Capítulo 48 - O beijo que mudou uma festa
A imagem no telão congelou por um instante. A figura que beijava a moldura de casamento estava envolta por sombras, e o ângulo da câmera fazia questão de esconder qualquer traço identificável.
— Seria um aluno do terceiro semestre? — o público murmurava, tentando adivinhar — Um veterano? Um professor? Ou uma fofoca tão cabeluda que exigirá um advogado de plantão?
Mas antes que qualquer revelação ocorresse…
— PÁÁÁÁÁRA! PARA TUDO AGORA! — gritou uma voz, remetendo a João Kléber e seus momentos de tensão extrema — Antes de sabermos quem é o carente misterioso do abraço nupcial… precisamos falar do que realmente importa: os prêmios!
— Porque numa luta pela coroa de Rei e Rainha da Festa da Illusia… — continuou, fazendo uma pausa dramática e encarando a plateia com um sorriso calculado — O que vale não é só o brilho nos olhos, a vergonha alheia ou os likes: é a motivação. E, sejamos honestos, suspiros e inveja não pagam boletos.
Ele então respirou fundo, ajustou o microfone com a solenidade de uma revelação épica, e ergueu o envelope dourado com as duas mãos, na mesma reverência de uma coroação papal.
— Após análise completa dos dados comportamentais, padrões de interação social e capacidade de sobrevivência em ambiente hostil, que neste caso é a própria existência escolar… Apresento os prêmios que farão estes guerreiros se sentirem recompensados por terem sobrevivido à própria personalidade.
Val Ferri desembrulhou o papel, quase em oração, diante de um texto sagrado, não por causa do brilho espalhafatoso do envelope, mas porque o que havia dentro prometia mudar vidas. Ou pelo menos o limite do cartão de crédito.
— O vencedor receberá… — anunciou — Cinquenta mil reais em dinheiro, cortesia do nosso magnânimo patrocinador Crimson, que acredita firmemente que o dinheiro não traz felicidade, mas compra tempo livre suficiente para você ir procurá-la com calma… ou pelo menos financiar um romance com você mesmo!
A plateia explodiu em gritos de desejo, inveja e cálculos mentais sobre o que fariam com cinquenta mil reais. Alguns já estavam planejando suas aposentadorias precoces, outros pensavam em investimentos questionáveis.
Quintus, delirando com o valor, considerou comprar uma ilha e declarar independência da CLT, esse feudo moderno que mantém todos eternamente pobres.
Mas logo concluiu que seria mais estratégico investir num computador gamer, um microfone de respeito e um canal no YouTube, onde poderia narrar brigas de grupo sob o tom épico reservado às guerras medievais, com trilha sonora de Vingadores e comentários dignos de final de Copa do Mundo.
— Além disso! — continuou Val Ferri interrompendo os sonhos de todos — Viagem de formatura para a praia, com hospedagem em resort cinco estrelas, onde vocês poderão ver seus colegas em roupas de banho, criando memórias prontas para virar arma de chantagem emocional pelos próximos vinte anos!
A perspectiva de ver colegas de classe em situações potencialmente constrangedoras em trajes de praia fez metade da plateia fantasiar sobre câmeras ocultas e a outra metade considerar dietas emergenciais.
— E não para por aí! — gritou Val Ferri, sua empolgação atingindo níveis perigosos — Aprovação automática e bolsa de estudos integral para a Faculdade Illusia, que abrirá sua primeira turma no próximo ano, onde vocês poderão continuar cometendo os mesmos erros, mas com diploma!
A promessa de educação gratuita fez alguns estudantes chorarem de emoção, enquanto outros começaram a calcular quantos anos de terapia seriam necessários para se recuperar da experiência universitária.
— E por último, mas não menos traumático. — concluiu Val Ferri — Consultoria personalizada com o professor MrRody, que analisará todos os seus dados pessoais e oferecerá sugestões para melhoramento pessoal total, incluindo aspectos que vocês nem sabiam que eram problemáticos!
MrRody acenou com a prancheta, seus óculos brilhando com a promessa de transformar vidas através de análise de dados invasiva e recomendações não solicitadas.
O feixe voltou igual a um dedo divino apontando o inevitável. No telão, a imagem parou de ser apenas um vídeo gravado e passou a ser transmissão ao vivo da plateia.
A figura permanecia grudada à moldura de casamento, na tentativa silenciosa de extrair carinho do vidro. E, desta vez, negar já não era mais possível: todo mundo viu quem era. Com nitidez. Com vergonha alheia em HD.
— É ele… — disse um.
— ISSO É CARÊNCIA? — perguntou alguém da plateia.
— Caraca, que desespero! — riu outro.
Alheio a repercussão do telespectadores, o sistema de som da festa explodiu com uma música sertaneja que fez todo mundo parar de fingir que sabia dançar:
♪♪♪ Ela manda em casa, eu finjo que comando
Ela fala ‘pula’, eu pergunto ‘quão alto?’
Sou macho na rua, mas em casa sou cachorro
Latindo baixinho pedindo socorro… ♪♪♪
A música era tão certeira que várias pessoas na festa começaram a chorar, não de emoção, mas de reconhecimento. Era uma experiência que soava exatamente com o hino nacional de todos os homens casados, uma obra-prima que resumia décadas de sofrimento conjugal em quatro versos devastadores.
— SENHORAS E SENHORES! — Val Ferri surgiu no palco tal qual um apresentador de MMA que descobriu que drama matrimonial rendia mais audiência que pancadaria — Diretamente do octógono conjugal, onde sobreviver um dia inteiro sem levar bronca já é considerado vitória épica… Apresento-lhes o guerreiro que enfrentou o adversário mais implacável de todos os tempos: UMA ESPOSA COM OPINIÃO PRÓPRIA!
— UUUUUHHHHH! — a plateia fez um coro de reconhecimento e terror.
O telão explodiu em efeitos visuais dourados que fariam qualquer manhwa de cultivo morrer de inveja. Dragões holográficos dançavam ao redor de palavras flamejantes: ‘HASSINI, O DOMINADO – MESTRE SUPREMO DA ARTE MARCIAL DO ‘SIM, QUERIDA!’
— HASSINI! HASSINI! HASSINI! — a plateia começou a cantar o nome num tom que lembrava um hino fúnebre
O jovem servo do lar ficou estático, reagindo como quem é puxado para o palco sem aviso.Os olhos pararam, a alma tentou sair pela nuca, e tudo isso foi transmitido ao vivo, em tempo real, para o delírio da plateia.
O fone bluetooth colado na sua orelha piscava, com a urgência de um aviso crítico, enquanto a tela do celular mostrava sua localização em tempo real, transmitida diretamente para ‘sua esposa no WhatsApp’, também conhecida por ser o centro de comando doméstico.
— Amor, tem uma mulher te olhando. — a voz cortou através do fone com a precisão de uma lâmina celestial que atravessa dimensões e pela tecnologia de captação desenvolvida por MrRody também aparecia no telão — Vai mais para a esquerda, onde só tem homem. E me mostra quem está do seu lado agora.
O público explodiu em gargalhadas ao ouvir a voz da esposa pelos alto-falantes.
Hassini obedeceu com a disciplina de um soldado treinado em campos de batalha conjugais. Se moveu pela festa com a coordenação de um robô mal programado, esbarrando em três pessoas, derrubando dois copos e quase tropeçando numa mesa, tudo enquanto segurava o celular numa posição que permitisse à esposa fazer uma auditoria visual completa do ambiente.
— OBSERVEM, MORTAIS! — continuou Val Ferri, gesticulando tal qual um mestre de cerimônias que descobriu o segredo do universo — O INVENCÍVEL HASSINI desenvolveu ao longo dos anos de casamento a técnica ancestral mais poderosa conhecida pela humanidade: “FINGIR QUE MANDA EM CASA ENQUANTO OBEDECE ORDENS REMOTAS”!
O telão, sem pedir permissão, começou a transmitir momentos da vida conjugal de Hassini, garimpados por MrRody em vídeos ocultos, escondidos entre jogos piratas e arquivos renomeados como “projeto_ciência2_FINAL_SÉRIO_FINALMESMO.docx”. Cada cena era narrada com a solenidade de um sábio milenar descrevendo a queda de uma seita lendária.
A primeira cena mostrava o jovem capacho no altar, com a mesma aura de um protagonista de romance, enquanto uma voz narrativa carregada de drama ancestral declamava:
— Naquele dia glorioso, sob o olhar de parentes constrangidos e amigos que já previam o desfecho, nascia não apenas um marido… mas um soldado. Um soldado de uma guerra silenciosa que ele não sabia que já havia perdido antes mesmo de dizer ‘aceito’.
A cena seguinte o mostrava no supermercado, três meses depois do casamento, calculando o preço de cada item com a intensidade sobrenatural de alguém que decodifica técnicas de cultivo milenares.
Seus olhos se moviam pelas prateleiras à semelhaça de um scanners de precisão militar, cada produto analisado sob a ótica implacável de: ‘minha esposa vai me matar se eu comprar isso’.
O celular tocou no meio da sua análise estratégica de macarrão instantâneo versus dignidade pessoal.
— MACARRÃO INSTANTÂNEO DE NOVO?! — a voz da esposa ecoou através do telefone, com a fúria de um deus irritado com a humanidade — VOCÊ É MAIS INÚTIL QUE MANUAL DE INSTRUÇÕES EM CHINÊS!
Na tela, as câmeras capturaram o exato momento em que Hassini percebeu que romance não se alimenta de amor: se alimenta de dinheiro que ele não tinha. Seus ombros curvaram, refletindo o fardo histórico das expectativas femininas não cumpridas.
— Sim, amor… você está certa… — ele sussurrou para o celular, com lágrimas nos olhos e uma expressão que dizia ‘por que ninguém me avisou que casamento era um contrato vitalício sem cláusula de rescisão?’
— AAAAWWWW! — a plateia fez em coro, numa mistura de compaixão e diversão.
— COITADINHO! — gritou uma senhora.
— ELE TÁ CHORANDO! — apontou outra.
De volta à festa, agora em tempo real, o fone de Hassini crepitou novamente com a autoridade de uma central de comando militar.
— VOCÊ ME AMA? — a pergunta veio carregada de mais armadilhas que um campo minado emocional.
— Amo, amor… — o jovem pau mandado respondeu com a convicção de quem sabe que a resposta errada resulta em consequências piores que a morte.
— PROVE!
— Como, amor?
— CHAME AQUELA MULHER DE BARAGANGA! A QUE TÁ TE OLHANDO!
Hassini se virou lentamente, num gesto que parecia doloroso. Seus olhos encontraram uma senhora de aproximadamente 70 anos que trabalhava na limpeza do colégio e olhava mais com a ternura aflita de uma mãe diante do sofrimento de um filho.
Ela usava um vestido floral modesto e segurava uma bolsinha que provavelmente guardava balas de hortelã e conselhos não solicitados.
— B-baraganga? — ele sussurrou, com a voz de quem acabou de descobrir que teria que pular de um penhasco para provar amor verdadeiro.
A senhora parou, virou-se com a velocidade de quem já enfrentou duas guerras mundiais, três ditaduras e quatro genros insuportáveis. Seus olhos se estreitaram, com a nitidez cortante de lâminas afiadas.
— O QUE VOCÊ FALOU, MOLEQUE?
A bengala dela se materializou do nada, como se fosse uma arma mágica invocada pela indignação pura. CRACK! Um golpe certeiro que mandou Hassini voar dois metros através do ar, aterrissando de cara no chão com a elegância de um saco de batatas jogado de um prédio.
A plateia explodiu em aplausos e gargalhadas.
— VOOOOOOU! — gritaram.
— KNOCKOUT! — berrou alguém.
— VOVÓ BRUTALITY! — riu outro.
— Satisfeita, amor? — ele murmurou ainda tonto e de bruços no chão, cuspe e sangue formando uma poça artística ao redor da sua cabeça.
— AINDA TÁ PERGUNTANDO SE ELA TÁ SATISFEITA! — gargalhou a plateia.
— PRIORIDADES! — riu outro.
— AMOR VERDADEIRO! — berrou alguém, ironicamente.
— SIM! VOCÊ É O MELHOR MARIDO DO MUNDO! — a esposa gritou feliz através do fone, com o entusiasmo de quem acabou de ganhar na loteria — Agora pensei em outra coisa… GRITE QUE VOCÊ É GAY!
O silêncio que se seguiu foi tão profundo que dava para ouvir as esperanças de Hassini se desfazendo em tempo real.
— Não dá, amor…
— VOCÊ ME AMA? TEM MUITAS MULHERES TE OLHANDO! DIZ LOGO OU VOCÊ NÃO ME AMA DE VERDADE!
— Mas ninguém vai acreditar…
— ENTÃO VOCÊ NÃO ME AMA! NÃO ESTÁ SE ESFORÇANDO! ESTÁ PENSANDO NAS OUTRAS!
— Mas o que eu faço para provar?
— ENTÃO!?… BEIJE AQUELE SEGURANÇA NEGÃO E AÍ QUE VOU ACREDITAR QUE VOCÊ ME AMA E FICAREI TRANQUILA COM ESSAS SIRIGAITAS DESTA FESTA!
Os olhos de Hassini seguiram a direção indicada e encontraram um homem que parecia ter sido esculpido pelos deuses da intimidação.
Dois metros de altura, músculos que faziam outros músculos se sentirem inadequados, uma expressão facial que dizia claramente ‘eu como pessoas iguais a você no café da manhã’ e que para sorte ou azar de Hassini nem estava prestando atenção no telão.
— Não dá, amor… não posso beijar um homem…
— NÃO DISSE QUE FARIA TUDO POR MIM?
— OBSERVEM A TÉCNICA SUPREMA! — gritou Val Ferri, quase engasgando de tanto rir — SERÁ QUE O MESTRE HASSINI EXECUTARÁ AGORA SUA HABILIDADE SECRETA MAIS PODEROSA: “DESTRUIÇÃO TOTAL DA PRÓPRIA DIGNIDADE EM NOME DO AMOR VERDADEIRO”?
O jovem capacho se levantou do chão tal qual um zumbi ressuscitado pela determinação romântica. Cada passo em direção ao segurança era uma pequena morte, cada metro percorrido um pedaço da sua masculinidade sendo enterrado prematuramente.
O segurança o viu se aproximando e franziu a testa com a intensidade de quem está prestes a resolver um problema matemático complexo ou esmagar um inseto irritante.
— Desculpa, amigo… — Hassini sussurrou, com a voz de quem está prestes a cometer um crime contra a natureza — É complicado… minha esposa…
E então, impulsionado por um impulso milenar conhecido como ‘instinto de autopreservação conjugal’, ele avançou, segurou a cabeça do segurança com as duas mãos e tascou um selinho.
O segurança, que só esperava confirmar alguma localização idiota, congelou com os olhos arregalados, na expressão típica de quem é flagrado em um tutorial indesejado.
— ELEEEEE FEEEEEZ! — gritou a plateia em êxtase total.
— BEIJOU! BEIJOU! BEIJOU! — cantaram em coro.
— HISTÓRICO! — berrou alguém.
— LENDÁRIO! — gritou outro.
— ÉPICO! — completou um terceiro.
O tempo parou. O universo inteiro pareceu congelar para processar o que acabara de acontecer. O segurança ficou imóvel, com o olhar travado de alguém cujo cérebro acabou de reiniciar por falha crítica.
Depois, lentamente, muito lentamente, ele virou a cabeça para Hassini. Seus olhos encontraram os olhos aterrorizados do homem casado, e uma expressão indescritível se formou no seu rosto.
— CORRE! — gritou alguém na multidão.
— AAAAAAHHHHH! — o jovem cachorrinho da esposa saiu correndo pela festa com o desespero de quem foge de todos os demônios do inferno juntos, os braços balançando descontroladamente, os pés mal tocando o chão.
Atrás dele, o segurança corria gritando palavras que não poderiam ser repetidas nem em velório de político corrupto. A perseguição atravessou três salões, derrubou duas mesas de buffet e causou mais destruição que furacão em cidade litorânea.
— VITÓRIA PERFEITA! — Anunciou Val Ferri, aplaudindo com o entusiasmo frenético de um louco — HASSINI EXECUTOU COM MAESTRIA ABSOLUTA A TÉCNICA FINAL: “CORRER MAIS RÁPIDO QUE A PRÓPRIA VERGONHA”!
A plateia explodiu em aplausos, vaias, assobios e gargalhadas:
— HASSINI! HASSINI! HASSINI! — cantaram em coro.
— REI DA FESTA! — gritaram.
— LENDA VIVA! — berrou alguém.
— HERÓI NACIONAL! — riu outro.
— MITO ETERNO! — completaram em coro triunfante.
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