Capítulo 41 - As nádegas góticas da vó Maria
Quintus não conseguia acreditar que haviam finalmente encontrado o lugar da festa da Illusia. Mas o alívio durou pouco. À frente, uma fila tão absurda se estendia que parecia saída de um pesadelo estético em LSD.
À medida que se aproximavam do grande edifício iluminado, uma construção colossal que ocupava quase metade do quarteirão, o jovem Maximus sentiu como se estivesse prestes a entrar em um delírio coletivo patrocinado por um brechó psicodélico.
A fila serpenteava do mesmo jeito que uma cobra ansiosa por cometer crimes de moda, e cada pessoa parecia saída de um teste de elenco para o Zorra Total, na fase mais experimental.
— Olha só esse lugar! — Vento Leste pulava com hiperatividade enquanto apontava para a multidão — É tipo um zoológico humano, só que os animais fugiram do manicômio antes da fantasia estar pronta! Isso sim é pika cósmica em estado bruto, meu caro! A essência do caos primordial materializada em lantejoulas e tinta guache!
Mesmo cercado por tanta esquisitice, e sem deixar transparecer, Quintus também sentia uma pontada de animação. Ele passou anos trancado num mundo digital.
Mesmo com o fim da pandemia, sua escola permaneceu online, e os nomes que apareciam na tela, com seus apelidos, avatares e jeitos peculiares de escrever, se tornaram sua principal forma de convivência.
Durante meses, ele discutiu sobre literatura com pessoas que usavam emojis de fogo e avatar de anime com filtro de cachorro. Agora, encarando aquela fila, parecia que todos haviam combinado de levar as piadas do grupo a sério demais.
Quintus engoliu em seco, apertando mais uma vez o urso gigante contra o peito feito um escudo improvisado. Cada passo era à semelhança de atravessar um portal para uma dimensão onde o bom senso fora trocado por glitter e insanidade performática.
Os trajes eram tão absurdos que pareciam parte de um desfile psicodélico patrocinado por alguma seita de influenciadores alternativos.
“Será que aquele com o sobretudo roxo e o olho pintado é o Max Sthainy?” — pensou Quintus, lembrando do maluco que tentou convencer a sala de que engravidou uma súcubo durante uma meditação guiada — “Ou o Leodib? Aquele que uma vez entrou na aula virtual sem calças e jurou que o filtro de ‘profissional da cintura para cima’ estava funcionando?”
O cara de máscara de galinha chamou sua atenção em particular.
“Seria o Dreez7? Aquele que escreveu um livro de amor para o vento e tentava convencer a escola inteira de que aves e um gato podiam ter um relacionamento aberto? Ou Lxpe, que uma vez desligou a câmera no meio da aula para ‘salvar um galo fugitivo’ e voltou quinze minutos depois coberto de penas sem nos contar porque a ave nunca mais cantou?”
Enquanto pensava, começou a listar mentalmente os nomes que conseguia lembrar: “Lucrédio, Vila, Black Shadow, Hayashi, Sandmanbored, Sartius, Zunnichi, Asimov, Darkness, Star, Dri, J!, GRPacheco, KamiSlayer, Kaua_paulino, Mirius, Predrovisky, Bar_do_bardo, Albuquerque, Saike…”
— Isso aqui não é uma fila, é o despacho coletivo de um terreiro de macumba! — murmurou, horrorizado.
Havia um homem usando um terno completo feito inteiramente de papel alumínio que cintilava sob as luzes da rua, criando pequenos arco-íris a cada movimento. Ele gesticulava freneticamente com as mãos para o céu enquanto explicava a um grupo de curiosos:
— Como consultor interdimensional, posso garantir que os alienígenas ADORAM festa de formatura. É o equivalente intergaláctico aos nossos documentários sobre acasalamento de pinguins!
“Esse só pode ser o Sandmanbored” — pensou Quintus com fascínio, ao lembrar daquela vez em que seu colega disse ter sido abduzido por alienígenas só para descobrir quem era Ana, ou a Eternidade, ou algo assim.
Logo atrás dele, dois gêmeos adultos idênticos de quase dois metros de altura estavam vestidos exatamente iguais a bebês, com chupetas gigantes, babadores e fraldas visivelmente… usadas.
Um deles choramingava de forma aguda pedindo ‘papá’ enquanto o outro batia numa mulher com um chocalho do tamanho de um bastão de baseball, gritando:
— Titia má não qué dá docinho pro nenê!
— Isso é o que acontece quando o banco não aprova seu empréstimo e você decide voltar pra casa dos pais em modo hardcore! — apontou Vento Leste — Abandonar o capitalismo e retornar ao modelo econômico do choro até conseguir comida grátis é a jogada mais pika que já presenciei!”
Na esquina, um rapaz extremamente peludo, tinha pêlos até nas pálpebras, vestia-se apenas com estrategicamente posicionadas folhas de alface. Ele estava agachado, com o rosto enterrado num vaso de planta, murmurando intensamente enquanto sacudia a bunda:
— Estou em simbiose completa com a Terra, irmãos. Sintam minha fotossíntese emocional!
Cada vez que alguém passava muito perto, ele emitia o que parecia ser uma imitação perturbadoramente convincente de zumbido de abelha. Ao notar duas garotas passeando por perto, ele saltou de seu refúgio verde e começou a jogar frenético, confetes como se fossem pólen imaginário sobre elas, gritando
— FECUNDAÇÃO BOTÂNICA!
As garotas dispararam em fuga tão rápido que era provável que tivessem desistido da festa por completo. Quintus só torcia para que nenhuma delas fosse Whalien, Maga ou Dawana, entre os poucos contatos constantes que ele realmente esperava encontrar naquela noite.
Mais adiante, um sujeito usando uma máscara de cavalo hiper-realista, daquelas que cobrem a cabeça inteira, estava parado rigidamente. Sempre que alguém olhava em sua direção, ele relinchava com um volume absurdamente alto e empinava, chutando o ar com as ‘patas’ dianteiras.
— Acho que esse é do seu clã — sussurrou para Vento Leste, lançando um olhar cúmplice para o amigo — Falta só você relinchar também.
— Que relinchar o quê!? — retrucou, miando alto e erguendo as mãos do mesmo jeito que garrinhas — Eu sempre serei um gato egípcio! Mas um acavalado parrudo também é muito Pika!
— São… são essas as pessoas do Colégio Illusia? — murmurou, sem nem tentar argumentar, estava ficando bom em ignorar as maluquices que o seu colega fantasiado de gato chamava de lógica.
— Ou a gente chegou numa rave de colônia psiquiátrica alternativa. Mas sinceramente? Tô dentro. — respondeu Vento Leste, pescando outra Torpedo Pika de um dos infinitos bolsos que seu terno misteriosamente abrigava — Olha aquela garota gótica ali com a urna! Se não for amor, é pelo menos uma psicose compartilhada. O tipo de relação que gera filhos ou mandados judiciais, às vezes os dois!
Quintus seguiu o olhar do amigo e viu uma jovem com maquiagem branca tal qual giz, batom preto, e roupas que pareciam ter sido roubadas do guarda-roupa de Mortícia Addams. O mais perturbador, no entanto, era a pequena urna funerária decorada com emoji sorridentes que ela carregava do mesmo jeito que se carregava uma bolsa.
— Este é Rick — ela explicava a um segurança visivelmente desconfortável, abrindo ligeiramente a tampa da urna — Meu ex-namorado e acompanhante da noite. Ele sempre quis participar de uma festa depois da morte. Não consegue ver o quanto ele está animado?
“Será que é ela? A Whalien?” — pensou Quintus, em pânico interno — “Será que ainda lembra do fora? E pior… será que ainda pensa que sou o tipo de cara que flerta com sticker de sapo triste?”
— Se ela puxar uma Alexa de dentro dessa urna e o Rick começar a falar por comando de voz, eu me jogo no lixo reciclável mais próximo — comentou Vento Leste baixinho, sem notar o desespero do amigo.
O jovem Maximus apertou o passo sem dizer uma palavra, forçando o jovem fantasiado de gato a apressar os passos também, ainda tentando entender o que tinha acontecido.
— Ei! Que foi? Vai deixar a Alexa herdar a noite toda sozinha? — brincou, rindo, ainda sem notar o olhar tenso do amigo.
Mas Quintus só balançou a cabeça, os olhos fixos no chão, num gesto que sugeria que as lajotas escondessem alguma saída de emergência emocional. A possibilidade de ter cruzado com Whalien, ou alguém que remotamente lembrasse ela, já era mais do que ele conseguia lidar naquele momento.
Tinha sido um fora discreto, quase elegante, que por sorte ninguém notou. Ninguém printou, ninguém postou, ninguém zombou em grupo privado. E era exatamente assim que ele queria que continuasse: invisível, enterrado, sem testemunhas.
As memórias vieram no impacto de um soco no estômago: a conversa truncada, o emoji de sapo triste, o silêncio que durou semanas.
Ele tentava se convencer de que não podia ser ela, que era apenas a imaginação traindo suas esperanças ou medos. Mas havia algo naquele gesto, na maneira com que segurava a urna, que acendia um alerta profundo.
— Impossível… — deixou escapar Quintus, murmurando à maneira de quem se sentia traído pela realidade.
— Não só é possível como é pika demais! — exclamou Vento Leste, cada vez mais animado com o que estava vendo e achando que o ‘impossível’ dito por seu colega era pura admiração — O cara ali tá debatendo Nietzsche com um abacaxi! Tem uma mulher tatuando ‘Vai Corinthians’ no peito ao som de funk 150 bpm! Isso não é uma festa, é a Marcha da Pika Mística com financiamento coletivo!
Quintus já não tinha forças para questionar ou resistir. Caminhava, sendo empurrado pela torrente de insanidade e pelo entusiasmo quase religioso de Vento Leste. Cada passo era um novo ataque sensorial. Uma nova aberração. Uma nova teoria de Vento. Ele só conseguia pensar:
“O que mais essa realidade distorcida ainda vai me mostrar… e como ele vai transformar isso numa teoria do universo?”
A multidão à frente parecia não estranhar a dupla de jovens bem vestidos e possivelmente imaginavam que o jovem sem máscara a qualquer momento se fantasiaria de algum animal também.
Afinal, Quintus carregava um urso gigante, talvez fosse um domador ainda esperando seu momento para a grande performance.
Até porque a variedade de estilos invalidava qualquer padrão específico e todos estavam realmente transformando a realidade em suas fantasias virtuais, era o equivalente a trazer suas próprias tintas para deixar o mundo cinza e sem graça mais próximo de seus gostos.
Inesperadamente um sujeito em traje medieval completo, com armadura feita de latas de refrigerante amassadas e um elmo de papelão, entregou um panfleto dobrado em forma de espada a cada um dos jovens.
— Saudações, forasteiros! — bradou o rapaz, com uma capa de cortina e uma voz afetada que tentava soar nobre, mas parecia um anúncio de xarope — Em nome de Siegfried, o Rei Mercenário do glorioso Reino de Thedrit, convoco todos os valentes para a Vigília da Castidade Eterna! Tragam suas espadas de borracha e nenhuma condessa, por favor. Elas assustam os membros da irmandade.
Quintus ficou com medo de olhar o conteúdo e se comprometer mais com a loucura que começava a invadir a sua realidade. Mas no fim descobriu que era um chamado a participar, com 50% de desconto, de uma guilda de guerreiros. Algo normal e típico em qualquer manicômio.
Já Vento Leste fez um aviãozinho de papel com o panfleto e acabou jogando no ar. Dobrou e fez um ritual de batismo improvisado murmurando:
— Voe, pequeno portador da sabedoria pika!
Lançou o objeto com a pompa de quem inaugurava uma nova era da aviação e a nave de papel acabou seu voo aos pés de outras figuras estranhas:
um grupo de motoqueiros com jaquetas de couro preto cheias de patches coloridos chamava a atenção. Todos os patches eram de desenhos infantis: Peppa Pig, Bob Esponja, Hello Kitty e Galinha Pintadinha.
— O gato de botas e Jack estripadror de bonecas da irmã chegaram — disse o líder, com um bordado dos Ursinhos Carinhosos no peito.
— Gato de botas? — murmurou Vento Leste, claramente ofendido, puxando o decote da fantasia para mostrar parte das suas cinco camisetas da sabedoria pika dando a entender que essa fosse a melhor resposta do mundo.
— Calma, Floriposa! — disse outro brutamontes que segurava um capacete rosa neon com orelhas de coelho — Não é hora de brincar com essas crianças.
Mas para Quintus a figura mais apavorante era o outro integrante do trio, um sujeito completamente tatuado girava mostrando suas ‘obras de arte corporais’: caveiras, chamas, armas.
Até que virou de costas revelando, através da calça propositalmente rasgada, duas enormes nádegas onde se lia em letras góticas extravagantes: ‘Vó Maria’ cercado por querubins e corações.
— Feita com as cinzas da velhinha misturadas na tinta. — explicou orgulhosamente ao ver o olhar do jovem Maximus — Ela sempre disse que queria ficar de olho no meu traseiro.
— Não sei se é devoção familiar ou terrorismo geriatrico — filosofou Vento Leste, inclinando a cabeça para ler melhor a tatuagem. — Mas isso sim é comprometimento…
— Tá bom, tá bom, já entendi! — interrompeu Quintus às pressas, exibindo um sorriso forçado enquanto agarrava o jovem fantasiado de gato pelo colarinho e o arrastava para longe antes que ele completasse a frase.
Mal tinham dado três passos e esbarrou em alguém de outro ajuntamento de figuras tão ou mais bizarras que as anteriores.
O homem, de óculos escuros e colete tático cheio de bolsos, examinou o jovem de cima a baixo. Estava descalço, os dedos dos pés orgulhosamente pintados de glitter rosa, numa estética digna de uma guerra temática de drag queens.
— QAP! QRV! QTC! — gritou por ajuda e dando coordenadas para seus companheiros diante do perigo.
— Cambio, Delta Foxtrot! Temos um 2319! Repito, temos um 2319! — berrou para o rádio imaginário em seu bolso — Urso de pelúcia colidiu com agente em campo! Possível infiltração de fofura hostil!
— Foi um engano. Um acidente. Não precisa matar eles. — interveio uma mulher que também pertencia ao grupo e estava camuflada e com boina militar carregando um coldre especial com cinco bananas perfeitamente alinhadas onde deveriam estar as armas.
— Não se assustem, minhas doçuras. Prazer. Eu sei, a banana confunde. Mas sou entusiasta do tiro a distância vegano. — disse com a calma de quem já teve que se explicar muitas vezes — Essa nova modalidade vai enterrar o hipismo e elevar a banana ao status de arte olímpica.
Quintus ficou com medo de perguntar de que forma esse esporte novo deveria funcionar e sua imaginação chegou a conclusão de que talvez eles deviam apertar a banana e a que chegasse mais longe era a vencedora.
— Deixa eu ver se entendi — interferiu Vento Leste, apontando para as bananas — Você atira… frutas?
— Não são apenas bananas — respondeu a mulher com seriedade militar — São bananas táticas de precisão. Está aqui — apontou para a maior delas — tem tamanho de trinta centímetros… Você consegue imaginar o estrago de 30 centímetros?
— RATATATATATA! — gritou outro homem assustando os dois jovens que se jogaram no chão achando que eram tiros de verdade e acabaram esquecendo os 30 centímetros.
— GRANADA! — berrou o mesmo homem, jogando uma maçã que rolou até parar aos pés dos jovens — TODOS AO CHÃO! CONTAGEM REGRESSIVA PARA EXPLOSÃO DE VITAMINA C!
Os atiradores seguiram rindo e comentando que ele tinha sido muito maldoso em assustar aquelas crianças assim. Os dois jovens se levantaram com o coração em disparada.
— Vamos fugir dessas frutas bélicas antes que descubramos o que um abacaxi faz em modo automático. — sussurrou Vento Leste, puxando Quintus pelo braço enquanto se afastavam rapidamente — Cuidado com aquela senhora com melancia, tenho certeza que é uma lança-granada disfarçada!
Foi então que o jovem Maximus o reconheceu à porta: alto, magro tal qual uma exclamação, cabelos cacheados caindo sobre os olhos que parecia ter saído de um editorial de moda experimental e aquele tablet sempre à mão, à maneira de alguém que gerencia o universo a partir dele. Vinigo! Quintus quase deu meia-volta.
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