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    Os dois se dirigiram para a porta de entrada, Quintus sentindo o estômago girar num mal-estar que só quem mistura energético quente, culpa não resolvida e dois Yakults vencidos entenderia. 

    Vinigo havia retomado seu posto com um tablet sobressalente e uma expressão tão severa que suas sobrancelhas pareciam formar uma única linha de censura estética acima dos olhos.

    — Vocês de novo? — sibilou entre dentes.

    — Temos convites — Quintus estendeu o seu com uma mão que tremia, enquanto tentava não pensar em que ponto sua vida havia se transformado numa série de eventos vergonhosos conectados por momentos de puro desespero — E… bem… somos… acompanhantes um do outro.

    Vinigo olhou para os convites, depois para os dois jovens desarrumados, depois de volta para os convites, num movimento de pescoço tão dramático que parecia estar assistindo a uma partida de tênis. 

    Seu dedo deslizou pela tela do tablet com a velocidade frenética de quem tenta cancelar uma compra online antes da confirmação do cartão.

    — Deixe-me verificar se o regulamento prevê alguma proibição específica para casos de tamanha afronta visual, ou se preciso criar uma nova categoria de rejeição estética só para vocês…

    Enquanto Vinigo consultava seu manual de regras estéticas, provavelmente procurando por ‘desastres ambulantes’ ou ‘ofensas à simetria humana’, 

    Quintus notou algo estranho que fez seu cérebro dar um salto mortal seguido de uma pirueta de confusão. Por outra porta entreaberta a alguns metros da porta a sua frente, conseguia ver o interior do evento. 

    Em vez das pessoas excêntricas da fila, o salão aparentava estar ocupado por… pessoas normais. Jovens usando roupas que não causariam paradas cardíacas em idosos, conversando, rindo, segurando copos de plástico com bebidas coloridas sem pretensões artísticas.

    Foi como se seu cérebro finalmente encontrasse o botão de reiniciar depois de horas tentando processar o absurdo. Com o cenho franzido, o jovem Maximus olhou mais atentamente para o letreiro acima da porta, que parecia zombar dele com sua revelação tardia. 

    Em letras discretas, lia-se: ‘Salão Multiuso – Evento: Simpósio de Vanguarda Performática da Federal – Patrocinado pela Globo’.

    E, mais abaixo, uma seta apontava para outra entrada — a mesma que Quintus havia notado poucos metros adiante: ‘Colégio Illusia – Festa de Reencontro Pós-Pandemia’.

    O universo, em sua infinita sabedoria cômica, havia decidido que nem mesmo uma simples ida à festa poderia ocorrer sem um desvio pelo reino do absurdo.

    — Espera um minuto. — cutucou Vento Leste com urgência — Olha ali!

    — Não acredito! — exclamou o jovem com saco de pão na cabeça, acompanhando com os olhos o ponto que lhe era apontado — Estamos na fila errada esse tempo todo! Aquele desgraçado do Val Ferri mandou o endereço certo… mas esqueceu de dizer que tinham duas festas rolando no mesmo lugar!

    Com um movimento sincronizado digno de fugitivos de presídio, antes que o avaliador-porteiro terminasse de consultar seu manual de regras estéticas, os dois se afastaram, fazendo aquela caminhada de quem tenta não ser notado mas só consegue parecer ainda mais suspeito.

    — Ei, vocês dois! — Vinigo gritou atrás deles, agitando o tablet tal qual uma arma improvisada — Ainda não determinei seu destino estético! Vocês são a personificação ambulante do caos cromático!

    Mas Quintus e Vento Leste já corriam em direção à outra entrada, uma porta simples e sem fila, adornada apenas com uma faixa desbotada e uma professora sonolenta verificando convites com a energia de quem preferia estar em qualquer outro lugar do universo naquele exato momento.

    Quando se aproximaram, ofegantes, o jovem Maximus sentiu o coração bater tão forte que parecia ter saltado do peito, feito sinal pra um Uber e fugido do país. Não era qualquer professora. Era ELA. Professora Nimsay. 

    A dona dos olhares serenos que alimentavam suas insônias, a detentora do e-mail que havia recebido a famigerada foto onde ele aparecia nu, refletido no espelho do banheiro, em um ângulo cuja possibilidade física a ciência ainda tentava compreender.

    A professora levantou os olhos por cima dos óculos com uma calma tão estudada que parecia ter sido praticada diante do espelho. Seus olhos, no entanto, demonstraram um brilho de reconhecimento que fez o estômago de Quintus tentar buscar asilo político em outro órgão.

    — Convites? — perguntou ela, com aquela voz suave que fazia suas pernas virarem gelatina instantânea.

    — A-aqui — gaguejou, com o gesto de quem carrega um fardo de culpa alheia ao entregar o papel.

    A professora examinou os convites por um momento que pareceu se estender pela eternidade. Seus olhos se moviam entre os papéis e os dois rapazes com uma expressão que misturava diversão contida e resignação profissional.

    — Vejo que vocês vieram como acompanhantes um do outro. — ela comentou, enquanto carimbava os convites com uma eficiência tranquila — Confesso que sempre soube que você tinha interesse em pessoas mais maduras, Quintus, considerando aquela… correspondência eletrônica que recebi. — ela fez uma pausa milimetricamente calculada — Mas nunca imaginei que seus interesses incluíssem também desejos por animais.

    O jovem Maximus sentiu o rosto pegar fogo com intensidade suficiente para assar um frango.

    — Não, professora, não é nada disso! — disparou com tanta pressa que parecia estar vomitando sílabas — É que… a ursa foi sequestrada, e então o Vento… e o saco de pão… e a máscara rasgou…

    — Claro, claro — ela assentiu, com uma seriedade que só tornava tudo ainda mais constrangedor — O que acontece na festa, fica na festa. Entrem logo, por favor. E Quintus? — ela acrescentou com um sorriso gentil que só aumentou seu constrangimento.

    Vento Leste precisou empurrar seu colega e agora acompanhante para dentro, já que suas pernas haviam decidido entrar em greve geral por tempo indeterminado. 

    O salão se abriu diante deles com a intensidade e o caos de um mar de rostos semi-conhecidos, luzes coloridas, música alta e constrangimentos iminentes.

    — Essa foi épica, cara! — gritou o jovem com saco de pão na cabeça, batendo em seu ombro com força desproporcional — Mal chegamos e já tem material para memes pelos próximos cinco anos! Olha, tem ponche ali! Vou correr antes que alguém adultere antes de mim.

    E assim, com a velocidade de um gato perseguindo um laser, Vento Leste desapareceu na multidão, deixando Quintus sozinho, desorientado e com a certeza incômoda de que viveria a noite na pele de um figurante de fundo: sozinho, mal iluminado e completamente ignorado.

    — SENHORAS E SENHORES, CRIATURAS DE TODOS OS GÊNEROS E ESPÉCIES INDETERMINADAS! — uma voz conhecida e exageradamente dramática explodiu pelos alto-falantes — ACABEI DE AVISTAR A MAIS RECENTE VÍTIMA DO NOSSO REALITY SHOW IMPROVISADO “SOBREVIVENTES DO CAOS SOCIAL”!

    No centro do salão, sobre um pequeno palco improvisado que parecia ter sido montado com sobras de uma apresentação escolar, estava Val Ferri. 

    Vestido de um jeito que lembrava Chacrinha, apresentador icônico da TV dos anos 80, em versão pós-acidente cênico, segurava um microfone com o entusiasmo de quem acabou de descobrir que tem poderes telepáticos sobre a vergonha alheia.

    Ao seu lado, com aquele tipo de entusiasmo reservado aos que acham graça no caos alheio, estava Dellos, segurando uma câmera que parecia pesada demais para seus braços finos, mas que ele manipulava com a destreza de quem estava acostumado a documentar desastres sociais.

    — E aí vem ele, senhoras e senhores! — continuou Val Ferri, apontando dramaticamente para sua vítima — O homem que transforma situações normais em anedotas épicas! O mestre do constrangimento não-intencional! O nosso Neymar da tragédia que dribla todo mundo só pra tropeçar na própria chuteira! QUINTUS MAXIMUS!

    Um holofote improvisado iluminou o jovem Maximus, que congelou tal qual um cervo diante de faróis, se os faróis fossem operados por um motorista sádico que decidiu estacionar e apreciar o momento.

    — Val, por favor… — murmurou, embora soubesse que era inútil tentar deter o furacão de exposição embaraçosa que havia acabado de se formar.

    — Não, não, não tente se esconder de seu destino, meu jovem padawan do desastre! — Val Ferri saltou do palco com uma agilidade surpreendente — Esse documentário e vídeos de divulgação precisa de uma espinha dorsal, e você, meu amigo, é a coluna vertebral perfeita da tragicomédia humana!

    — Consegue fazer aquela cara de pânico absoluto de novo? — pediu Dellos, aproximando a câmera e inclinando-se para um ângulo melhor — Aquela que você fez quando a professora mencionou suas… como ela disse mesmo se referindo ao seu caso com o… gato? Zoofilia?

    — Vocês estavam filmando isso?! — Quintus sentiu uma nova onda de horror percorrer seu corpo.

    — Claro que estávamos! — respondeu Val Ferri, passando um braço pelos seus ombros à semelhança de um abutre amigável — Documentamos todos os momentos da vida que as pessoas prefeririam esquecer! É o que chamamos de serviço social.

    — Mas ficou uma dúvida aqui — disparou Dellos, com a cadência de uma metralhadora de fofoca — Você sempre preferiu mulheres mais velhas? Cantou mesmo a Professora Nimsay? E depois disso tudo, na fossa da decepção amorosa, decidiu ampliar o cardápio emocional e começou a namorar o Vento? É isso? Tô errado? Tô acertando muito?

    Dellos falava de um jeito que parecia estar lendo sua alma em voz alta, expondo ou adivinhando cada possível segredo com uma alegria criminosa. Agora, mais do que nunca, Quintus tinha certeza de que tomar a decisão de vir aqui tinha sido um erro trágico.

    — Isso não é serviço social, é tortura psicológica! — rebateu o jovem Maximus com a única frase que sua mente em pânico conseguiu articular.

    — Detalhes, detalhes… — intercedeu Val Ferri fazendo um gesto displicente, do tipo que se faz para espantar uma mosca invisível — Agora vamos! O destino nos chama, e pela expressão da sua cara, ele está ligando no modo viva-voz!

    Val Ferri arrastou Quintus em direção ao centro da festa, onde uma multidão já se formava em torno de um palco maior. Dellos seguia atrás, a câmera capturando cada passo desajeitado e expressão de desespero crescente.

    — Senhoras e senhores! — anunciou Val Ferri ao microfone portátil que havia surgido por puro truque de mágica — Estamos aqui com mais um participante que acaba de chegar à nossa celebração! Como manda a tradição, cada recém-chegado deve se apresentar e compartilhar uma curiosidade, desejo ou fato interessante!

    Entre aplausos, o telão brilhou mais uma vez com a cara de do jovem Maximus, agora tão próxima que parecia pastel de feira sendo filmado fritando: suando, inchando e expondo cada poro a ponto de parecer recheio vazando.

    — Eu… eu sou Quintus Maximus e… — ele gaguejou, sentindo o suor escorrer por suas costas num fluxo que lembrava um pequeno riacho de puro pânico.

    — Mais alto! — gritou alguém da plateia — Não conseguimos ouvir seu desespero daqui de trás!

    — Eu sou Quintus Maximus! — ele repetiu mais alto, desejando intensamente que aparecesse um botão escrito ‘desistir da vida social’ e ele pudesse apertar sem ler os termos e condições — E um fato interessante sobre mim é que… eu… eu…

    — Ele enviou uma foto nu para a professora Nimsay por engano! — completou Val Ferri, sorrindo com a satisfação de um demônio que acabou de fechar um contrato particularmente lucrativo

    A multidão explodiu em risadas. No telão, o rosto do jovem passava por todas as cinco fases do luto ao mesmo tempo, mais algumas extras que a psicologia ainda não havia catalogado.

    Dellos, farejando audiência, vasculhou a multidão até encontrar seu alvo: a professora Nimsay. 

    Deu um zoom dramático em seu rosto, na expectativa de um furo de reportagem, congelando a imagem justo quando ela arqueava uma sobrancelha com a paciência ancestral de quem sobrevive diariamente recebendo inúmeras mensagens desesperadas de alunos emocionalmente instáveis.

    Com um brilho malicioso nos olhos e a pose de um jornalista investigativo de quinta, ele disparou:

    — Agora que estamos fora do ambiente escolar e em local público… professora, a senhora bem que podia esclarecer pra gente: era pequeno ou minúsculo?

    A plateia veio abaixo. Risos, gritos, gente cuspindo o ponche. A professora Nimsay, sem dizer uma palavra, fez um biquinho de quem lembra de algo… talvez traumático, talvez agradável, talvez digno de ser arquivado numa pasta criptografada do coração. Mas a cara… a cara era de quem sabia exatamente a resposta, e decidiu guardar o segredo só pra si.

    — E isso não é tudo! — continuou Val Ferri, girando para outra direção da festa — Hoje ele chegou acompanhado do encantador Vento Leste, usando um saco de pão, servindo de máscara! Aplausos para nosso casal inusitado!

    Sem trocar uma palavra, Dellos já apontava sua câmera na direção do jovem com saco de pão na cabeça, ampliando a imagem até que o telão exibisse, em gloriosa definição tremida, o rosto parcialmente coberto com um saco de pão e o olhar perdido de quem mistura filosofia com fermentação.

    Sendo agora o centro das atenções no telão, Vento Leste ergueu um copo de ponche batizado em saudação, claramente aproveitando seu momento de fama improvável.

    — Não somos um casal! — protestou Quintus, mas seu grito foi abafado por uma nova rodada de aplausos e assobios.

    — Negação, primeira fase do relacionamento! — comentou Val Ferri, piscando para a plateia — A professora até abaixou o brilho do celular… de pura decepção.

    Ele esperou a última risada morrer no ar, alisou o paletó imaginário e como se mudasse de canal no próprio cérebro, retomou o tom cerimonial:

    — Mas sigamos! Logo mais teremos a escolha do Rei e da Rainha da festa, decididos pelo algoritmo infalível do Professor MsRody! E não percam a sessão de fotos temáticas. sua chance de parecer ridículo com estilo!

    Enquanto Val Ferri seguia com seus anúncios, Quintus conseguiu escapulir para a periferia da multidão, buscando desesperadamente um canto onde pudesse se recompor. 

    Encontrou uma mesa de bebidas e agarrou um copo, enchendo-o com qualquer líquido disponível, sem se importar se era álcool, veneno ou combustível para foguetes. Naquele momento, qualquer coisa que pudesse alterar seu estado mental parecia uma opção viável.

    — Primeira vez sendo perseguido pelo Val Ferri? — perguntou uma voz suave ao seu lado.

    Quintus virou-se e quase engasgou com sua bebida. Ao seu lado estava uma jovem loira de maquiagem branca, batom preto e roupas que faziam parecer que ela tinha acabado de sair de um funeral estilizado. Em suas mãos, ela segurava o que parecia ser uma pequena urna funerária decorada com emojis sorridentes.

    — W-Whalien…?! — ele conseguiu dizer entre tosses. 

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