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    A loja de conveniência era pequena e fortemente iluminada, com prateleiras apertadas e um balcão onde um atendente de meia-idade com olheiras profundas folheava uma revista sem muito interesse. 

    Quando a porta se abriu com o tilintar de um sino, ele ergueu os olhos com a expressão entediada, mas até mesmo ele pareceu momentaneamente intrigado pela visão de dois jovens, um deles fantasiado de gato, arrastando um urso de pelúcia gigante vestido com roupas femininas.

    — Boa noite! — saudou Vento Leste em um volume completamente inadequado para o tamanho da loja — Onde vocês guardam a pika líquida?

    — O quê!? — questionou o atendente.

    — Ele quis dizer bebidas. — interveio rapidamente — Álcool. Onde ficam as bebidas alcoólicas?

    — Corredor três. — respondeu o atendente, voltando para sua revista com a rapidez de quem decide que não está sendo pago o suficiente para lidar com aquela situação.

    — Com licença… — Quintus aproveitou para perguntar enquanto seu colega entusiasmado se dirigia ao corredor indicado — Você poderia me dizer como chego à Rua das Acácias? 

    — Rua das Acácias? Vocês estão completamente na direção oposta. — disse o atendente, erguendo os olhos mais uma vez, estudando o jovem à sua frente com atenção renovada e apontando pela janela — Teriam que voltar, pegar a Avenida Principal, virar à direita na terceira saída e seguir por uns quinze minutos.

    O coração de Quintus afundou. Eles haviam se afastado completamente do destino! Aquele ‘atalho’ de Vento Leste estava levando-os para o lado errado da cidade.

    — Muito obrigado. — agradeceu, voltando-se para procurar seu companheiro equivocado.

    Encontrou o jovem fantasiado de gato na seção de bebidas, com uma expressão de profunda contemplação que normalmente seria reservada para decisões de vida ou morte, e não para a escolha entre marcas de vodka ou cachaças baratas.

    — Vento, estamos indo na direção completamente errada! — sussurrou com urgência — Temos que voltar!

    — Relaxa, pequeno gafanhoto. — respondeu Vento Leste, equilibrando duas garrafas diferentes nas mãos como se estivesse pesando suas almas — A jornada é mais importante que o destino. 

    — Não, não é! Destino é, por definição, o lugar para onde a gente está indo! — esbravejou Quintus, a voz subindo com a frustração.

    — Shhh! Você está assustando a Senhora Ursula. — apontou para o urso, que estava encostado contra uma prateleira de salgadinhos — Olha o quanto ela está pálida.

    — O urso não está pálido, Vento. — falou, contendo o impulso de esfregar o rosto com tanta força que parecia querer se livrar da própria frustração à unha — É um objeto inanimado feito de pelúcia bege.

    — Uau, cara. Isso foi rude. — Vento Leste balançou a cabeça desaprovadoramente — Não é à toa que você precisou trazer um urso de pelúcia como acompanhante para a festa. Com essa atitude…

    — Vamos. — respondeu Quintus respirando fundo, próximo de explodir e pronunciado cada palavra distintamente — Sim! Vamos. Comprar… O que você quer. E. Ir. Embora. 

    — Essa é a atitude! — abriu um sorriso radiante o jovem fantasiado de gato, completamente alheio à irritação de seu colega de classe — Mas antes, preciso da sua opinião profissional sobre algo extremamente importante.

    Sem esperar resposta, ele colocou as garrafas de lado, agarrou a lapela de seu blazer e, com um movimento teatral, o abriu para revelar não uma camisa social, mas uma camiseta branca com a estampa de um gato usando terno e a frase ‘Tá confuso? É falta de pika!’ impressa em letras garrafais.

    — O que você acha? Muito casual ou formal o suficiente para a festa? Este é o primeiro nível da sabedoria pika materializada em forma têxtil! Cada camada representa um estágio diferente da iluminação pika! — explicou, com o entusiasmo de um professor expondo sua tese mais importante.

    Quintus encarou a camiseta, depois o rosto ansioso de Vento Leste, e de volta à camiseta. Algo dentro dele simplesmente… desistiu.

    — É perfeita. — respondeu em tom morto — Absolutamente perfeita.

    — Eu sabia! — exclamou triunfantemente — Mas olha só, isso não é tudo!

    Para o crescente horror do jovem Maximus, Vento Leste desabotoou o blazer novamente e, em seguida, puxou a primeira camiseta para cima, revelando uma segunda camiseta por baixo, esta com a imagem de um homem de terno com cabeça de gato ajustando a gravata e os dizeres: ‘Se é pra ser, tem que ser pika!’

    — Tenho toda uma coleção! — explicou orgulhosamente — Nunca sei qual vai ser a ocasião certa para cada uma, então trago várias opções!

    — Quantas… quantas exatamente você está vestindo agora? — perguntou Quintus, incapaz de conter sua curiosidade mórbida.

    — Quatro. — respondeu contando nos dedos e franzindo a testa em concentração — Não, cinco! Espera, deixa eu verificar…

    Ele começou a contar em voz alta, levantando cada camiseta para revelar a próxima: ‘Eu sou pika, o resto é detalhe!’, ‘Quer ser pika? Aprende comigo!’, e finalmente, sobre sua pele, uma que dizia ‘Pika não se discute, se aplica!’.

    — Cinco! — concluiu tal qual se tivesse acabado de resolver um enigma matemático complexo.

    — Cinco camadas de sabedoria, meu amigo! Feito os cinco elementos da natureza, os cinco dedos da mão pika, os cinco sentidos da percepção pika… Não é coincidência, é sincronicidade cósmica! — proclamou, ainda embalado no próprio delírio, enquanto apontava para o céu através do teto da loja.

    O atendente, que havia se aproximado para verificar o que estava acontecendo, observava a cena com uma expressão que contemplava uma mudança de carreira.

    — Vocês vão comprar algo ou estão fazendo um strip-tease gratuito? — perguntou secamente.

    — Meu caro… — disse Vento Leste, virando-se para o atendente com o olhar resignado de quem percebe que está diante de um ser imune à iluminação pika — Nós vamos adquirir a melhor bebida que o dinheiro pode comprar. Algo digno de acompanhar a filosofia pika em ação!

    Ele agarrou uma garrafa aleatória da prateleira, e Quintus notou com alarme que se tratava de algum tipo de bebida de baixíssima qualidade, embalada em uma garrafa de plástico. Em seguida, marchou confiante até o caixa.

    Enquanto Vento Leste realizava sua compra, o jovem Maximus aproveitou para reorganizar seus braços doloridos ao redor do urso. Foi quando notou algo pela janela da loja: novamente a van preta havia se movido e agora estava estacionada diretamente do outro lado da rua, com os faróis desligados.

    Quintus sabia quem estava na van: o bilionário excêntrico que havia demonstrado um interesse perturbador em suas ‘habilidades’ desde o incidente no restaurante ou até antes disso. Não tinha interesse em se tornar o rato de laboratório particular de ninguém, por mais rico ou influente que fosse.

    — Pronto! — a voz do jovem fantasiado de gato interrompeu seus pensamentos — Combustível adquirido! Agora podemos continuar nossa épica jornada!

    Eles saíram da loja, com Vento Leste imediatamente quebrando o selo da garrafa e tomando um gole generoso. Ele estendeu a garrafa para Quintus.

    — Uma dose de coragem para a estrada?

    O jovem Maximus hesitou. Beber não estava em seus planos para a noite, especialmente não alguma bebida duvidosa escolhida por seu colega de classe. Por outro lado, considerando de que forma a noite estava indo até agora, talvez um pouco de entorpecimento não fosse a pior ideia.

    — Só um gole. — murmurou, pegando a garrafa.

    Ele inclinou a garrafa cautelosamente, pretendendo apenas molhar os lábios, mas Vento Leste, em um gesto ‘útil’, empurrou o fundo da garrafa para cima. O resultado foi Quintus engolindo um gole muito maior do que pretendia, seguido por um acesso de tosse enquanto o líquido queimava sua garganta.

    — QUE PORCARIA É ESSA? — Conseguiu perguntar entre tosses, seus olhos lacrimejando.

    — Isso, meu amigo — Vento Leste bateu em suas costas com força desnecessária — é o que eu chamo de Torpedo Pika! É a bebida com mais álcool por centímetro cúbico que você consegue engolir sem um certificado médico ou autorização judicial. E o melhor: tem em qualquer loja de conveniência.

    — Isso devia ser… — murmurou Quintus, segurando a garrafa como se ela pudesse explodir a qualquer momento — Classificado igual arma química!

    — Detalhes, detalhes! — dispensou Vento Leste com um aceno de mão — O importante é que funciona! Daqui a cinco minutos você vai estar com coragem suficiente para dançar pelado no meio da festa!

    — Eu absolutamente não farei isso! — protestou, ainda sentindo a garganta em chamas.

    — EI! EI! VOCÊS AÍ! — berrou o dono, com o desespero autoritário de quem já viu essa cena tarde demais em noites demais. Os jovens se sobressaltaram como se tivessem sido puxados de volta à realidade enquanto ele continuava — Vocês não podem ficar bebendo aqui na frente! Saiam daqui antes que eu chame a polícia!

    — A polícia? — os olhos de Vento Leste se arregalaram — Mano, não posso ser preso de novo! Minha mãe falou que da próxima vez ela me manda para um internato militar!

    — De novo? — Quintus não teve tempo de processar essa nova e perturbadora informação porque o jovem fantasiado de gato já o estava arrastando pela rua, com o urso a reboque.

    — Tecnicamente, não foi prisão. — Vento Leste fez um gesto vago com a mão — Foi mais uma… detenção temporária para esclarecimentos sobre um pequeno mal-entendido envolvendo dezessete patos, uma faca de açougueiro e um fuzil contrabandeado no Paraguai. 

    — Olha, precisamos nos orientar. — disse o jovem Maximus, atordoado, certo de que saber mais só pioraria tudo — Vamos continuar perdendo tempo e nunca chegaremos à festa.

    — Olha! — interrompeu Vento Leste, os olhos faiscando feito os de um profeta em transe, enquanto apontava com fervor para algo do outro lado da rua.

    Quintus seguiu o dedo cambaleante de seu guia e viu… um poste de luz comum. Completamente ordinário e idêntico a todos os outros postes de luz que haviam passado.

    — O que tem?

    — Não o poste, cara! Olha direito! — gesticulou com mais ênfase.

    Foi então que ele notou: atrás do poste havia uma placa quase completamente coberta por galhos de uma árvore próxima. Aproximando-se, conseguiu ler as palavras parcialmente visíveis: ‘Rua das Acácias’.

    — Não acredito! — exclamou, genuinamente surpreso — Chegamos à rua certa!

    — Te disse, cara! — Vento Leste deu tapinhas em seu próprio peito — Eu nunca me perco… apenas tomo rotas alternativas para o destino inevitável!

    Mas à medida que avistavam a multidão fantasiada na frente do prédio, Quintus começou a suspeitar de algo terrível: ou estavam no lugar errado… ou a realidade finalmente perdera o juízo de vez.

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