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    O mundo voltava em fragmentos. Primeiro, um cheiro familiar de amaciante barato misturado com perfume francês falsificado. Depois, o som abafado de vozes que pareciam estar discutindo o apocalipse em tons dramáticos. 

    Por fim, a sensação de um colchão que conhecia cada curva de seu corpo: não por ser ergonômico, mas por ter cedido em todos os lugares estratégicos ao longo dos anos.

    Quintus flutuava naquele limbo entre consciência e inconsciência, onde as pálpebras pesavam parecendo que tivessem pequenos halteres presos a elas. 

    A última coisa de que se lembrava era do Dr. Zaratustra e seus enfermeiros-gladiadores avançando em sua direção com algo que parecia uma versão moderna de um porrete medieval. E agora, aparentemente, ele tinha sido devolvido ao conforto duvidoso do seu lar.

    “Eu morri de novo? Porque se o céu é a minha casa, alguém definitivamente cometeu um erro administrativo.” — pensou, ainda sem conseguir abrir os olhos.

    — Glória… — vozes familiares começaram a filtrar pela névoa de sua semiconsciência.

    — Você acha mesmo que esse negócio de múltiplas personalidades faz sentido? — a voz submissa de seu pai perguntou, soando feito alguém que já sabia que sua opinião seria ignorada, mas ainda assim precisava fingir que participava da conversa.

    “Múltiplas personalidades? Do que diabos eles estão falando?” — a mente de Quintus deu um salto, mas seu corpo permaneceu imóvel, à maneira de quem vê um filme sobre sua própria vida do qual não conseguia participar.

    — É claro que faz sentido, Paulo! — a voz teatralmente indignada de sua mãe respondeu — Isso explica tudo! As ausências dele na infância, aquela vez que o encontramos conversando com o ventilador como se fosse um amigo imaginário, e quando ele insistiu por três semanas que era um cavaleiro medieval reencarnado e só comia com as mãos!

    “Eu nunca fiz… espera, eu realmente falei com o ventilador? Não, não pode ser…” — Quintus lutava para organizar suas memórias fragmentadas, mas era o mesmo que tentar montar um quebra-cabeça enquanto alguém jogava as peças pela janela.

    — Mas e se ele só for… imaginativo? — arriscou o pai, com a cautela de quem pisa num banheiro de rodoviária usando um tênis branco… e só então percebe que ele está furado.

    — Imaginativo? IMAGINATIVO?! — a voz de sua mãe que lembrava uma mistura de risada sarcástica e bufada de cavalo preencheu o quarto — Paulo Costa, o menino roubou uma moto, agrediu um motoboy e depois não se lembra de nada! Isso não é imaginação, é um problema sério! E ainda bem que o Dr. Zaratustra resolveu tudo com a polícia.

    “Eu roubei uma MOTO? Agredi alguém? Não, não, não…” — o pânico cresceu dentro de Quintus igual a uma bolha prestes a estourar. 

    Sua mente girava mais que peão da casa própria em programa dominical, tentando encontrar qualquer memória desses eventos, mas só encontrava um vazio absoluto após sua fuga da clínica-mansão do bilionário excêntrico.

    — Bom, a justiça não quer saber do certo ou errado. — filosofou o pai com a sabedoria de quem já havia negociado com muitos guardas em sua vida. — Se não fossem aqueles bilhetes de entrada pro puteiro, o guarda não tinha aliviado nada.

    — Psiu! Fala baixo! — sibilou a mãe. — E que história é essa de bilhetes? Onde você conseguiu aquilo, Paulo? Com aquela cara de corno arrependido!

    Um silêncio pesado se instalou no quarto, e Quintus com os olhos ainda fechados, já podia imaginar o suor frio escorrendo pela testa de seu pai.

    — E-eu? N-não, Glória! Eu pensei que você… — gaguejou o homem.

    — Ah, fui eu sim! — a mãe interrompeu com uma guinada de tom tão brusca que parecia motorista de aplicativo desviando de buraco em rua esburacada — Eu consegui aquilo para o meu filho amado! Um menino naquela idade não pode ficar virgem a vida toda! Já pensou? Dezessete anos e nunca nem pegou na mão de uma mulher! Não podemos mais nos enganar… será que ele não gosta de mulher?

    “Por todos os deuses das reencarnações, minha mãe está discutindo minha vida sexual, ou a falta dela a plenos pulmões!” — o jovem Maximus sentiu suas bochechas queimarem de vergonha. Se alguém na rua escutasse isso, ele teria que se mudar para outro país, talvez outro planeta.

    — Ah, sim, claro, foi você! — o pai concordou na hora, igual vereador em ano de eleição ouvindo sugestão popular que rende voto, e ainda por cima com aquele medo típico de quem sabe que contrariar a esposa é cavar a própria cova emocional — Foi uma grande ideia, Glória! Muito boa mesmo! Eu vou conseguir outro convite VIP para ele, tenho certeza que…

    — NÃO! — o grito da mãe foi tão intenso que Quintus quase abriu os olhos de susto — Você não faz nada direito! E ainda fica pensando em puteiro! É isso? Quer outra mulher? É isso que você quer, Paulo Costa?

    — Não, Glória, jamais! — disse caindo de joelhos no chão, continuando suas súplicas desesperadas — Não existe mulher melhor que você! Nunca vou querer outra mulher na minha vida! Eu juro pelo meu controle remoto sem tampa que rege minha vida há dez invernos!

    Foi nesse momento, com o teatro familiar em pleno andamento, que Quintus finalmente conseguiu abrir os olhos. A luz do quarto explodiu em seus olhos parecendo até que Deus tinha acendido um holofote só para ele errar o caminho até o banheiro. Quando conseguiu, quase desejou voltar para a inconsciência.

    Seu quarto, normalmente um santuário de caos organizado, estava lotado. E não apenas com seus pais, o que já seria traumático o suficiente. Mas com o que parecia ser uma pequena multidão. Uma multidão com características familiares demais para seu conforto.

    Ao pé da cama, seu pai ainda estava ajoelhado, com as mãos erguidas em súplica para sua mãe, que o olhava de cima com uma sobrancelha arqueada e braços cruzados. Mas não eram apenas eles. Espalhados pelo quarto, parecendo participantes de um evento familiar desconfortável, onde estavam reunidos todos os seus irmãos.

    Sextus, o segundo mais velho, estava encostado na parede com um sorriso irônico no rosto e a pele vários tons mais escura que a de Quintus. Septimus, de traços asiáticos evidentes e óculos redondos, mexia em seu celular com a calma de quem acha a cena diante dele entediante demais para merecer atenção. 

    Octavius, ruivo e sardento lembrando alguém que tivesse saído diretamente do Rio Grande do Sul, mascava chiclete com a boca aberta. Nonus, com cabelos crespos e pele negra retinta, balançava a cabeça em desaprovação. E Decimus, o caçula, loiro de olhos azuis, parecia estar prestes a documentar tudo para o Instagram.

    Uma diversidade de fenótipos tão variada que até um professor de genética choraria sangue, e o seu colega Yeisu, que se achava o Darwin do ensino médio, largaria o microscópio para vender pão de alho na praia.

    — Olha só quem decidiu se juntar aos vivos! — exclamou Sextus, apontando para Quintus, e dizendo ironicamente — O reencarnado voltou para este plano!

    — Shiu! Não incentiva essas ideias! — Repreendeu a mãe, virando-se para o filho recém-desperto. A cara dela trocou mais rápido que promoção relâmpago da Shopee: foi de ‘vou te deserdar’ para ‘meu anjinho’ em tempo recorde — Filho! Meu querido! Você está bem? Você quase me matou de preocupação!

    Ela se jogou dramaticamente sobre ele, em um abraço que era mais um ataque físico disfarçado de afeto. O jovem Maximus sentiu o ar escapar de seus pulmões enquanto sua mãe soluçava em seu ombro.

    — Eu… estou… bem… — conseguiu balbuciar entre tentativas desesperadas de respirar.

    — BEM?! — ela se afastou subitamente, os olhos secos de lágrimas apesar dos soluços de segundos atrás — Você some por 24 horas, rouba uma moto, agride um motoboy, me deixa com uma crise de enxaqueca, e diz que está BEM?!

    — Eu… — disse Quintus tentando processar todo aquele tsunami de acusações das quais ele não tinha a menor lembrança — roubei uma moto?

    — Ah, agora vai fingir amnésia de novo! — Glorizelda se virou dramaticamente para o marido — Viu, Paulo? Os picos de amnésia estão de volta! Exatamente como o Dr. Zaratustra disse!

    Paulo Costa, ainda de joelhos, apenas assentiu vigorosamente, sem ousar discordar.

    — Mãe, eu realmente não me lembro de nada disso. — insistiu, sentando-se na cama com esforço. Sua cabeça latejava tal qual se tivesse sido usada como bola de boliche.

    — É claro que não lembra! — Octavius interveio, soprando uma bolha de chiclete que estourou de forma irritantemente alta — Porque não foi você quem fez. Foi o Quintiliano, sua personalidade alternativa!

    — Quintiliano?! — repetiu Quintus, a confusão crescendo exponencialmente.

    — Sério, vocês não podiam inventar um nome melhor? — Nonus revirou os olhos — Quintiliano parece nome de contador aposentado que coleciona selos.

    — Eu sugeri ‘Maximus Prime’, mas ninguém me ouve nessa família. — resmungou Decimus, finalmente guardando o celular depois de provavelmente ter postado toda a cena.

    — SILÊNCIO! — trovejou Glorizelda, e o quarto instantaneamente ficou quieto igual grupo de WhatsApp depois de nude sem querer do tio Aroldo — Ninguém está inventando nada! O Dr. Zaratustra explicou tudo. Seu irmão tem um transtorno dissociativo de identidade, ou talvez esteja sendo possuído por almas errantes, ou talvez seja um caso de reencarnação malsucedida. Seja o que for, vamos apoiá-lo e não transformar isso em piada!

    — Agora! — disse autoritária fazendo uma pausa dramática olhando para cada um dos filhos antes de continuar — Todos vocês, FORA! Seu irmão precisa descansar!

    Foi impressionante a velocidade com que o quarto se esvaziou. Pareciam alunos na última aula antes do feriado prolongado, desaparecendo pela porta e deixando para trás apenas o eco distante de risadinhas e comentários sarcásticos.

    Paulo hesitou, olhando para a esposa à semelhança de um cão esperando permissão para sair do lugar.

    — Você também, Paulo! — ordenou Glorizelda — Vai ver se o Bolsa Família de todos esses meninos caiu. Se a gente não declarar eles todo mês, o governo acha que sumiram!

    — Mas Glória, só três deles ainda têm idade para…

    — VAI!

    E assim, com a rapidez de um homem fugindo de uma dívida, Paulo Costa desapareceu pela porta, deixando Quintus sozinho com sua mãe.

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