Capítulo 53 - A chinela é mais forte que Deus
A agulha penetrou em seu braço com a delicadeza de uma tia do bandejão servindo carne de panela na segunda-feira, e Quintus sentiu aquela familiar sensação de flutuação que antecedia seus encontros involuntários com a inconsciência.
Os dois enfermeiros-armários lembravam bandidos protegidos por verba pública: musculosos, travados e com a atuação de uma porta trancada.
— Dosagem perfeita. — murmurou Dr. Zaratustra, observando enquanto Quintus deslizava para o mundo dos sonhos — Anote aí: o anestésico parece funcionar à semelhança de uma espécie de ‘reset’ temporário. Pode ser que esteja impedindo as outras personalidades de se manifestarem, ou talvez esteja criando um ambiente propício para elas emergirem. A ciência, minha cara, é uma dança delicada entre o conhecimento e o chute educado.
A mulher da prancheta suspirou, fazendo anotações com a serenidade de quem já ouviu mil vezes as teorias do mesmo tio excêntrico, que acredita que o celular está espionando seus pensamentos, seja pelo Elon Musk se for um modelo caro, seja pelo governo chinês se for um importado genérico.
Os olhos da mulher refletiam a luz da van enquanto ela rabiscava observações que, provavelmente, um dia serviriam de evidência em um tribunal de ética médica.
— Doutor!? — disse ela, sem levantar os olhos da prancheta — O senhor tem certeza de que essas… experiências estão dentro dos parâmetros legais? Porque tenho a impressão de que estamos operando numa zona cinzenta que mais parece um buraco negro jurídico.
— Minha querida. — Dr. Zaratustra ajustou o relógio de pulso com o cuidado de quem manuseia uma bomba relógio — A ciência sempre operou nas fronteiras do aceitável. Galileu foi perseguido por dizer que a Terra girava em torno do Sol. Darwin foi criticado por sugerir que descendemos de macacos. E eu serei lembrado como o homem que provou que a reencarnação é real e que múltiplas almas podem habitar um mesmo corpo. Ou como um charlatão milionário com complexo de Deus. Ambas as possibilidades me parecem igualmente fascinantes.
Enquanto o eco da voz do doutor desaparecia no ar, tudo ao redor de Quintus desbotou, lembrando um cenário sendo desmontado nos bastidores de uma peça barata. A realidade desligou-se sem aviso, sem corte seco, sem escurecimento gradual, apenas um vácuo morno, em um silêncio que sugeria que o universo havia reiniciado.
Quando voltou a si, era o tipo de confusão que só se tem ao cochilar no meio de uma palestra chata e acordando horas depois em casa, com gosto de mofo na boca e a estranha sensação de que alguém atualizou seu cérebro sem pedir permissão. Tudo no quarto parecia no lugar… exceto ele mesmo.
Quintus acordou com aquela sensação familiar de que sua vida havia sido reorganizada por um furacão enquanto ele dormia, e que agora teria que lidar com os destroços sem manual de instruções.
A primeira coisa que notou foi que estava em sua cama, o que já era suspeito o suficiente, considerando que sua última memória envolvia estar sendo arrastado por uma enchente para fora de uma festa escolar feito um boneco de pano em uma máquina de lavar gigante.
A segunda coisa que notou foi que seu quarto estava ocupado por toda sua família, o que ativou imediatamente seus instintos de sobrevivência. Na hierarquia de situações perigosas da vida de Quintus, ‘família reunida’ ficava logo abaixo de ‘Dr. Zaratustra com agulhas’ e bem acima de ‘encontrar a mãe mexendo em suas coisas’.
Glorizelda estava sentada na cadeira da escrivaninha com a postura de uma professora prestes a aplicar uma prova surpresa numa turma que claramente colou no simulado.
Paulo Costa permanecia encostado na parede, com a postura curvada de sempre, e seus irmãos estavam espalhados pelo quarto tal qual um júri pronto para proferir uma sentença. O ar estava tão carregado de tensão que Quintus teve certeza de que, se alguém acendesse um cigarro, o quarto inteiro explodiria.
— Ah, olha só quem decidiu se juntar aos vivos! — exclamou Sextus com um sorriso que não chegava nem perto dos olhos — O náufrago da festa aquática voltou para terra firme!
— Filho! — a voz de Glorizelda atravessou o quarto com a precisão de uma chinelada em criança arteira — Antes de você abrir essa boca para dar alguma desculpa esfarrapada, eu quero que você ouça bem o que eu vou falar, porque não vou repetir nem vou aceitar choradeira.
O jovem Maximus tentou se sentar na cama, mas foi atingido por uma onda de tontura que o fez repensar suas capacidades motoras básicas.
Sua mãe estendeu algo em sua direção, e ele levou uns bons segundos com cara de quem acabou de acordar no ônibus errado antes de perceber que era seu celular, que deveria estar em algum lugar no fundo de uma delegacia depois do incidente com a vitrine da loja.
— Seu celular. — disse ela, balançando o aparelho com a intensidade de quem tem provas incontestáveis — Que você perdeu quando decidiu que era uma boa ideia quebrar vidro de loja com seu amigo. E antes que você abra a boca para dar alguma explicação mirabolante, deixa eu te contar uma coisa: essa é a segunda vez que o Dr. Zaratustra salva sua pele da polícia e de uma viagem direta para o FEBEM.
— Mãe, eu posso explicar… — começou Quintus, mas foi cortado por um gesto da mão de Glorizelda que teria encerrado uma assembleia de condomínio e paralisado até juiz de programa de auditório
— Explicar? EXPLICAR?! — ela se levantou da cadeira — Esse homem é um anjo que Deus mandou para nossa família! Um santo! E você quer justificar o injustificável, me deixando em frangalhos, imaginando que meu filho tinha virado estatística de jornal policial!
Paulo Costa, que até então estava mais imóvel que um enfeite de canto de sala, assentiu vigorosamente, aproveitando para demonstrar sua concordância com a esposa sem correr o risco de falar alguma coisa e acabar sendo incluído na bronca.
Glorizelda então extraiu mais dois objetos da bolsa com o requinte dramático de uma mãe abrindo boletim escolar em reunião pedagógica, já sentindo de longe o cheiro da encrenca.
Um deles era um relógio digital de formato familiar para Quintus. O outro, um pequeno ponto de ouvido que brilhava, com a discrição de um parceiro oculto num crime mal planejado.
— Isso aqui… — disse ela, estendendo os equipamentos para seu filho — É o que vai garantir que você não desapareça mais da face da Terra sem avisar. Equipamentos de monitoramento e comunicação, cortesia do Dr. Zaratustra e da sua preocupação genuína com seu bem-estar.
Quintus olhou para os objetos com a hesitação típica de quem descobre que a feijoada é vegana, mas já pegou o prato cheio e tá sem saída social.
Por experiências passadas, ele sabia exatamente o que aquilo significava: o fim oficial de qualquer privacidade que ainda restasse em sua vida, transformando-o em uma versão adolescente de um reality show onde os participantes não podiam desistir.
— Mãe, eu não acho que seja necessário… — Tentou argumentar, mas o olhar de Glorizelda caiu sobre ele com tanta força que faria até um motoboy furando sinal voltar para casa refletindo sobre suas escolhas.
— PEGA ESSES EQUIPAMENTOS AGORA. — sua voz subiu uma oitava e ganhou um timbre que fez todos os presentes no quarto instintivamente se afastarem um passo — E não se discute! Se você tirar ou não usar esses equipamentos, vai ver de verdade o que é sua mãe brava!
O silêncio que se seguiu foi tão profundo que Quintus teve certeza de ter ouvido um grilo cantando em algum lugar do bairro.
Seus irmãos trocaram olhares que variavam entre solidariedade e terror puro, Paulo Costa pareceu encolher ainda mais, tentando se fundir com a parede, e até mesmo o ar no quarto pareceu ficar mais rarefeito.
— Jesus Cristo!! — murmurou Septimus, ajustando os óculos nervosamente — Ela usou a voz da execução. Cara, pega logo essa parada antes que ela traga a chinela.
— É sério, mano. — concordou Octavius, mastigando o chiclete com menos entusiasmo — Quando ela fala assim, é porque a situação passou do ponto de ‘bronca normal’ para ‘perigo de vida real’.
— Uma vez ela usou essa voz comigo. — sussurrou Nonus, com o ar confessional de veterano de batalhas emocionais — E eu passei três semanas tendo pesadelos onde ela me perseguia com um rolo de macarrão gigante.
Decimus, sempre prático, apenas apontou para os equipamentos e fez um gesto de ‘pega logo isso ou nós todos vamos morrer aqui’.
Quintus, percebendo que havia chegado ao ponto de não retorno e que resistir seria equivalente a tentar argumentar com um furacão, estendeu a mão trêmula e pegou os equipamentos. O relógio parecia pesar mais do que deveria, um prenúncio palpável da vigilância constante que estava por vir.
— Muito bem. — disse Glorizelda, recuperando instantaneamente seu tom normal — Agora presta atenção: esse relógio você não tira nem se Lula, o Papa e a Anitta aparecerem juntos, todos pedindo por favor com um documento autenticado em cartório. O ponto de ouvido só sai na hora de dormir, e quando sair você aperta o botão vermelho do relógio avisando, e quando acordar você coloca de volta e aperta o botão de novo. Entendeu ou preciso desenhar?
Quintus colocou o relógio no pulso com a mesma animação de quem descobre que o churrasco é só de linguiça e ainda tem que lavar a louça no final, e encaixou o ponto de ouvido com a tensão de quem acorda de madrugada, vê o chinelo virado e tenta desvirar sem acender a luz nem matar a mãe com pensamento. Imediatamente, uma voz robotizada sussurrou em seu ouvido:
“Sistema ativado. Monitoramento iniciado. Tenha um dia produtivo.”
“Produtivo!?” — pensou Quintus — “como se minha vida fosse uma empresa e eu fosse o funcionário mais problemático do departamento. Pelo menos não é a voz do Zaratustra.”
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