Capítulo 37 - 'Vento Leste' na frequência da loucura
Quintus furou. Chegou tarde. Snowbear e a família esperaram. Foram embora. E ele… congelou. Uma ligação parecia o mínimo. Mas nada em sua cabeça fazia sentido. Ele só conseguia pensar que tudo estava arruinado.
Mesmo sem saber a reação dela, já tinha certeza de que jamais poderia consertar. Era típico dele: errar e transformar em tragédia algo que talvez fosse apenas um tropeço. Mas era assim que funcionava seu mundo. Intenso. Exagerado. Irrecuperável.
Ainda processando o peso autoimposto da catástrofe, Quintus encarou o urso de pelúcia gigante no canto do quarto como quem encara um inimigo em potencial. O bicho, com seus olhos pretos de plástico e sorriso costurado, parecia zombar dele naquela situação desesperadora.
Sua mente, aquela sabotadora profissional especializada em gerar ideias terríveis em momentos de crise, tinha começado a colocar em prática um plano que, a princípio, não passava de uma sugestão idiota dita no impulso: transformando o urso gigante numa ‘companheira’ apresentável para a festa da Illusia.
Afinal, o convite dizia claramente ‘traga um acompanhante’. Não especificava que precisava estar vivo, nem que não podia ser feito de pelúcia e enchimento sintético. Era uma brecha técnica, e ele pretendia aproveitá-la até o limite do ridículo.
Quintus não sabia ao certo em que momento sua dignidade tinha feito as malas e saído pela porta da frente, mas suspeitava que fosse logo após a ideia do acompanhante de pelúcia ter deixado de ser piada e se tornado missão de vida.
— Vamos lá, preciso fazer você parecer mais… feminina. — murmurou, olhando em volta e percebendo que precisaria de recursos externos.
O jovem Maximus, que tinha invadido o quarto de sua mãe, sabia tanto sobre maquiagem quanto um peixe sabe sobre alpinismo, mas isso não o impediu de agarrar vários itens da penteadeira da mãe:
um batom vermelho berrante que parecia gritar ‘olha para mim’, um frasco de perfume cuja fragrância poderia ser detectada por satélites, e um laço de cabelo azul cintilante grande o suficiente para servir como pequeno paraquedas.
Para completar o visual da sua ‘acompanhante’, Quintus vasculhou o armário de sua mãe novamente, desta vez em busca de algo que pudesse vestir no urso.
O resultado final era algo que nenhuma descrição poderia fazer justiça. O urso de pelúcia, normalmente um símbolo de inocência infantil, havia se transformado numa aberração fashion que parecia ter sido arrancada de um pesadelo psicodélico.
Com seu batom borrado, laço gigante, vestido florido e perfume forte o suficiente para desmaiar um rinoceronte, a ‘acompanhante’ estava pronta.
— Estou ferrado. — concluiu ele, mas como todo bom guerreiro que já investiu tempo demais numa causa perdida, decidiu seguir em frente com seu plano.
Carregar um urso de pelúcia do tamanho de um adulto escada abaixo exigia habilidades que Quintus definitivamente não possuía. A cada degrau, o jovem Maximus sentia que estava participando de uma dança desajeitada com um parceiro que insistia em cair sobre ele.
No último degrau, tropeçou, e por um glorioso momento, ele e o urso voaram juntos numa coreografia de desastre iminente, aterrissando com um baque surdo que certamente acordaria os mortos, ou pior, sua mãe.
Congelou no lugar, o urso parcialmente em cima dele como um amante particularmente desajeitado, esperando ouvir passos furiosos descendo as escadas. Quando nada aconteceu após trinta segundos de puro terror, soltou o ar que nem percebera estar segurando.
— Fase um completa. — sussurrou para o urso, como se estivessem numa missão secreta e não no meio de um colapso da sanidade.
Arrastar o urso até a porta dos fundos foi como tentar transportar um corpo. Não que ele soubesse como era transportar um corpo, obviamente, mas imaginava que a sensação de incompetência técnica fosse similar. Cada rangido do assoalho soava como uma sirene anunciando sua idiotice para o mundo.
Finalmente alcançando a porta dos fundos, Quintus se deparou com o próximo desafio logístico:
“Como sair para a rua com um urso gigante vestido de mulher sem parecer um sequestrador particularmente incompetente ou um caso para internação psiquiátrica urgente?”
A resposta, como descobriu ao abrir a porta e sentir o ar da noite, era simples: não havia como. Ele iria parecer exatamente o que era: um jovem desesperado carregando um urso de pelúcia fantasticamente horrível em uma tentativa patética de não ir sozinho a uma festa.
— Tudo bem, senhora… hum… — ele olhou para o urso, percebendo que nem nome havia dado à sua acompanhante improvisada — Senhora Ursula! Isso. Ursula Pelúcia. Perfeito. Vamos enfrentar o mundo.
E assim, com a determinação de quem já passou do ponto de retorno da vergonha, Quintus saiu para a noite estrelada, carregando nos braços sua companheira de pelúcia.
O plano inicial era absurdamente simples na teoria: andar um ou dois quarteirões, chamar um táxi ou uber, e seguir para a festa sem que sua família ou vizinhos o vissem nessa situação lamentável.
Na prática, ele descobriu rapidamente que carregar um urso gigante pelas ruas era um exercício de resistência física que nenhuma academia poderia ter lhe preparado.
Após apenas meio quarteirão, seus braços já tremiam como se estivessem tentando escapar do próprio corpo. Suor escorria por suas têmporas, e ele começava a questionar não apenas seu plano, mas todas as escolhas de vida que o levaram àquele momento específico.
— Ursula… — ofegou, ajustando o urso em seus braços pela décima vez — você poderia… sei lá… perder alguns quilos antes da próxima vez?
O urso, sendo um objeto inanimado com dignidade superior à de seu portador, manteve um silêncio sábio. Foi então que o jovem Maximus ouviu uma voz atrás dele, uma voz que parecia embebida em confiança líquida:
— CARALHOOOOO, QUE GOSTOSA É ESSA, MANO?!
Quintus congelou e lentamente, em um movimento que lembrava um filme de terror onde a vítima se vira para encarar o monstro, ele se virou para encontrar a fonte daquela voz.
Lá estava uma figura bizarra: alguém usando um terno preto levemente amassado que contrastava com uma estranha máscara de gato branco cobrindo todo o rosto. Por um momento, Quintus ficou paralisado, tentando processar a imagem. Havia algo familiar naquela postura, mas a máscara tornava impossível identificar quem estava ali. O sujeito tinha postura cambaleante e segurava uma pequena garrafa que certamente não continha seu primeiro drinque da noite
— Não me reconhece? — perguntou a voz abafada por trás da máscara, enquanto a figura ajustava os punhos da camisa com exagerada formalidade.
Quintus estreitou os olhos refletindo:
“Aquela máscara de gato branco…”
Lembrou-se imediatamente de um avatar que via frequentemente online, nas redes sociais e fóruns que frequentava. Um amigo virtual que sempre usava essa mesma figura na forma de perfil.
— Sou eu, Vento Leste! — anunciou a figura, removendo parcialmente a máscara e revelando um sorriso embriagado.
— CARALHO! — exclamou, finalmente reconhecendo seu colega de classe — Vento Leste? O que diabos você tá fazendo com essa máscara de felino?
Vento Leste soltou uma gargalhada exagerada, quase perdendo o equilíbrio. Mesmo com a máscara de gato ainda cobrindo seu rosto, sua linguagem corporal já denunciava o estado de embriaguez. O cheiro de bebida que emanava dele era tão forte que Quintus teve que dar um passo para trás.
— QUIIIIINTUS! Eu que pergunto! — exclamou, esticando o nome à maneira de quem testa sua elasticidade — Meu irmão, meu parceiro, meu consagrado! O que faz por aqui com essa… — seus olhos, visíveis através das aberturas da máscara, percorreram o urso de cima a baixo, demorando-se no batom borrado e no laço gigante — …deusa?
O jovem Maximus podia praticamente ver as engrenagens enferrujadas girando lentamente no cérebro embriagado de seu colega de escola, tentando processar a cena à sua frente.
— É minha… hum… acompanhante para a festa. — explicou, sabendo que cada palavra o afundava mais no pântano da humilhação.
Vento Leste se aproximou, cambaleando ligeiramente, e fez algo que Quintus não esperava: ignorou completamente sua presença e dirigiu-se diretamente ao urso.
— Olá, gata. — ele sussurrou com uma voz que pretendia ser sedutora, mas soava em um tom que lembrava um motor precisando desesperadamente de óleo — Eu não sou Cristiano Ronaldo, mas queria te mostrar minhas bolas de ouro.
A cantada era tão terrível que sentiu uma dor física, tal qual se o SUS tivesse emitido alerta de emergência só pela vergonha alheia acumulada no organismo.
Vento Leste, interpretando o silêncio do urso como timidez encantadora, continuou sua investida:
— Sabe, gata, hoje vamos entrar na frequência da Jovem Pan. — ele deu uma piscadela que parecia mais um tique nervoso — Vai ser uma atrás da outra, as sete melhores e uma hora sem intervalo.
O silêncio que se seguiu foi do tipo que faz até os grilos pensarem duas vezes antes de cantar. Quintus sentiu seu rosto esquentar ao ponto de poder fritar um ovo na testa.
— Vento, cara, é só um urso de pelúcia. — explicou finalmente, incapaz de suportar mais aquela cena.
O jovem fantasiado de gato travou, parecendo que as palavras demoravam para atravessar a névoa alcoólica que enevoava seu cérebro. Então, aproximou-se mais do urso, analisando-o com o olhar crítico de um sommelier avaliando uma garrafa de vinho barato.
— UM URSO?! — exclamou finalmente, dando um passo para trás com a mão no peito, com a pompa trágica de um final de capítulo em novela turca — Puta merda, achei que era uma mina fantasiada! Estou tão pika hoje que já tô vendo coisas…
Foi então que Vento Leste pareceu realmente notar o seu colega de classe virtual pela primeira vez, estreitando os olhos tal qual se tentasse focar a visão.
— Espera aí… Quintus… Maximus? O cara do vídeo?
“Vídeo? Mas qual vídeo?” — pensou, enquanto o cérebro vasculhava, em pânico, o vasto arquivo de vexames da própria existência — “O da bandeja voando na cantina? O em que, bêbado, pede Mirela em casamento? Ou o clássico em que é confundido com uma senhora de cabelos lilases, visto de costas? Talvez aquele vídeo em que ele sobe numa mesa da escola, com os olhos arregalados, e declara: ‘Eu sou a reencarnação do Zé do Caixão’. Havia tantos.Tantos.”
O problema era esse: sua vida inteira já tinha sido postada por Leon e Gustavo parecendo uma série de comédia de mau gosto.
— Sim, sou eu. — admitiu, resignado.
— CACETE! É O CARA DO VÍDEO! — ele gargalhou, apontando freneticamente para Quintus tal qual se tivesse descoberto uma celebridade — Mano, você é muito PIKA! Cada vídeo seu é um curta-metragem de vergonha alheia. Eu revejo sempre que preciso me sentir melhor.
— Que honra. — respondeu com tanto sarcasmo que poderia ser engarrafado e vendido.
— Mas e aí, por que tá carregando esse urso vestido de mulher? — perguntou, enfim encarando o verdadeiro espetáculo na rua: o urso.
Quintus suspirou profundamente, o tipo de suspiro que carregava o peso de todas as más decisões de sua vida.
— Eu preciso ir à festa da Illusia com um acompanhante, mas a garota que tinha aceitado ir comigo… bem, digamos que houve um imprevisto. — ele preferiu não entrar em detalhes sobre seu fiasco anterior — Então, essa foi minha solução.
Vento Leste olhou para ele, depois para o urso, depois para ele novamente. Então, para absoluta surpresa de Quintus, ele assentiu com a seriedade de um filósofo contemplando o sentido da vida.
— Totalmente pika, cara. Improvisação é tudo na vida. Quando der merda, improvisa. É como sempre digo: se é pra ser, tem que ser pika!
E assim, um garoto, um urso de pelúcia travestido e uma dignidade em coma avançaram juntos para a festa da Illusia. Se alguém dissesse que aquilo daria certo, estaria mentindo descaradamente. Mas pelo menos seria uma mentira criativa.
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