Índice de Capítulo

    O ambiente no quarto havia mudado sutilmente. O que começara como um interrogatório focado em Quintus estava se transformando em uma sessão de terapia familiar não solicitada, onde cada membro parecia ter suas próprias questões não resolvidas borbulhando à superfície.

    Com o silêncio prolongado, Paulo Costa sentiu a obrigação moral de dizer algo. Talvez para ajudar. Talvez apenas para preencher o vácuo desconfortável que pairava no ar.

    — Você sabia que boleto do banco chega mais rápido que boletim da escola? — disse ele, aproveitando a brecha antes que Glorizelda retomasse o controle do universo.

    — É porque o banco acredita em mim. — respondeu Quintus, com o reflexo automático de quem já usou essa piada antes para sair de conversas desconfortáveis.

    — O banco acredita que você vai morrer devendo — rebateu a sua mãe, com a frieza de um extrato bancário — E a escola? Mandou flores e perguntou se você ao menos lembra que está desempregado.

    — Mano. — disse Nonus, pasmo — Você tirou 3 em educação física. Educação. Física! Isso é tipo fracassar em respirar.

    — Educação física é muito mais complexo do que parece! — protestou Quintus — Tem regras, redes e aquelas bolas voadoras que caçam a gente……

    — E você conseguiu ser inimigo de todas elas. — comentou Decimus, com o tom de quem já desistiu.

    — Senta aqui, meu filho — disse Glorizelda, batendo na cama ao lado de seu filho — Vou te dar um conselho de mãe.

    — Ih… lá vem trauma com afeto. — disparou o jovem Maximus, sem pensar, no reflexo automático de quem treinou o sarcasmo desde a infância.

    — Se conselho fosse bom… — disse, olhando para Quintus pela primeira vez feito quem avalia um item com defeito — Eu tinha vendido você num bazar beneficente e comprado um aspirador de pó que dá menos trabalho e ainda faz barulho só quando é útil.

    — A gente tava milionário. — disse Paulo Costa, baixinho, sem esperar resposta e balançando a cabeça com o cansaço típico de quem já financiou mais expectativas do que devia, e agora vive só de parcelas emocionais atrasadas.

    Paulo mal terminou a frase e Sextus já saltou da cadeira com o brilho nos olhos de quem cheirou a oportunidade de expor mais um fracasso do irmão.

    — Falando em conselho… — disse, com empolgação criminosa — Vamos relembrar sua última entrevista de emprego? Aquela foi de Oscar.

    Um dos irmãos, claro, já tinha puxado o celular para colocar o vídeo da entrevista de Quintus pela enésima vez, com o mesmo entusiasmo reservado aos clássicos do humor involuntário.

    Afinal, hoje em dia, até humilhação virou conteúdo familiar graças à nova era das entrevistas de emprego. As empresas, que antes excluíam ineficiência com discrição, agora fazem isso com iluminação profissional, trilha sonora e transmissão ao vivo, por ordem judicial e medo de virar meme. 

    Resultado: toda a família viu a tragédia ao vivo e em HD. E no fim, contrataram um cara com nome neutro e testículo certificado para evitar riscos. Ou evitando contratar mulheres, imaginando que traziam no currículo uma ameaça jurídica embutida.

    — Desliga isso, todo mundo aqui já sabe cada fala de cor e já vimos vezes suficientes pra considerar tortura psicológica — interrompeu Glorizelda antes que a primeira fala da transmissão ecoasse.

    — Aquela entrevista ainda rende, hein? — animou-se Paulo Costa, na empolgação típica de quem vai contar uma anedota favorita.

    — Foi um espetáculo de horror. — respondeu Quintus, já sabendo que estava caindo em uma armadilha e que, por tradição familiar, estava prestes a ouvir sua própria derrota, ser servida em forma de espetáculo.

    — O cara perguntou onde ele se via em cinco anos — zombou Decimus — E o gênio travou tanto que parecia esperar que algum espírito iluminado baixasse ali e respondesse por ele.

    — CHEGA! — trovejou Glorizelda de repente — SILÊNCIO TOTAL!

    O quarto ficou tão quieto que dava para ouvir a respiração de todo mundo e o barulho da geladeira três cômodos adiante.

    — Vocês! — ela apontou para cada um dos filhos com o dedo em riste — A partir de AGORA, acabou a graça! Não quero mais NENHUM de vocês fazendo piada, rindo, comentando ou sequer SUSPIRANDO sobre os problemas de saúde do seu irmão!

    Os olhos dela faiscavam com aquela intensidade que só mães possuem quando decidem que a brincadeira acabou. 

    — As perda de memória, os comportamentos estranhos, TUDO que aconteceu no passado — ela gesticulou dramaticamente — É assunto encerrado! Proibido mencionar! Terminado! Finite! The end! Se eu escutar UMA piadinha, UMA risadinha, UM comentário malicioso, vocês vão conhecer um lado meu que nem eu sabia que existia!

    — Mas mãe… — começou Octavius, corajoso o suficiente para tentar argumentar.

    — MAS NADA! — ela interrompeu — Sextus! — apontou para o filho — Você que começou essa palhaçada, vai ser o primeiro a aprender! Nonus! Octavius! Septimus! Decimus! — ela foi apontando para cada um — Vocês acham que problemas de saúde mental são piada? Acham que é entretenimento familiar?

    Todos balançaram a cabeça freneticamente em negação, parecendo alunos de primeira série sendo repreendidos pela diretora.

    — O Dr. Zaratustra, que é um médico renomado, não um palhaço de circo, vai ajudar no tratamento do seu irmão! — ela continuou, inflando o peito com orgulho — Com o tratamento adequado, essas preocupações e problemas vão ser coisa do passado! Entenderam?

    — Sim, mãe — responderam em coro, igual a um coral desafinado de arrependimento.

    — EU NÃO OUVI! — ela colocou a mão em concha no ouvido — Vocês entenderam?

    — SIM, MÃE! — gritaram todos, incluindo Paulo Costa que praticamente saltou da cadeira no susto.

    — Ótimo! — ela cruzou os braços, satisfeita com o efeito — Agora que estabeleci as regras da casa civilizada…

    Glorizelda se virou para Quintus, e por um momento seu rosto amoleceu, assumindo uma expressão quase maternal.

    — Meu filho! — ela se sentou na beira da cama, com o cuidado de quem vai revelar um segredo de família guardado há anos — tem uma coisa que eu nunca conversei diretamente com você. E olha que já passou da hora, né?

    — O que é, mãe? — perguntou, com o instinto de sobrevivência de quem já sabia que aquele tom só anunciava tragédia. 

    — Vê bem… — ela respirou fundo, num gesto tenso de quem guarda culpas antigas — Como eram só lapsos de memória, mais leves, a gente preferiu deixar você tirar suas próprias conclusões, inventar suas teorias malucas sobre… bem, reencarnação, possessão, viagem no tempo, sei lá.

    — Mas a verdade é que… — continuou Glorizelda — A gente sempre soube que você teve esses problemas antes. Pelo menos três vezes que a gente tem conhecimento, né Paulo?

    Paulo Costa assentiu vigorosamente.

    — Três vezes você ficou… diferente. Como se estivesse possuído, sabe? Você não sabe disso — ela olhou significativamente para os outros filhos — porque é segredo de família. Quase internamos você uma vez, mas aguentamos tudo como família unida, e sempre passou.

    — Três… vezes? — Quintus repetiu, pasmo.

    — A primeira vez você tinha seis anos e passou três dias convencido de que era o Cérbero, o cão de três cabeças da mitologia grega.

    — Três cabeças, três latidos diferentes e três potinhos de ração improvisada com biscoito e leite — completou Paulo Costa, nostálgico e esquecendo momentaneamente do medo da esposa — Ele não deixava ninguém entrar em casa. Disse que estava protegendo a entrada do submundo.

    — A dona Neide não conseguiu entregar o bolo de fubá e ficou convencida de que tínhamos um cachorro demoníaco no portão!

    — Pelo menos o Quintus sempre esteve alinhado com as tendências — comentou Nonus — Hoje em dia isso tem nome bonito: comportamento therian. Só falta criar perfil no aplicativo de pets e dar match com a Lassie.

    — Nonus! — Glorizelda o repreendeu — Você não podia falar, lembra?

    — Desculpa, mãe, mas aquilo foi histórico! — ele se defendeu.

    Sextus mordeu o lábio para não rir, lembrando das regras recém-estabelecidas.

    — A segunda vez — continuou ela — você tinha nove anos e passou uma semana inteira convencido de que era uma princesa medieval chamada Lady Quintessa. Exigiu que a gente chamasse você de ‘Vossa Alteza’, só usava lençol, transformado em vestido infantil, e construiu um castelo de papelão no quintal.

    — Ele chegou a decretar que… o pai era o bobo da corte! — completou Decimus, se controlando para não gargalhar.

    — E a terceira vez… — Glorizelda assumiu o tom solene — Foi ano passado. Você passou dez dias achando que era um monge tibetano reencarnado chamado Lama Quintananda. Só comia arroz branco, meditava no banheiro por horas e tentou converter a família inteira ao budismo.

    — Ele chegou a organizar sessões de “purificação espiritual” no quintal! — Paulo Costa explodiu em risadas — Com incenso de citronela para espantar mosquito!

    — E construiu um altar para Buda usando a estatueta da Hebe Camargo! — completou Nonus, não resistindo.

    Todo mundo olhou para Glorizelda, esperando a explosão, mas ela suspirou resignada:

    — Tá bom, tá bom… eram tempos mais simples. Pelo menos dessa vez você não tentou nos converter para nada, né, filho?

    Quintus estava processando tudo aquilo – três episódios que ele não lembrava, uma família que guardava segredos, e a sensação de que sua vida era mais estranha do que imaginava. Mas algo no tom da mãe indicava que a conversa estava longe de terminar.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota