Capítulo 44 - Quando crescer quero ser igual ao Crimson!!!
“Não pode ser… mas só ela mesmo para trazer um ex em formato portátil. A urna. O discurso. A energia. É Whalien.” — surgiu na mente de Quintus tal e qual uma notificação que ele jamais teria clicado.
O jovem Maximus agora tinha certeza. O mais estranho era que, mesmo com toda a maquiagem de gótica teatral e o acessório funerário, ela ainda lembrava assustadoramente as imagens de perfil que ele tinha vasculhado em silêncio nas madrugadas insones.
Parecia que os filtros tinham previsto o futuro, ou pior, como se ela tivesse mesmo aquele ar de tragédia elegante o tempo todo.
E pensar que ele nunca tinha visto uma foto nova dela desde a pandemia. O perfil do Instagram estava trancado a sete chaves, privado e impenetrável, e ele… ele nunca teve coragem de mandar um convite. Preferia manter uma distância segura, onde a rejeição ainda era só teórica.
Já ele? Atualizava o rosto do perfil com o cuidado de quem se veste para uma entrevista: a cada quinze dias, ângulo novo, iluminação diferente, filtro que escondesse as espinhas. E mesmo assim, nunca parecia ele de verdade. Ela, por outro lado, era uma espécie de avatar fiel de si mesma. E agora estava ali, real demais para a segurança da tela.
— O universo tem um timing impecável pra armadilhas existenciais, né? — disse Whalien, cortando os devaneios do jovem Maximus com um sorriso que parecia ter sido treinado em um espelho rachado — E você continua sendo o protagonista da peça mais humilhante da vida real.
— É… parece que sim — murmurou, numa pose de controle tão frágil quanto a dignidade de quem escorrega num banheiro público.
— Aquela urna… é mesmo seu namorado? — perguntou, numa tentativa desesperada de redirecionar a conversa antes que afundasse no pântano de suas vergonhas.
— Ex-namorado — corrigiu ela com a mesma tranquilidade de alguém que já abraçou o caos há muito tempo, passando os dedos sobre a tampa da urna tal qual quem acaricia um segredo — R. Scholar morreu, fisicamente. Mas espiritualmente? Continua aqui, julgando minhas escolhas. Tipo estar nessa festa.
Antes que Quintus dissesse qualquer coisa que o comprometesse emocionalmente, a atenção coletiva foi desviada para um novo espetáculo: um estúdio fotográfico que parecia ter sido montado por um grupo de palhaços hiperativos sob efeito de energético.
O cenário incluía fundos temáticos questionáveis e adereços que pareciam saídos de uma liquidação de teatro amador.
E no meio de tudo, lá estava Crimson, aquele que os bastidores apelidaram sem piedade de ‘veio da lancha’, maneira que ninguém jamais teve coragem de dizer na frente dele, mas que circulava com a mesma força de um meme de WhatsApp.
Agora em sua encarnação de fotógrafo ‘humanitário’, usava uma camisa havaiana aberta até o umbigo, um colar de miçangas que parecia comprado num camelô espiritualista e suava tal qual se estivesse pagando todos os pecados fiscais numa sauna.
Estava em êxtase, transformando adolescentes confusas em ‘musas tropicais’ sob protestos abafados e poses desconfortáveis.
— Ah, claro, a sessão de fotos beneficente! — disse Whalien, com os olhos cravados em Crimson — Organizada pelo próprio dono deste lugar, financiador exclusivo deste evento, que por acaso também é quem mais baba ao redor das meninas. Mas olhe bem nos olhos dele… e tente me convencer que não é só um safári hormonal disfarçado de arte.
Indiferente aos olhares ao seu redor, Crimson gritava orientações para as garotas no seu estande com entusiasmo juvenil demais para um homem de 59 anos e perfume francês de menos:
— Isso, linda, segura o coqueiro como se fosse seu diploma!
— Amei esse olhar de mistério! Vai render patrocínio.
— Essa vai pro portfólio do evento, hein? — sussurrou no ouvido de outra, enquanto se encaixava perigosamente perto dela, erguendo sua câmera Nikon Z99 de cem mil reais com uma mão só, numa tentativa inesperada de usá-la tal se fosse um celular, para um selfie totalmente dispensável.
Quintus e Whalien seguiram adiante, mas sem tirar os olhos do estande. A câmera de Crimson clicava, cada disparo parecendo uma tentativa desesperada de eternizar a puberdade.
Um dos cenários incluía uma ‘A pobreza estilizada das favelas’, onde Crimson pessoalmente rasgava parte das roupas das garotas para compor melhor a imagem, prometendo reembolsos e outras compensações inspiradoras nos bastidores.
— E o pior é que nada disso é ilegal. Tecnicamente. — comentou Whalien, no tom resignado de alguém que enfrenta os termos de uso de um site suspeito e percebe que autorizou o caos de forma legal, cartório incluso.
Mais adiante, o cenário “Lagoa Azul” não economizava em estética nem em segundas intenções: folhas tropicais falsas importadas da Indonésia, iluminação digna de clipe pop coreano e um ventilador de piso, aparentemente inofensivo, soprava rajadas precisas para levantar vestidos de visitantes distraídas.
As que optaram por não vestir os biquínis padronizados de Crimson, com etiquetas ainda penduradas, acabaram gentilmente ‘encorajadas’ a entrar com a roupa normal, que logo foi encharcada por aspersores de névoa ‘tropical’, revelando mais do que gostariam.
E por fim, o único obrigatório cenário da noite: Dois Drinks no Inferno, onde cada garota era recebida com uma seleção de bebidas que iam da melhor cachaça artesanal São João de Castilho ao suspeito ‘Good Night Cinderella’.
Ali, além das bebidas, coletava-se e-mail, telefone, renda dos pais, senhas fracas e sonhos juvenis, tudo com intuito para futuras ações de valorização estudantil. Tudo com ares de ritual burocrático disfarçado de happy hour.
— Scholar ia amar essa. Adolescência constrangida e corrupção disfarçada no mesmo frame. — comentou Whalien, equilibrando a urna igual a um troféu enquanto arrastava Quintus com a naturalidade de quem puxa uma mala de rodinhas no aeroporto.
De repente, uma comoção tomou conta do local. As portas se abriram, e um murmúrio coletivo percorreu o salão. Entrava, com pelo menos três horas de atraso calculado, uma jovem: 1,67m de atitude minimalista e cabelo preto cacheado que parecia ter sido finalizado por uma deusa entediada com escovas progressivas.
Os óculos diziam ‘não me explique nada’ em três idiomas. O vestido, simples apenas no corte, era mais caro que um curso de medicina. Ela não olhava em volta: permitia que a realidade se adaptasse à sua entrada.
— Dawana! — sussurrou alguém próximo a Quintus.
O efeito foi imediato e quase cômico: Crimson congelou no meio de uma frase para uma garota qualquer, deixou cair a câmera nas mãos de um assistente alarmado, e sua personalidade inteira pareceu mudar como um filtro de Instagram sendo trocado.
— Minhas queridas, façam uma pausa de cinco minutos! — gritou para as modelos improvisadas, agora subitamente descartáveis — Assuntos executivos requerem minha atenção!
Whalien observou a cena com divertimento cínico.
— O autoproclamado ‘Elon Musk brasileiro’ acaba de entrar em modo namoro — comentou, ajustando a urna sob o braço.
Quintus observou enquanto Crimson se movia pelo salão tal qual uma declaração de amor lançada ao vento, imprevisível, barulhenta e cheia de colisões, despejando desculpas e cotovelos no caminho até Dawana.Seu sorriso agora era tão controlado que parecia ter sido programado por engenheiros.
— Quem é ela? — perguntou o jovem Maximus, genuinamente curioso sobre a garota que tinha o poder de transformar um predador em um poodle adestrado.
— Dawana, 17 anos, prodígio da programação e atual objeto de obsessão matrimonial do nosso magnata tropical. — explicou Whalien com a eficiência de uma Wikipedia sarcástica — Eles mantêm um relacionamento ‘puramente educacional’ enquanto esperam a maioridade dela para anunciar o noivado oficialmente. Um limbo jurídico-moral que só o dinheiro consegue transformar em algo ‘respeitável’.
Crimson agora segurava a mão de Dawana com a devoção de quem conduz uma relíquia sagrada, atravessando o salão com reverência exagerada.
— Senhoras e senhores e todas as identidades fluídas de gênero que nossa escola inclusiva abriga! — exclamou Val Ferri, surgindo com a imponência de um gênio midiático convocado pelo drama — Temos a honra de receber a futura senhora Crimson! Ou melhor, a futura CEO da CrimTech, porque ninguém aqui é ingênuo para acreditar que essa menina está interessada apenas no QI dele!
Dellos, fiel à sua vocação de capturar constrangimentos em alta definição, deu um zoom dramático no relógio Patek Philippe de Crimson, um acessório tão caro que tinha seu próprio seguro de vida e conta no Instagram.
— Dizem que esse relógio foi feito com fragmentos de meteorito e lágrimas de programadores juniores. — narrou Val Ferri — Uma peça tão exclusiva que o tempo literalmente vale mais dinheiro quando medido por ele!
— É apenas um presente que dei a mim mesmo por existir. — respondeu Crimson, com uma modéstia tão genuína quanto os dentes de um influencer de harmonização facial.
Dawana sorria educadamente, seus olhos revelando o vazio existencial de quem já vendeu a alma por um futuro garantido em paraísos fiscais.
— Como vai o amor que não ousa pronunciar seu nome até o próximo aniversário? — perguntou Val Ferri diretamente à jovem — Contando os dias para a maioridade ou para o acesso às contas offshore?
— Estamos em um programa de mentoria intelectual. — respondeu ela com uma frase claramente ensaiada em frente ao espelho — Crimson está muito interessado no meu… desenvolvimento cognitivo.
— Desenvolvimento cognitivo tão impressionante que os pais dela agora moram numa cobertura triplex em Alphaville e dirigem um carro importado diferente para cada dia da semana. — sussurrou Whalien para Quintus — Dizem que ele já comprou três deputados para propor uma PEC que baixe a maioridade para 17 anos.
— Como é bom ser rico! — murmurou o jovem Maximus mais para si mesmo fascinado — Poder comprar tudo: empresas, políticos, pais, futuras esposas, até a própria lei…
— Capitalismo tardio em sua forma mais pura. — concordou Whalien — Scholar teria um infarto filosófico se visse isso. Sorte que já está morto.
Crimson agora oferecia uma taça de champanhe para Dawana, que educadamente recusou, apontando discretamente para sua idade.
— A lei é apenas uma sugestão para quem tem dinheiro suficiente. — declarou Crimson, alto o bastante para que todos ouvissem — O Código Penal também tem preço, só não consta na tabela do IPCA.
Val Ferri aproximou o microfone, enquanto Dellos capturava o momento com zoom dramático:
— Senhoras e senhores, presenciamos o amor na era do capitalismo tardio! — narrou — Um homem tão rico que poderia comprar a Comissão de Ética inteira do Senado está esperando pacientemente pela maioridade de sua amada! Se isso não é romântico, não sei o que é!
— Estou focada nos meus estudos no momento — respondeu com diplomacia ensaiada e um sorriso mecânico, com a precisão de alguém programada para parecer apaixonada a cada cinco minutos.
— Tradução: Estou contando os dias até poder acessar a senha do banco digital dele. — sussurrou Whalien, com uma admiração torta — Tenho que respeitar a estratégia.
Val Ferri reapareceu ao lado deles como uma invocação indesejada:
— Olha lá, Quintus! Seu futuro! — apontou para Crimson — Se continuar estudando muito, quem sabe um dia você também poderá ter sua própria coleção de adolescentes confusas e uma fortuna inexplicável aos olhos da Receita Federal!
Eles não trocaram palavras. Não foi preciso. Val Ferri e Dellos, parceiros de palco e bastidor, sabiam exatamente quando uma história terminava, e aquela tinha terminado.
O olhar de Val deslizou em direção a Quintus. Dellos já tinha a lente virada. O foco agora era outro: o desconforto em alta definição, a hesitação espontânea. A próxima história se desenhava ali, e os dois a seguiam com a sincronia de uma dupla que não precisa mais ensaiar.
— Ah, perfeito! Estamos voltando o foco para o trisal mais gótico-desajustado do hemisfério! — exclamou Val Ferri, deslizando na direção dos três — E Quintus… já seduziu gatos, confundiu professoras, flertou com a mesa de som e agora tá em romance sério com cinzas funerárias. Sobrou alguém pra gente?
— Não somos um casal — repetiu o jovem Maximus pela enésima vez, com a entonação exata de quem já não sabia mais se dizia isso por hábito ou desespero.
— Relações são construções sociais arbitrárias criadas para impor normas comportamentais sobre conexões humanas que transcendem categorizações simplistas — pontuou Whalien, enquanto cruzava os braços, no gesto silencioso de quem espera que o mundo finalmente entenda.
Quintus ficou alguns segundos olhando para a garota gótica no olhar confuso de quem tenta resolver um quebra-cabeça mutante. Depois suspirou, se virou e saiu andando com as mãos nos bolsos, em direção ao ‘Dois Drinks no Inferno’, onde pegou um copo com algo alcoólico, azul e perigoso.
— Se tudo na vida é passageiro, a vergonha também é, né? — disse pra si mesmo, antes de virar o copo e sentir o líquido queimando, uma sensação ácida de dor emocional se espalhando por dentro, apagando memórias recentes e borrando os limites entre o ridículo e o suportável.
Enquanto Dawana se ausentou para ir ao banheiro, a câmera de Dellos flagrou Crimson se aproximando de Whalien, inclinando-se com naturalidade ensaiada para lhe sussurrar algo ao ouvido. A expressão dela congelou. Logo depois, explodiu:
— QUINTUS! EU TÔ SAINDO!
— Mas o quê? — retrucou Maximus, justo quando tropeçava num cone coberto de glitter, aquele tipo de armadilha que só existe em festas bizarras, correndo logo em seguida com passos urgentes e desequilibrados — O que aconteceu?
— Não importa! — respondeu, fria — A luz aqui é ruim. Perdi o interesse nas fotos.
— Que clima! Que tensão! — exclamou Val Ferri, surgindo do nada com o microfone na mão e tudo sendo transmitido ao vivo no telão — Que química absurda! Agora vocês são oficialmente um poliamor em colapso emocional. Mas alguém aí tá solteiro? Pode ser uma impressora, uma luminária ou você mesmo, Leodib! — Dellos já dava zoom dramático em Leodib — Porque hoje o menino tá impossível.
Quintus virou o restante do copo que ainda segurava, deixando o líquido arder até a alma e dissolver o que restava de autoestima, julgamento e dignidade.
— Isso foi… um espetáculo. — disse Whalien, retocando o delineado com um sorriso discreto, no estilo de quem aceita o estrelato não apenas com resignação, mas com certo prazer. Afinal, era gostoso ser o eixo dramático das desgraças alheias.
— Isso foi o restante de minha reputação sendo jogada no lixo, com efeito sonoro e tudo. — completou, ainda segurando o copo vazio com a reverência trágica de quem exibe um troféu de vergonha.
— A humilhação é apenas o reconhecimento público de nossas vulnerabilidades internas. — ela respondeu enigmaticamente, enquanto olhava para algo além do seu ombro — Oh, parece que seu amigo está prestes a fazer algo imprudente.
Quintus virou-se e avistou Vento Leste próximo a um palco improvisado, onde uma competição de dança parecia estar prestes a começar.
— Meu Deus, ele vai dançar com… — murmurou o jovem Maximus, sentindo uma nova onda de constrangimento por associação se aproximando — Preciso impedi-lo antes que…
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