O corpo largo espalhava-se pelos estofados, com o roupão entreaberto revelando mais territórios de pele do que qualquer guerrilheiro de bom senso gostaria de explorar.
Seu sorriso de satisfação sugeria que aquele móvel, que para os visitantes desavisados parecia uma inocente área de espera, era na verdade um altar sacrificial onde egos masculinos e dignidades revolucionárias eram imolados em nome da causa.
“Então… era para isso que servia aquele sofá!” — concluiu ‘Che’ internamente, enquanto fechava nervosamente o último botão da camisa.
Suas mãos, que já haviam empunhado armas e escrito manifestos inflamados, agora tremiam como recrutas em primeiro dia de treinamento e outro verdade apareceu em sua mente:
“Sierra Maestra foi um passeio no parque comparado a isso.”
Com movimentos rígidos tal qual um boneco mal articulado, ele ajustou a boina cuidadosamente sobre os cabelos despenteados, em uma tentativa desesperada de recuperar alguma dignidade.
Em sua mente, repassava cada batalha que havia travado, cada adversário que havia enfrentado. Nenhum deles se comparava ao furacão sindical de 10 arrobas que acabara de rebaixar seu corpo emprestado de ‘virgem’ para ‘traumatizado’.
— Todo sacrifício pela revolução! — murmurou para si mesmo, ajustando com determinação a camisa. Porém, em sua cabeça, a voz gritava em pânico:
“MENTIRA! NENHUM MANUAL REVOLUCIONÁRIO MENCIONOU ESSE TIPO DE SACRIFÍCIO!”
‘Che’ contemplava a estranha contradição que agora habitava: uma alma calejada pelos horrores da guerra aprisionada num corpo que, até algumas horas atrás, só conhecia a intimidade de suas próprias mãos.
Era como colocar um general veterano para comandar um exército de pelúcias. Um desperdício de experiência tática, embora agora, pelo menos, uma das pelúcias tivesse perdido oficialmente sua inocência.
— Uma virgindade a menos, um passo revolucionário a mais — filosofou com amargura, tentando encontrar sentido naquela situação absurda.
A única consolação em todo esse caos era que o corpo franzino de Quintus agora iniciava uma jornada que, com sorte e muitos exercícios, um dia poderia se assemelhar ao seu antigo templo revolucionário.
“Falta músculo, falta cicatriz de tortura, falta o olhar de quem já fuzilou um traidor no café da manhã… mas o importante é que agora sobra experiência sexual traumática.”
Sem olhar para trás, com a frieza de quem deixa mais uma vítima na longa estrada da revolução, embora neste caso específico a vítima tenha sido ele mesmo, ‘Che’ apanhou suas roupas chiques dobradas sobre uma cadeira.
“Bom disfarce para futuros atos revolucionários” — pensou pragmaticamente, imaginando que ninguém suspeitaria de um jovem bem vestido carregando panfletos subversivos e explosivos caseiros.
Seus olhos então pousaram sobre o megafone vermelho na mesa de Jabá, objeto que parecia chamá-lo com a mesma intensidade de uma foice ou um martelo. Em um movimento rápido, digno de quem já saqueou muitos quartéis inimigos, ele o agarrou, completando seu kit revolucionário improvisado.
— Ei, bonitão! — a voz de Jabá trovejou do sofá, fazendo o jovem paladino de cuba paralisar como um coelho sob faróis de caminhão. — Da próxima vez, traga um paletó azul-marinho. De longe, você me lembra uma versão mais jovem do Macron… Tenho uma fantasia política que começa exatamente assim!
O jovem mártir latino reencarnado engoliu em seco, sua mente processando o absurdo daquela confissão. Uma sindicalista revolucionária que idolatrava tanto o símbolo máximo da revolução latino-americana quanto o presidente francês neoliberal.
Era semelhante a descobrir que seu general favorito colecionava secretamente bonecas Barbie ou que Fidel Castro dormia abraçado a um travesseiro do Mickey Mouse.
“As contradições do sistema capitalista não são nada comparadas às contradições desse fetiche político” — refletiu, enquanto seus olhos finalmente encontravam, quase envergonhados, um canto da sala onde repousavam algumas fotos discretas do presidente francês, meio sufocadas atrás de uma pilha de cartazes sindicais e abaixo de um quadro severo de Lênin.
As imagens pareciam implorar por anonimato entre as bandeiras vermelhas, como se a parede gritasse ‘Revolução Global!’ de um lado e sussurrasse, constrangida, ‘Mas aquele francês… mon Dieu!’ do outro.
Ali estava a essência da verdadeira revolução moderna: a capacidade de desejar simultaneamente um guerrilheiro barbudo que dormia em cavernas e um político de terno impecável que saboreava medalhão ao molho madeira em seu palácio, enquanto o povo comia coxinha na rodoviária.
Dona Jabá não estava confusa, estava apenas expandindo as fronteiras do desejo político, no estilo de quem cola cartaz do MST de manhã e janta rodízio de sushi no shopping à noite.
‘Che’ ignorou solenemente tanto a proposta quanto os olhares curiosos dos funcionários que agora encaravam o jovem “revolucionário” saindo da sala da chefe.
Para aqueles observadores, a cena era cristalina: a sindicalista havia realizado mais um de seus famosos ‘recrutamentos intensivos’. Um eufemismo para dizer que havia transformado mais um jovem bem vestido em um fantoche revolucionário após uma sessão extenuante de doutrinação horizontal.
As testemunhas cochichavam entre si, apontando para as roupas de revolucionário de brechó que o jovem revolucionário exilado no tempo agora vestia – peças que Jabá guardava aos quilos cuidadosamente em seu armário para momentos como este, tal qual se fossem a versão sindical de lingerie sexy.
— Olha só, dessa vez ela fez o rapaz acreditar que é o próprio Che Guevara — sussurrou uma secretária para outra. — Mês passado foi Lênin, e antes disso, lembra? O coitado que saiu vestido de Trotsky, com direito a bigode postiço e tudo!
Ignorando os comentários, o jovem herói de boina ergueu o megafone ao deixar a sala, sentindo o peso simbólico daquele instrumento de amplificação revolucionária. Sem conseguir resistir à tentação, parou no meio do corredor e acionou o aparelho, sua voz ecoando pelos corredores sindicais semelhante a um manifesto improvisado:
— CAMARADAS DO FUTURO! — trovejou ele, e os funcionários do prédio inteiro, misto de sindicato e empresas que iam de consultorias obscuras a uma firma de marketing político suspeitíssima, congelaram no ato, como se até o bebedouro estivesse esperando ordens para seguir gotejando.
— QUANDO AS BIOGRAFIAS REVOLUCIONÁRIAS FOREM ESCRITAS… — continuou — LEMBREM-SE: ALGUMAS VEZES O FIM JUSTIFICA OS MEIOS… MAS DESTA VEZ, OS MEIOS QUASE ME DESTRUÍRAM!
Um silêncio atordoado seguiu-se à declaração. Uma faxineira deixou cair o balde, um estagiário engoliu a própria goma de mascar, e uma secretária murmurou:
—Esse aí durou menos que o contador do segundo andar fantasiado de Fidel, coitado.
Continuando sua marcha digna em direção à saída, ‘Che’ avistou a jovem de cabelo roxo que seria sua arma secreta. Ana Clara estava encostada na recepção, tão absorta em seu celular que parecia fazer parte da decoração do ambiente.
Sem cerimônias, ele entregou o megafone e estendeu a ficha de missão, mantendo o embrulho com suas roupas civilizadas firmemente seguro sob o braço.
— Uma questão vital antes de prosseguirmos com meu plano de vingança — disse ele, com a seriedade de quem está prestes a perguntar sobre coordenadas de mísseis nucleares — Você é boa em disfarces?
Ana Clara ergueu os olhos do celular pela primeira vez, seu olhar entediado contrastando com a intensidade quase maníaca do revolucionário à sua frente.
— Sou a melhor — respondeu ela com a confiança seca de quem falsifica atestado médico com letra de médico e ainda ganha tapinha nas costas do chefe — Já fiz um juiz federal acreditar que eu era sua filha há muito tempo perdida só para roubar a senha do Wi-Fi dele. Disfarces são meu segundo nome. O primeiro é ‘Problemas’.
Satisfeito com a resposta, o jovem justiceiro socialista entregou a ficha de missão e rapidamente pegou o telefone dela das mãos, armazenando seu número.
— Enviarei os detalhes da operação por WhatsApp — declarou, enquanto digitava seu contato, adicionando-se como ‘Che! O Verdadeiro, Não O da Camiseta’.
— Tanto faz — respondeu ela, voltando imediatamente para seu celular, equivalendo aquela missão a mais uma notificação entre mil que pipocavam sem parar.
Ao deixar o prédio sindical, ‘Che’ sentiu o peso de sua missão se assentando sobre seus ombros emprestados. O corpo de Quintus, agora oficialmente introduzido aos prazeres e terrores do mundo adulto graças à Jabá, carregava não apenas sua alma revolucionária, mas também uma lista crescente de vinganças pessoais.
“Antes de iniciar a revolução global, devo honrar algumas dívidas locais” — pensou, enquanto caminhava pelas ruas com a determinação de quem tem um plano, embora o plano em questão fosse mais parecido com uma lista de desejos de um adolescente ressentido do que com uma estratégia revolucionária propriamente dita.
A questão agora era: por onde começar? As memórias de Quintus ofereciam um buffet de injustiças esperando para serem corrigidas, e ‘Che’, como bom revolucionário, sabia que toda revolução começa eliminando os traidores mais próximos. A lista mental se desdobrava do mesmo jeito que um cardápio de vinganças possíveis, cada item mais apetitoso que o anterior.
Havia a mulher do Job, aquela que prometera serviços não especificados em troca do dinheiro escasso de Quintus. Uma clara representante do mercado negro capitalista que roubava não apenas recursos financeiros mas, principalmente, expectativas e sonhos adolescentes.
“Essa mulher é uma agente do imperialismo emocional” — concluiu, já imaginando um tribunal revolucionário para julgar crimes contra a boa fé e inocência.
Ou talvez devesse começar pelos chamados ‘amigos’ de Quintus: Gustavo e Leon. Dois espécimes que praticavam um tipo peculiar de camaradagem baseada em humilhação constante disfarçada de brincadeira.
“Todo golpe começa com uma risada no grupo de WhatsApp” — filosofou amargamente, lembrando-se das inúmeras filmagens degradantes e das situações constrangedoras que o corpo de Quintus havia enfrentado pelas mãos daqueles falsos camaradas.
Mas havia também Mirela. A encarnação perfeita da exploração emocional sistêmica, uma jovem que havia transformado o amor platônico de Quintus em uma fonte inesgotável de pequenos favores, trabalhos acadêmicos e suporte emocional unilateral.
“O amor é burguês se não vier com reciprocidade” — concluiu, com a amargura de quem reconhece os padrões de exploração mesmo nas relações mais pessoais.
Abandonara a moto expropriada atrás de um posto de gasolina com um bilhete que dizia ‘propriedade do povo’ e agora esperava o ônibus.
Segurando suas roupas caras em uma das mãos e usando um uniforme revolucionário improvisado que parecia ter sido comprado na seção de fantasias de uma loja de departamentos em liquidação, ‘Che’ tomou sua decisão. Um verdadeiro revolucionário sempre sabe identificar o elo mais fraco da corrente opressora.
“Primeiro, Mirela!” — decidiu, com um pequeno sorriso formando-se no canto de seus lábios emprestados — “Afinal, como dizia meu amigo Fidel depois do quinto mojito: você me iludiu do mesmo modo que os EUA iludiram Cuba!”
A revolução pessoal de ‘Quintus’ estava prestes a começar, e sua primeira vítima nem imaginava que o tímido admirador que ela manipulava com tanta facilidade havia sido substituído por um estrategista revolucionário com décadas de experiência em derrubada de regimes. Mesmo que agora suas táticas precisassem se adaptar das armas de fogo para as armas digitais.
“Essa garota é mais perigosa que o FMI em ano eleitoral” — pensou, ao ver o ônibus se aproximar — “Mas todo sistema tem uma brecha, e é por essa que eu vou invadir com gosto.”
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