Índice de Capítulo

    Por um breve instante, o salão congelou em suspense, talvez pela força do anúncio ou apenas porque o ar-condicionado resolveu funcionar no momento mais dramático possível. 

    O anúncio caiu sobre o salão, à maneira de um aviso meteorológico que antecipa furacão, eclipse e chuva de gafanhotos, só que com glitter e energia de bloco de Carnaval às 7 da manhã. 

    A multidão, ainda se recuperando de confissões, brigas e urnas voadoras, prendeu a respiração coletiva, na esperança absurda de influenciar o algoritmo de MrRody pelo silêncio. Mas a verdade é que não podia.

    O palco hidráulico havia virado um delírio coletivo, com a confusão festiva de uma cerimônia em massa improvisada, um concurso de dança e um karaokê futurista num liquidificador de LED em velocidade máxima. O resultado: luzes estroboscópicas piscando em ritmo de infarto cardíaco controlado.

    Suspenso acima do palco tal qual um oráculo luminoso de mau gosto, o telão gigante brilhou à semelhança da testa de um apresentador dos anos 90, suando sob mil refletores e uma quantidade criminosa de carisma enlatado. E, conhecendo Val Ferri e Dellos, aquele brilho só podia ser o prenúncio de algo ainda mais constrangedor.

    Dellos correu para se juntar ao palco com uma câmera profissional pendurada no pescoço, três celulares nas mãos e um drone voando ao seu redor da mesma forma que um mosquito robótico viciado em fofoca. 

    Suas habilidades de captação de imagem tinham evoluído para as de um documentarista de guerra, pronto para flagrar qualquer momento constrangedor que pudesse render visualizações.

    MrRody que já estava no palco, com a calma meticulosa de um técnico de Wi-Fi prestes a puxar o cabo principal só para assistir o colapso em tempo real, ajustou os óculos. 

    E viu Val Ferri também surgir ao seu lado segurando o microfone com a empolgação de alguém que acabou de descobrir que poderia transformar qualquer evento em entretenimento puro, mesmo que fosse um velório.

    — SENHORAS E SENHORES! — gritou Val Ferri, doido pra estrear a frase que ensaiou, com a entrega dramática digna de final de novela das oito — Chegou o momento mais esperado desde que o Compadre Washington gritou ‘sabe de nada, inocente!’ e foi eternizado na história do meme nacional: A COROAÇÃO DOS GUERREIROS SUPREMOS DA POPULARIDADE DIGITAL!

    O silêncio que se seguiu foi tão denso que dava pra ouvir os filtros de Instagram sendo atualizados em tempo real. A plateia, atônita tentava entender se perdeu uma parte da história ou se o apresentador acabou de inventar uma nova categoria de premiação.

    — Não era pra coroar o rei e a rainha da festa? — cochichou alguém no fundo.

    — Isso aí deve ser a versão beta do rei e da rainha da festa. — comentou um rapaz, confuso e digitando no Google ao mesmo tempo.

    — Acho que é o mesmo prêmio, só que com nome de clickbait. — arriscou alguém, com voz baixa e descrente.

    Mas ninguém se mexeu. Todos decidiram continuar assistindo, doidos pra entender se estavam confusos ou apenas ultrapassados.

    — Isso aqui não é apenas uma competição! — continuou Val Ferri — É uma jornada épica através dos dados mais embaraçosos já coletados na história da humanidade digitalizada! Cada concorrente será julgado por sua capacidade de sobreviver à própria existência online!

    Ao lado dele, MrRody limpou a garganta com teatralidade, consultando seu caderninho de bolso com a concentração de um general examinando mapas de guerra. Com um aceno quase coreografado, assumiu o microfone para complementar o anúncio.

    — Conforme meus cálculos baseados em 47 variáveis comportamentais, 23 padrões de interação social e análise completa do histórico de navegação. Eu apresento os principais guerreiros que se destacaram na batalha silenciosa pela supremacia social e que disputam esse ano pelo título de rei e rainha da festa da Illusia.

    A cada nome citado no telão, a confusão deu lugar a um burburinho crescente. Sussurros cortavam o salão, num traçado quase invisível de aflição coletiva. 

    Cada grupo tinha seus próprios favoritos. Nomes como Yeisu, Black Shadow, Dawana, Leodib, Darkness, Moonlich, KamiSlayer, Lxpe, Whalien, entre outros, repetiam-se em vozes abafadas e olhos arregalados. 

    Todos pareciam ter uma teoria ou uma lista mental de quem merecia o trono digital. Havia apostas não ditas, torcidas silenciosas, olhares de esperança. E, embora os murmúrios se espalhassem, Quintus não escutou seu nome nem uma vez sequer. Justamente por isso, a tensão que antecedeu os holofotes foi quase insuportável.

    E instantaneamente o primeiro feixe de luz desceu do teto, em um gesto que parecia partir dos próprios céus apontando o dedo para alguém. A iluminação dourada cortou a penumbra da festa, revelando um camarote elevado que parecia ter sido construído especificamente para pessoas que consideravam o chão um local inadequado para seus pés.

    — GLAUBER! — anunciou Val Ferri com uma reverência exagerada — O Imperador dos Capítulos Infinitos!

    As palmas começaram tímidas, mas logo viraram uma enxurrada de barulho: aplausos, gritos e o nome de Glauber se misturaram num coro ensandecido. 

    Era o favorito óbvio. Em praticamente todas as listas de apostas, ele aparecia com sete chances em cada dez. Ninguém ali tinha coragem de dizer em voz alta, mas todo mundo esperava que aquela premiação fosse para ele.

    Lá no alto, isolado do resto da humanidade por uma barreira de vidro blindado, o jovem sensação degustava champanhe de uma taça de cristal. Ao seu redor, uma mesa repleta de iguarias e serviçais para todos as necessidades e desejos dos anfitriões daquele mundo à parte.

    O telão explodiu em imagens grandiosas apresentando a montagem de apresentação feita por Dellos, nela: Glauber descendo de uma limousine branca mais longa que um trailer, enquanto seguranças de terno preto formavam um cordão humano para protegê-lo da multidão de fãs histéricos.

    Enquanto a transmissão da chegada dele invadia os telões de Illusia, o sistema de som lançou um axé tão envolvente que faz todo mundo parar de fingir que ideologia enche estômago:

    ♪ ♪ ♪ Ei, garoto prodígio, ei, garoto prodígio

    Escrevia tão bem que era um prestígio

    Prefere escrever 10 mil textos ruins que virar mendigo!

    Nem fez faculdade, já tá milionário,

    Vende verso genérico pro proletário! ♪♪♪

    A música era tão certeira que vários alunos que também eram escritores frustrados começaram a chorar lágrimas de reconhecimento puro enquanto queimavam seus manuscritos autorais. Era como se um patriarca do Dao tivesse desistido da iluminação só pra ganhar curtidas: o público quer pulos de nível a cada capítulo, não escrita de verdade.

    — SENHORAS E SENHORES! — continuou — Vindo da Seita Oculta da Produção Fantasma, onde o lema é ‘quem escreve sou eu, mas o nome é dele’, recebo o gênio de 17 ANOS que cultiva roteiristas em cativeiro criativo: MESTRE SUPREMO DA ESCRITA DE MIL MÃOS! 

    Por um instante, a plateia hesitou. O silêncio foi quebrado não por gritos, mas por um murmúrio inquieto que se espalhou feito vírus emocional.

    — Mas… ele escreve mesmo? — arriscou alguém.

    — Claro que escreve! Ele supervisiona! — rebateu outro, aplaudindo de forma nervosa.

    Alguns gritaram ‘LENDÁRIO!’, outros apenas olharam o telão com cara de ‘isso é sério?’. Os aplausos que vieram em seguida pareciam forçados, iguais aos de quem aplaude uma peça sem entender nada, só para não parecer burro.

    Antes que o público conseguisse decidir se devia vaiar, aplaudir ou simplesmente fingir que não entendeu, o telão assumiu o controle da narrativa com a pompa de um culto digital.

    Era a jornada épica, e ligeiramente constrangedora, montada por Dellos: Glauber aos 14, em clima de gênio precoce, rabiscando sua obra-prima Knight of Chaos num caderno espiral, cercado por migalhas de biscoito e frases sem verbo.

    Corte seco. Glauber, o gênio de mil fantasmas, agora aos 16, de moletom furado e cara de quem confundiu remédio para verme com suplemento de criatividade, segurava o celular com mãos trêmulas. 

    Sua outra obra fastfood, Knight of Caô, escrito num rolo de papel higiênico durante idas solitárias ao banheiro da escola, enquanto fingia ser um escritor com QI de pregador de roupa molhado e maturidade de quinta série, acabara de bater 10 mil apoiadores no Panteon. E o pior: o público levava a sério. 

    A plateia, já emocionalmente frágil, oscilava entre a vergonha alheia e a inveja pura.

    — OBSERVEM A TRANSFORMAÇÃO! — gritou Val Ferri, com a voz de quem narra o surgimento de um ditador carismático — De ARTISTA FAMINTO a CEO DA VERGONHA LITERÁRIA! Glauber entendeu cedo que status de culto não paga aluguel.

    Lá no alto, o ‘Lorde dos Capítulos Rápidos’ sorria, em um trono flutuante  feito de boletins 10 e resenhas literárias sobre si mesmo. Recebia massagens nos ombros de ex-professores de redação que agora pediam dicas de enredo, enquanto usava seus contos premiados feito guardanapo, limpando restos de macarrão instantâneo gourmet, servido por um chef francês.

    Aos 17, já estacionava sua Lamborghini na calçada da sede da Illusia, onde mantinha os mais baratos terceirizados da escola sob regime de escravidão, todos usando camisetas com a estampa: ‘Knight of Caô: Capítulo novo em 15 minutos!’

    O público, diante de tamanha afronta ética, reagiu com a única arma possível: a passividade resignada.

    Alguns sentaram-se no chão, aceitando que o mundo é mesmo injusto. Outros ligaram seus próprios celulares e começaram a escrever fanfics de Knight of Caô, tentando desesperadamente pegar carona na fama.

    — ISSO NÃO É LITERATURA! — gritou uma aluna da illusia, antes de ser soterrada por uma chuva de capítulos novos de Knight of Caô produzidos apenas nesse tempo que já durava a festa da Illusia. 

    No camarote em sua própria festa particular, Glauber brindava e assinava um contrato de adaptação para streaming com uma rede desconhecida que prometia pagar em criptomoedas instáveis.

    — É SÓ NEGÓCIO! — gritou ele, fazendo o símbolo do cifrão com os dedos, igual a um mágico do capitalismo e completou — Em breve: Knight of Caô – Versão para colorir, com páginas rasgáveis para absorver lágrimas de haters.

    A segunda luz desceu lembrando os feixes implacáveis usados em interrogatórios, iluminando uma figura que estava abraçada a… uma foto emoldurada de casamento, sussurrando doces palavras para o vidro como se fosse um certificado de ‘não morrerei sozinho’

    — ELE TÁ BEIJANDO UMA FOTO! — gritou alguém da plateia.

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