Índice de Capítulo

    O jovem revolucionário de boina observou o gelo derretendo lentamente em seu copo d’água enquanto ao redor a confusão sonora do hino comunista embalava o restaurante medieval com uma incongruência histórica digna de uma aula de História ministrada por um bêbado. 

    Os clientes oscilavam entre a confusão e o fascínio, imaginando que era algum evento programado, já que tinham um Che Guevara genérico sentado perto deles. Alguns até tentando acompanhar a letra em russo fake, na maior naturalidade de uma terça-feira surreal.

    — Companheira Ana Clara! Seus métodos são eficazes, mas insuficientes. — disse ele, passando a mão pela boina preta com atenção quase religiosa — Esta… Mirela. Nas memórias antigas, ela ocupa um espaço desproporcional, tal qual uma burguesia emocional que monopolizou os meios de produção afetivos… A justiça revolucionária exige mais.

    A garota do sindicato revirou os olhos com tanta força que quase se deslocou da realidade, enquanto ajustava discretamente os seios falsos que teimavam em migrar para lugares anatomicamente ofensivos. E estranhando o jeito no qual ele falava de si, tal qual um narrador de tragédia alheia, só que o coitado era ele mesmo.

    — Ok. O que mais você sugere? Já estamos transformando esse restaurante élficos em um episódio de Guerra Fria com trilha sonora de filme pornô soviético. — ela baixou o tom de voz, inclinando-se para frente com um sorriso malicioso — Mas confesso que ainda tenho alguns truques na manga. Ou melhor, no meu celular.

    Seus dedos já dançavam sobre a tela, acessando aplicativos que certamente não estavam disponíveis nas lojas oficiais. Ao longe, Mirela observava a cena feito um felino prestes a atacar, seu uniforme élfico esticado pela tensão de seus músculos.

    — Relógio vermelho ativado, camarada. — sussurrou Ana Clara, piscando um olho e imitando o jeito de falar revolucionário — Agora observe a mágica digital.

    No mesmo instante, o celular de Mirela, escondido no bolso de seu avental élfico, começou a tocar em volume máximo a música ‘Baba Baby’ de Kelly Key, cuja letra sobre inveja e superação romanticamente duvidosa que foi composta por alguma entidade folclórica. 

    A própria existência da cantora soava incerta, sendo mais uma criação do compêndio de mitos sentimentais que formam o Bostil, onde todas as obras-primas do mundo real foram recicladas em paródias sentimentais por alguma entidade com gosto duvidoso.

    Mirela, no meio de um atendimento, quase derramou uma jarra de hidromel sintético no colo de um cliente vestido semelhante a um hobbit de meia-idade.

    — O QUÊ? — ela gritou, tentando desesperadamente silenciar o aparelho que berrava sobre ‘ficar babando na minha beleza’.

    A tentativa foi inútil. Cada toque no telefone apenas aumentava o volume, até que a canção pop atingiu níveis que fariam shows de heavy metal parecerem uma apresentação de música clássica em uma biblioteca. Os clientes começaram a olhar, risos pipocando feito pedido de Pix no Tinder.

    ‘Che’ observou a cena com a dignidade de um líder revolucionário assistindo à queda de um regime capitalista. Ana Clara mordia o lábio para conter a risada.

    — A primeira fase da revolução digital está completa. — ela declarou solenemente — Agora, para a segunda…

    Seu celular emitiu um bipe, e ela sorriu com a malícia de uma criança que acabou de descobrir onde os pais escondem os doces.

    — Ela não vai conseguir desligar esse telefone nem se mergulhasse no Tietê com um despacho completo pra Ogum. E o melhor: cada vez que alguém ligar, vai tocar uma música diferente sobre inveja ou traição. As garçonetes compartilham número mais rápido que fofoca no grupo da firma, não é?

    O jovem paladino de cuba assentiu, impressionado com a eficiência tecnológica daquela guerrilha digital. Em Cuba, precisariam de pelo menos três caminhões de som e quinze camaradas para causar tal confusão.

    — Excelente, companheira. Mas ainda é pouco. O imperialismo emocional desta elfa exige uma resposta proporcional.

    — Oh, você não viu nada ainda. — disse sorrindo, do jeito que sorriria uma raposa na cerimônia de posse do galinheiro — Eu estava apenas aquecendo. Vamos para o proximo nível de humilhação pública.

    Seus dedos deslizavam pela tela no ritmo de um pianista virtuoso em transe, invadindo sistemas e criando caos em questão de segundos. Do lado de fora do restaurante, um barulho de motor pesado começou a chamar a atenção. 

    Mirela, ainda lutando contra o telefone que não desligava de jeito nenhum e agora tocava ‘Infiel’ em volume ensurdecedor, não percebeu o caminhão de som que estacionava estrategicamente na frente da entrada principal.

    Inesperadamente, o celular de Mirela silenciou-se e o silêncio parecia aqueles segundos antes do professor anunciar as notas da prova surpresa. Todos os clientes pareciam prender a respiração simultaneamente e então começou:

    — MIRELA DO RESTAURANTE ÉLFICO! — trovejou uma voz feminina pelo megafone potente da entrada do restaurante — EU, AMANDA, ESTOU ABANDONANDO MEU MARIDO DE DEZ ANOS E MEUS TRÊS FILHOS PORQUE NÃO AGUENTO MAIS ESCONDER NOSSO AMOR! VOCÊ DISSE QUE ERA SÓ UMA QUESTÃO DE TEMPO ATÉ PODERMOS FICAR JUNTAS. ESTOU TE ESPERANDO LÁ FORA, MEU UNICÓRNIO ÉLFICO! NOSSO APARTAMENTO JÁ ESTÁ PRONTO, COM AQUELA CAMA REDONDA QUE VOCÊ QUERIA!

    O restaurante inteiro congelou. Os garçons pararam no meio do caminho com bandejas suspensas. Um cliente derrubou seu garfo, e o tilintar metálico ecoou tal qual um tiro.

    Mirela estava petrificada, seu rosto passando por todas as cores do arco-íris antes de estacionar em um vermelho berrante que combinava perfeitamente com as luzes de emergência do restaurante.

    — Eu não… eu nunca… — ela balbuciava, enquanto os murmúrios começavam a se espalhar igual notícia ruim em cidade pequena.

    Antes que pudesse completar qualquer explicação, um segundo caminhão de som estacionou, e uma voz masculina grave e emotiva tomou conta do ambiente:

    — MIRELA, MEU AMOR! FERNANDO AQUI! MINHA ESPOSA FINALMENTE ACEITOU O TRISAL! PODEMOS FICAR JUNTOS NAS TERÇAS, QUINTAS E DOMINGOS ALTERNADOS! ELA SÓ PEDE QUE VOCÊ NÃO USE O CHICOTE QUE ME MACHUCOU DA ÚLTIMA VEZ. AH, E TROUXE AQUELE ÓLEO ESPECIAL QUE VOCÊ PEDIU!

    O gerente do restaurante com uma expressão permanentemente estressada, surgiu do nada à semelhança de um espírito vingativo, agarrando Mirela pelo braço com força suficiente para deixar marcas.

    — No meu escritório. AGORA! — sibilou entre dentes, enquanto as outras garçonetes élficas olhavam a cena com uma mistura de horror e deleite absoluto, já digitando furiosamente em seus celulares para espalhar a fofoca pelos sete reinos élficos e além.

    ‘Che’ observava a cena com a serenidade de quem assistia à queda de um ditador particularmente cruel. Ana Clara sorvia seu vinho com elegância estudada, como uma dama da aristocracia assistindo a uma execução pública especialmente interessante.

    — O caos é minha especialidade. — murmurou ela, piscando para ele — Mas ainda não acabei. A revolução emocional precisa de símbolos, não concorda, General?

    Antes que Mirela pudesse ser arrastada para sua execução administrativa, um entregador entrou no restaurante carregando o maior e mais extravagante buquê de rosas vermelhas que a humanidade já testemunhou. 

    Era tão grande que o rapaz mal conseguia ver por onde andava, tropeçando em uma mesa e quase derrubando um cavaleiro medieval que comia asas de frango com as mãos.

    — Entrega para Ana Clara! — anunciou ele em voz alta — De… — consultou o cartão — Quintus Maximus, o homem que encontrou seu destino nos seus olhos de guerrilheira urbana.

    O silêncio voltou a tomar conta do local. Todos os olhares se dividiam entre Mirela, agora congelada ao lado do gerente, e a garota hacker loira encenava sua surpresa do jeito que faria quem disputa o prêmio de melhor drama no grupo da família do WhatsApp.

    — Oh! Meu revolucionário! — exclamou ela, levantando-se para receber o buquê com a graça de uma princesa soviética — Você não precisava! Embora… seja absolutamente perfeito!

    O jovem herói de boina inclinou-se para ela e sussurrou discretamente, exibindo uma expressão de galã bolivariano — sem perceberem que aquele brilho nos olhos era puro desespero financeiro:

    — Quem vai pagar por isso, companheira? Eu terei que…

    — Os consumidores pagaram, querido. — disse ela apenas sorrindo, seus lábios vermelhos curvando-se em uma promessa de segredos bem guardados — Todas as necessidades das nossas missões são cobertas pelo sindicato. Fique tranquilo.

    A expressão de Mirela era uma obra-prima de emoções conflitantes: raiva, humilhação, ciúme e incredulidade misturavam-se em seu rosto do mesmo modo que cores em uma paleta de um pintor bêbado. Por um segundo, ‘Che’ sentiu uma pontada de compaixão, rapidamente sufocada pela lembrança das dores que aquela mulher infligiu ao anterior ocupante do seu corpo.

    A gerente finalmente conseguiu arrastar Mirela para longe, mas não antes de um terceiro caminhão de som estacionar e uma voz desesperada ecoar:

    — MIRELA! SOU EU, RICARDO! VOU ME MATAR SE VOCÊ NÃO VIER COMIGO HOJE DE NOVO! OS 500 REAIS SEMANAIS QUE VOCÊ PEDIU JÁ ESTÃO SEPARADOS! POR FAVOR, NÃO ME ABANDONE COMO FEZ COM OS OUTROS!

    Os clientes do restaurante agora estavam divididos entre aqueles que filmavam tudo com seus celulares, os que riam abertamente e os que cochichavam teorias cada vez mais elaboradas sobre a vida dupla da garçonete élfica. As colegas de trabalho dela não sabiam se corriam para consolá-la ou se mantinham distância segura do furacão profissional que se formava.

    Ana Clara, aproveitando a distração geral, inclinou-se sobre a mesa, falando alto o suficiente para ser ouvida por quem estivesse por perto:

    — Eu sei que sou a mulher mais incrível do mundo, mas me diga, querido, o que você viu em mim?

    ‘Che’, entrando no personagem com o fervor de quem recita o manifesto comunista para uma multidão faminta, respondeu sem hesitar com a eloquência de quem aprendeu política vendo pornô soviético dublado:

    — Você é alguém que sabe ser mulher. Tem o quadril da revolução e os olhos da guerrilha noturna.

    .— Quintus? — murmurou incrédula,uma garçonete élfica que passava quase derrubando sua bandeja ao ouvir aquilo. Era Patricia, a melhor amiga de Mirela, que parou abruptamente igual a quem tivesse levado um choque — É você mesmo?

    O Quintus que ela conhecia mal conseguia pedir água sem gaguejar. E agora estava ali, vestido à semelhança de Che Guevara, recitando poesia corporal revolucionária para uma loira que parecia ter saído de um catálogo de espiãs soviéticas sensuais.

    O jovem revolucionário exilado no tempo apenas lançou-lhe um olhar digno e continuou sua declaração apaixonada:

    — Seu coração bate no ritmo dos tambores da liberdade. Sua mente é afiada como a foice que colherá o trigo da igualdade!

    Ana Clara teve um espasmo de riso contido, igual a se um fantasma do Karl Marx tivesse descido no corpo do Che só pra mandar aquela cantada. Era tão ridículo, tão inspirado, que só podia ser coisa de outro plano ideológico.

    Enquanto o restaurante fervilhava com o caos, a mulher hacker loira aproveitou um momento de distração para escanear discretamente o celular de Mirela via NFC quando ela voltou momentaneamente para buscar algo no balcão. Seus olhos brilharam quando viu o conteúdo desbloqueado diante dela.

    — Bingo revolucionário! — disse ela numa entonação carregada, imitando o tom messiânico do jovem de cabelo castanho-escuro à sua frente, forçando a voz grave e a ideologia até na vírgula — Essa garota tem um arquivo completo de conversas comprometedoras e fotos que fariam um cardeal repensar seus votos.

    Com alguns toques rápidos, Ana Clara invadiu o sistema de multimídia do restaurante. As grandes telas que normalmente exibiam promoções de hidromel e asas de frango fritas subitamente piscaram e mudaram para a galeria privada de Mirela.

    O primeiro a aparecer foi um chat onde ela descrevia em detalhes nada lisonjeiros seus colegas de trabalho, a gerência e especialmente os clientes regulares, muitos dos quais estavam presentes naquele momento, boquiabertos ao ler descrições como: ‘o anão suado que sempre pede para eu me inclinar mais’ ou ‘a bruxa velha que reclama da temperatura da sopa mesmo quando está pegando fogo’.

    — Por todas as barbas de Marx! — exclamou ‘Che’, genuinamente surpreso — Nem o camarada Quintus imaginaria que sua amada fosse deste jeito.

    Ana Clara assentiu enquanto continuava navegando pela galeria de horrores digitais.

    — O que essa garota pensa? Que vai ficar jovem para sempre com esse padrão de múltiplos relacionamentos? — disse ela, olhando com desprezo para as fotos de Mirela com diferentes homens em situações comprometedoras — Ela realmente acha que no final vai ter Quintus como plano B, alguém que sempre estará disponível se tudo der errado? Pelos padrões que vejo aqui, ela só procura Chads, e eles só querem se divertir com ela.

    O restaurante inteiro estava em polvorosa. A gerente tentava desesperadamente desligar as telas, enquanto Mirela, retornando do escritório, viu seu mundo desabar em alta definição diante de todos. Seu grito poderia ter acordado dragões adormecidos em cavernas distantes.

    Mas Ana Clara não havia terminado. Com alguns comandos rápidos, ela alterou o sistema de pedidos do restaurante para que cada nota fiscal e comanda exibisse a mensagem: ‘Mirela traiu o namorado com um anão do RH’ na tela da cozinha e nos recibos dos clientes.

    As garçonetes élficas saíam da cozinha carregando as comandas com expressões que variavam entre o horror e o deleite perverso. Os clientes recebiam suas contas com as sobrancelhas erguidas e sorrisos maliciosos.

    Mirela estava agora encostada em uma parede, seu mundo desmoronando ao seu redor feito promessa de réveillon no dia 3 de janeiro. Seu uniforme élfico, antes impecável, estava amarrotado e manchado de molho de hidromel, uma metáfora perfeita para sua dignidade arruinada.

    ‘Che’ começou a sentir que a vingança havia atingido níveis satisfatórios, mas Ana Clara parecia estar apenas aquecendo. Ela tirou de sua bolsa uma pequena caixa de veludo vermelho e entregou-a discretamente a ele sob a mesa.

    — É hora do golpe final. — sussurrou ela com um sorriso diabólico — Você reconhece isso?

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota