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    A multidão se virou de súbito quando o centro da pista começou a tremer suavemente. Um círculo metálico embutido no chão, até então imperceptível, se desdobrou com precisão cirúrgica, revelando um palco que se elevava como uma flor mecânica. 

    Era tecnologia de última geração: engenharia prática disfarçada de mágica. Um projeto financiado pelo hiper rico Crimson, que aparentemente decidiu que ‘palco portátil com abertura hidráulica’ era um item essencial em qualquer evento universitário. Por alguns instantes, tudo parou, como se fosse um intervalo patrocinado no meio do caos.

    Despertando a curiosidade geral, até mesmo dos que estavam ocupados demais fingindo que sabiam dançar com confiança e joelhos frouxos, a atenção se voltou para a figura que se destacava no palco recém-nascido. Um homem de expressão perdida, como se ainda estivesse calculando a distância entre sua sanidade e a do público, ajustava um microfone. 

    MrRody era conhecido por sua gentileza desarmante e sua atenção afetuosa com os alunos, mesmo quando usava palavras que soavam como feitiços esquecidos e defendia tabelas com a paixão de um revolucionário. 

    Seus óculos, grandes o bastante para projetar PowerPoints nos olhos alheios, estavam colados com fita adesiva que brilhava com orgulho nerd. O sweater, coberto de equações matemáticas e manchas de café que pareciam mapas de batalhas perdidas, era sua tentativa questionável de roupa sensual e ondulava a cada movimento dramático no microfone. 

    Seu cabelo formava um mapa topográfico do desespero acadêmico e, curiosamente, três passarinhos tentavam construir um ninho no topo.

    — Boa noite, jovens. — começou MrRody, com uma voz surpreendentemente potente para alguém que parecia sobreviver com a sucata de um fictício laboratório de física da federal após o desvio de verbas por um político sorridente: dois fios desencapados, uma pilha fraca e um sonho elétrico prestes a queimar.

    Assim que o professor no palco girou o botão do microfone, um som estridente reverberou pelas caixas como se o grito de uma chaleira traumatizada tivesse sido amplificado por todo o sistema de som da festa. 

    O ruído foi tão forte que a plateia recuou alguns passos, muitos cobrindo os ouvidos, outros tentando fingir que foi parte do espetáculo. O globo espelhado no teto tremeu, refletindo o pânico coletivo em pequenos fragmentos cintilantes.

    — Desculpem, pessoal… eu sou mais de planilhas do que de palcos. — murmurou ele, ajeitando os óculos com os dedos trêmulos — Isso aqui não é bem meu habitat natural.

    — Como parte de meu contínuo estudo sobre comportamento humano em ambientes sociais controlados, ou como vocês chamam, ‘festas’, coletei alguns dados interessantes utilizando meus drones de observação, algoritmos de reconhecimento facial e análise comportamental avançada. — que é basicamente minha forma socialmente aceitável de admitir que sou um stalker com diploma.

    A piada morreu ali mesmo, e o espírito dela subiu direto pra nuvem. O silêncio foi tão completo que dava pra ouvir uma cutícula sendo roída no fundo da sala. MrRody não esboçou reação, apenas deu sequência como quem finge que não tropeçou na calçada. 

    Na plateia, Quintus entrou em modo alerta máximo com alarmes imaginários disparavam como sirene de escola pública.

    “Drones de observação?” — pensou, engolindo em seco e sentindo o estômago despencar mais rápido que a internet num dia de chuva forte — “Então aquilo no banheiro não era o ar-condicionado… E se ele já acessou minha nuvem? Será que hackeou minha conta bancária, meu histórico de busca… e aquele vídeo que eu postei bêbado em 2025? Será que foi ele que fez minha geladeira começar a sugerir terapia também?”

    Um slide apareceu no telão acima de MrRody onde todos pudessem ver, exibindo gráficos piscando feito semáforo quebrado na Marginal às 18h, e tabelas mais cheias de ramificações do que questão interdisciplinar de redação do Enem.

    O professor ajustou os óculos com um movimento que parecia ensaiado especificamente para dramatizar o momento de revelação científica, ou para disfarçar o fato de que ele havia esquecido onde estava por um segundo.

    — Primeiramente, como podem ver no gráfico… — consultou seu caderninho com a tranquilidade de quem sabia exatamente onde estava. Pena que o público não. Bastou ver os olhares perdidos e um leve bocejo na segunda fila para pular direto à estatística — Bem… 85,3% das pessoas admitem que ‘estudo em grupo online’ é só um código para trocar memes e fingir produtividade. Os outros 14,7% estão mentindo descaradamente.

    — Aaaaaah! — reagiu a plateia em uníssono, como se os gráficos finalmente tivessem sido traduzidos do alemão acadêmico para o português do WhatsApp, tudo só pra provar o óbvio: ninguém estuda porra nenhuma.

    A plateia riu nervosamente, trocando olhares que confessavam mais do que qualquer boletim. Vento Leste ainda com restos de massa de pão escorrendo pelo pescoço, assentiu com a cabeça como se tivesse acabado de ouvir uma verdade universal. 

    Bateu com tanta empolgação no ombro de Vila que o impacto quase o jogou direto numa realidade paralela onde trabalhos em grupo funcionam.

    — E 95,7% dos alunos admitiram já ter pesquisado “como convencer o professor de que o trabalho sumiu por falha técnica” ao menos três vezes no semestre. Os outros 4,3% são tão amaldiçoados que o Wi-Fi cai, o mouse congela e a impressora pega fogo, tudo ao mesmo tempo e exatamente quando o trabalho tá com 99% pronto.

    Todos olharam para Quintus como se ele fosse a imagem ilustrativa do dado, uma lenda viva do atraso justificado. Ele até pensou em disfarçar com um gole do ponche batizado, mas o copo estava vazio. E todos notaram.

    As risadas vieram como confessionário coletivo. Gente rindo, gente gemendo, gente claramente lembrando do e-mail enviado às 23h59 com anexo corrompido por “acidente”.

    — Particularmente intrigante… — continuou MrRody, passando para o próximo slide enquanto tentava traduzir aqueles dados para um idioma que, com sorte, ao menos 10% da turma entenderia — É que 93,2% de vocês seguem firmes na crença de que curtir meu post de férias é o mesmo que pedir revisão de nota. Lamento, mas o algoritmo do Instagram não é o do boletim.

    — Então foi em vão minha curtida na foto de sunga na Praia Martim de Sá? — suspirou Whalien ao lado de Quintus, como quem lamenta um investimento emocional mal aplicado. 

    Tanto o professor Gehrman quanto o investidor Crimson ergueram as sobrancelhas simultaneamente, trocando olhares de epifania lúgubre como dois vilões que descobriram que o verdadeiro vilão era o algoritmo. 

    Gehrman, com a expressão de quem descobriu que seu cachorro só ficava nas palestras pela ração, pareceu murchar. Já Crimson abriu um sorriso predatório, já se vendo oferecendo “aulões de reforço” em teatro sensorial, com uniforme opcional e nota extra por exploração tátil do espaço dramático.

    Val Ferri, incapaz de conter sua natureza sensacionalista por mais de três minutos consecutivos, saltou para o palco. Segurava seu microfone não como uma ferramenta de trabalho, mas como um cetro real concedido por alguma divindade do caos midiático.

    — Professor, isso é fascinante, mas o público está sedento por dados mais… picantes! Vamos ao que interessa: quem está pegando quem? E quem está mentindo sobre isso?

    — Ah, sim. — MrRody ajustou novamente os óculos como se estivesse reajustando sua personalidade — Bem, meus algoritmos detectaram que 99% das imagens dos perfis e imagens identificativas das redes sociais não correspondem à realidade. O 1% honesto? Não… São pessoas que já não têm mais forças nem pra fingir.

    O professor recalculou a situação em milissegundos. A ausência de risos, o silêncio espesso e o olhar disperso da plateia não se alinhavam com os parâmetros de resposta esperados segundo o tutorial ‘Como ser engraçado em ambientes sociais’. 

    “Pausa dramática. Inflexão amigável. Referência cultural.” — revisitou mentalmente os passos — “Tudo dentro do protocolo. E ainda assim… vazio. Nenhuma resposta. Nada. O erro não está em mim. O problema são os humanos.”

    — Não subestime o poder do filtro no Instagram — tentou mais uma vez, calibrando cada sílaba como se executasse um algoritmo de efeito cômico garantido. Esperou 0,8 segundos. Mas o retorno foi idêntico: um silêncio frio, homogêneo, tão profundo que seria possível ouvir um dado corrompido se desfazendo no ar.

    — E quanto a estatísticas sobre relacionamentos? — insistiu Val Ferri, claramente buscando algo mais sensacional e salvando o palestrante de um momento constrangedor com a graça de alguém acostumado a transformar desastres sociais em entretenimento.

    Um microdelay denunciou a instabilidade. MrRody realinhou suas subrotinas. Cogitou inserir uma curva de engajamento, repensar a ordem dos gráficos, até que um comando interno sobrepôs os demais:

    “foda-se a precisão, vamos de exatidão fria.”

    — 96,3% dos presentes acreditam que assistir a 15 segundos de vídeo de sedução no TikTok os transforma em mestres da conquista, mesmo que nunca tenham dito ‘oi’ pra alguém fora do grupo da família. E destes, 100 % que tentaram estão bloqueados, judicialmente silenciados ou presos. 

    O olhar do professor percorreu os rostos inexpressivos até encontrar Quintus, rindo com a convicção de quem tinha entendido uma piada completamente diferente. 

    “Finalmente!” — pensou MrRody — “Uma alma perdida em dissonância cognitiva, mas ainda assim, uma risada.”

    — Mais surpreendente ainda… — prosseguiu, impulsionado pelo eco daquela risada solitária, como se fosse autorização para retaliar com fatos frios e embaraçosos — Meus dados indicam que 85% de todos os presentes aqui, incluindo funcionários da Illusia, compraram pelo menos uma vez um ‘vibrador de luxo’ online, acreditando genuinamente que se tratava de um novo modelo de microfone extremamente anatômico. 

    — Hsushsushushsushsusbsuhshshs — Vento Leste e a professora Nimsay deixaram escapar uma risada tão alta que parecia ter sido amplificada eletronicamente.

    — E 45%… — continuou MrRody, feliz por ter arrancado as primeiras reações genuínas do público — Repetiram a compra pelo menos três vezes tentando persistentemente encontrar um microfone mais adequado às suas necessidades específicas.

    Dellos se encolheu visivelmente. Vila, J!, Leodib, Albuquerque, Moonlich, Star, Zunnichi, Sacer e Sr. Stuart explodiram em tosses falsamente espontâneas, numa performance tão mal disfarçada que parecia um protesto asmático coreografado por alguém com pânico de sinceridade.

    — A conclusão científica é límpida. — continuou o professor mesmo com o som das tosses — A falta de informação clara sobre produtos online constitui a nova epidemia educacional do século XXI. 

    “Ou talvez seja apenas a prova de que o desespero humano é mais forte que o bom senso” — refletiu a professora Nimsay que acompanhava tudo junto dos alunos. 

    O breve entusiasmo desapareceu como desconto relâmpago em site suspeito. A última frase soou mais como um epitáfio do que uma piada, e a plateia reagiu com o mesmo entusiasmo de quem lê termos de uso. MrRody não se abalou. Afinal, para ele, silêncio também é dado.

    — Meu algoritmo detectou uma raridade estatística. — prosseguiu, como se apresentasse os indicados ao Oscar da vergonha — Uma pessoa aqui presente conseguiu o feito histórico de preencher todas as categorias de humilhação da nossa pesquisa. Acreditem: confundiu emoji de berinjela com salada, se apaixonou por uma voz no Discord, namorou o próprio travesseiro durante a pandemia, culpou Peixes com ascendente em Gêmeos pela média baixa, tentou marcar um encontro com um bot achando que era uma mulher e ainda tentou subornar o professor um meme do gato de terno só dizendo ‘pika demais’. A humanidade foi longe demais.

    — E esse indivíduo é… — disse MrRody, sobrepondo a própria voz ao burburinho crescente da plateia.

    O telão atrás dele explodiu em confetes digitais, enquanto um nome piscava em letras gigantescas: QUINTUS MAXIMUS, seguido por emojis de palmas, troféus e um pequeno vibrador disfarçado de microfone.

    A plateia explodiu em aplausos e gritos, enquanto o jovem Maximus contemplava seriamente a possibilidade de se jogar pela janela mais próxima. 

    Ou melhor, talvez fosse mais eficiente buscar uma das urnas contendo as cinzas do ex de Whalien e se misturar discretamente ao pó, na esperança de reencarnação em circunstâncias mais favoráveis na próxima vida.

    — Mas agora… — anunciou, só então lembrando, ao encarar o relógio, que o tempo ainda existia — Passamos ao evento principal da noite: a coroação do Rei e da Rainha da festa, determinados pelo meu algoritmo proprietário que analisa interação social, cumprimento de requisitos do convite, atividade nas redes sociais e diversos outros parâmetros que vocês nem imaginam que estou monitorando constantemente.

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