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    Finalmente, após virarem em uma esquina particularmente estreita, eles encontraram salvação na forma de um contêiner de lixo grande o suficiente para esconder duas pessoas e um urso de pelúcia gigante. 

    Sem hesitar, Vento Leste empurrou Quintus e o urso para trás do contêiner e se agachou ao lado deles, ofegante mas com um sorriso maníaco estampado no rosto.

    — Isso… foi… PIKA! — declarou entre respirações pesadas.

    O jovem Maximus o encarava feito quem testemunha uma galinha tentando pilotar um drone: fascinado, confuso e levemente ofendido. Vento Leste percebeu a dúvida no ar, aquela desconfiança cruel que paira sobre os heróis incompreendidos. 

    Precisava reverter o julgamento. Precisava transformar covardia em narrativa. E, mais que isso, precisava que seu colega de classe entendesse, não estavam apenas se escondendo. Estavam praticando filosofia. Filosofia pika.

    — Primeira lição da filosofia pika… — disse com o tom de quem finalmente decidira compartilhar um segredo que o governo não queria que você soubesse — Meu jovem padawan: o verdadeiro pika não foge, ele só recua o suficiente pra ganhar impulso. Tipo quando a água tá fria demais e a gente precisa preservar a dignidade do nobre bastião!

    Quintus, cujos pulmões pareciam estar em greve e cujos braços haviam oficialmente desistido de cooperar, deixou o urso escorregar para o chão e se apoiou contra a parede, fechando os olhos e tentando não vomitar.

    — Você… é… louco… — Conseguiu dizer finalmente.

    — Obrigado! — respondeu Vento Leste, aparentemente tomando isso por um elogio — Mas olha, desculpa ter deixado minha gata plástica para trás. Às vezes temos que fazer escolhas difíceis no amor, sabe? 

    O jovem fantasiado de gato franziu a testa, indignado com a cegueira espiritual de seu companheiro. Ele havia feito um sacrifício nobre, deixado para trás sua gata plástica. E tudo o que recebeu em troca foi um olhar de reprovação? 

    Então era evidente: ele ainda estava na escuridão pré-pika. Com um suspiro piedoso, decidiu que era hora de redobrar seus esforços filosóficos e salvar aquela mente desacostumada com a grandeza.

    — Segunda lição tirada do grande filósofo Pikasócrates: sacrifícios são necessários na jornada da grandeza. Nunca se esqueça que amar um manequim é igual a malhar sozinho com a mão: você até sua, mas ninguém geme.

    Quintus abriu os olhos e percebeu que a lógica não só havia tirado férias, como vendido a casa, bloqueado os contatos e fugido com um pato chamado Cláudio.

    — Vento, aquilo era um manequim. Um objeto. Não uma mulher.

    — Sim, eu sei! — disse dando uma piscadela conspiratória — Estou só brincando, cara! Acha que sou louco? Sei muito bem diferenciar mulheres reais de manequins!

    O alívio durou exatamente três segundos, até Vento Leste completar:

    — As reais piscam de vez em quando. 

    Quintus encarou o nada por longos segundos, tentando assimilar o que tinha ouvido. E foi só então que se deu conta de que os passos tinham sumido. Talvez porque o perseguidor tivesse ido embora, ou talvez porque sua sanidade desistiu de captar sons depois daquela frase.

    Foi só quando o silêncio voltou, e nenhum segurança desabou sobre eles com algemas, que o jovem Maximus soltou o ar preso nos pulmões e o substituiu por uma pergunta existencial: 

    “De que jeito eu acabei aqui? Com um urso, um lunático e a certeza de que a sanidade é opcional.”

    — Isso foi por pouco. — comentou Quintus, com a esperança ingênua de que, se falasse baixo o suficiente, a conversa talvez voltasse ao reino dos assuntos normais.

    — Você viu só? — A voz de Vento Leste soava animada demais para alguém que quase havia sido preso por assediar um manequim — Não duvide mais do universo, meu chapa! Ele sempre manda a pessoa certa na hora certa. No caso, eu. Seu anjo da guarda felino, enviado diretamente do plano astral felpudo para guiar sua alma perdida pelos becos sujos da vida noturna!

    Quintus fechou os olhos por um momento, tentando processar os eventos da noite até então. 

    Em menos de uma hora, ele havia saído de casa carregando um urso de pelúcia travestido, encontrado o ser humano mais inconveniente do planeta Terra, invadido acidentalmente uma loja, sido perseguido por um segurança e agora tinham acabado de sair do esconderijo atrás de um contêiner de lixo, que cheirava igual a se algo tivesse morrido ali há semanas e decidido ficar para o café da manhã.

    — Vento, nós precisamos continuar andando. A festa já deve ter começado e eu não quero perder mais tempo. — falou enquanto tentava puxar o urso para seus braços novamente, mas descobriu que seus músculos haviam entrado em greve coletiva. O urso era pesado demais após aquela maratona improvisada.

    — Relaxa, cara. As melhores festas só começam mesmo depois das dez… e os mais pikas chegam depois das onze. — o jovem fantasiado de gato lançou um olhar exageradamente cauteloso por sobre o ombro, espiando o ponto de onde haviam vindo, atento a qualquer novo sinal de perigo — Costa limpa! Vamos nessa. Eu conheço um atalho.

    — Atalho? — repetiu, ouvindo uma voz interna alertá-lo de que aquilo soava tal qual uma trilha VIP rumo a mais humilhações e emoções que ele não tinha encomendado — Tem certeza? A gente podia só olhar a localização no seu celular e seguir reto, sem invenções, até a festa da Illusia…

    — Linha reta? — Vento Leste fez uma careta à maneira de quem tivesse mordido limão estragado — Mano, você não entende nada da vida. O melhor caminho nunca é o mais óbvio. Isso é tipo… filosofia pika, tá ligado? Ficar preso no celular é igual depender do Tinder, do miojo e da punheta para se alimentar: nos três casos, tu não vai comer nada.

     Antes que o jovem Maximus pudesse argumentar, Vento Leste já havia se levantado e agora arrastava o urso como se fosse uma presa abatida. Com um suspiro de resignação, Quintus continuou seguindo seu autodesignado guia.

    À medida que avançavam pela noite, ficava cada vez mais claro que o seu colega de classe não tinha a menor ideia de onde estava indo. Dobraram esquinas aleatórias, cruzaram praças desconhecidas e até mesmo atravessaram um parquinho infantil deserto.

    — Vento, você tem certeza que sabe onde estamos? — perguntou, já suando após um tempo indeterminado de caminhada em ziguezague. Ele sabia que não tinha muita escolha: tinha andado demais pra voltar, estava sem celular, sem GPS, sem Uber… e com a dignidade no modo economia de bateria.

    — Claro que sei, cara! — respondeu Vento Leste com confiança inabalável, olhando ao redor com uma expressão que contradizia completamente suas palavras — Estamos… hum… em uma rua!

    — Uau. Brilhante observação. E em que direção fica a festa da Illusia?

    O jovem fantasiado de gato parou abruptamente, olhou para o céu à maneira de quem acredita que as estrelas possam lhe oferecer GPS astronômico, girou em um círculo completo, e então apontou decisivamente para… todas as direções ao mesmo tempo, seu braço descrevendo um arco no ar.

    — É por aí! 

    — Vento… — disse respitando fundo, contando mentalmente até dez e chegando a doze e ainda sentindo vontade de empurrar Vento Leste em uma lata de lixo  — Você está completamente perdido, não está?

    — Perdido? — respondeu soltando uma risada falsa — Os pikas não se perdem, cara. Nós apenas… exploramos rotas alternativas!

    Foi nesse momento que Vento Leste notou novamente: uma van preta estacionada discretamente do outro lado da rua.  Não seria nada demais normalmente, mas ele poderia jurar que havia visto o mesmo veículo há alguns quarteirões atrás. 

    Quintus acompanhou o olhar dele e, ao fixar os olhos na van, ouviu o seu colega de classe sussurrar:

    — Ei, você percebeu que aquela van preta está seguindo a gente?

    O jovem Maximus engoliu em seco. Então não era apenas paranoia da sua parte.

    — Não liga pra isso. Não é nada.

    Os olhos de Vento Leste se arregalaram com excitação.

    — Nada? Cara, é uma van preta misteriosa nos seguindo no meio da noite! Isso é tipo, mega pika! — ele deu um passo na direção da van — A gente podia pedir carona pra eles, já que estão indo pro mesmo lugar que a gente!

    — Nem. Pense. Nisso. — disse Quintus segurando seu colega pelo braço com força surpreendente.

    — Por quê? Você conhece eles? — falou com os olhos brilhando com curiosidade — Espera aí… você é tipo, famoso? Tem paparazzi te seguindo? Ou você é um agente secreto? Ou… — sua voz baixou para um sussurro dramático — você é um alienígena disfarçado e aqueles são os Homens de Preto?

    Ele revirou os olhos com força quase espiritual, na condição de quem tenta encontrar no próprio cérebro uma explicação improvável. Mas tudo apontava para a mesma conclusão: Vento Leste estava bêbado. Só isso explicava aquele nível de caos confiante.

    — Sim, Vento. Sou um alienígena. Minha missão é encontrar os humanos mais irritantes do planeta e estudá-los. Até agora você está no topo da lista.

    — Eu sabia! — disse abrindo um sorriso radiante, aparentemente tomando aquilo à maneira de um elogio — Sempre senti que tinha uma conexão especial com o universo! — ele fez uma pose estranha que parecia uma mistura de kung fu com balé — Leve-me ao seu líder, ET! 

    Antes que Quintus pudesse responder a esse absurdo, um barulho chamou sua atenção. Do outro lado da rua, havia uma pequena loja de conveniência ainda aberta, um oásis de luz fluorescente na noite escura.

    — Olha, uma loja! — apontou, aliviado pela distração — Podemos perguntar o caminho para alguém lá.

    — E comprar mais bebida! — completou Vento Leste, como se aquela fosse a prioridade óbvia.

    Quintus hesitou. A última coisa que precisava era de seu colega de classe ainda mais embriagado. Mas, por outro lado, eles realmente precisavam de instruções, e talvez, apenas talvez, um funcionário sóbrio poderia dar algum sentido ao caos que sua noite havia se tornado.

    — Tá bom, vamos lá. Mas por favor, tenta agir à maneira de um ser humano normal por cinco minutos. Você consegue?

    Vento Leste fez um gesto de zíper sobre os lábios, imediatamente seguido por um soluço, uma piscadela e um sussurro em forma teatral antes de entrarem na loja:

    — A normalidade é uma ilusão criada pelos não-pikas para se sentirem melhor consigo mesmos! Mas por você, meu discípulo, por alguns instantes, viro até bostileiro paciente na fila do SUS, com aquele olhar vazio de quem já aceitou o caos.

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