Capítulo 56 - Os quatro desafios para Quintus
Quintus estava boquiaberto, tentando processar a informação de que aparentemente sua vida era uma coletânea de surtos psicóticos disfarçados de comédia familiar.
— E vocês… nunca me contaram isso? — perguntou, ainda atordoado.
— Filho — Glorizelda segurou suas mãos com carinho genuíno — A gente sempre esperou que fosse passar. E sempre passou. Você voltava ao normal, não lembrava de nada, e a vida seguia. Mas agora, com o Dr. Zaratustra e o tratamento adequado, isso vai ser coisa do passado de uma vez por todas.
Quintus continuava olhando para a mãe, tal qual quem tenta assimilar o enredo de uma série que começou no episódio 4. Entre surtos mitológicos, castelos de papelão e monges no banheiro, ele já não sabia se estava num drama médico ou numa sitcom espiritual.
Glorizelda ainda segurava suas mãos, mas o tom havia mudado. Ela respirou fundo, pesando cada palavra antes de libertá-la.
— E é por isso que estamos tendo essa conversa. Você está crescendo, meu filho. E em algum momento vai sair de casa. Só que tem ideia de quanto custa aluguel?
— Claro que tenho! — respondeu Quintus com uma confiança que não sentia — Já vi vídeo no TikTok sobre isso.
No momento em que as palavras saíram de sua boca, o jovem Maximus soube que havia cometido um erro fatal. Citar TikTok como fonte de conhecimento para sua família era semelhante a citar horóscopo em uma tese de doutorado.
— TikTok? — repetiu Glorizelda, com o desprezo de quem ouve um palavrão estrangeiro.
— Ele acha que vai pagar aluguel com dancinha e tutorial de simpatia com sal grosso e coxinha velha enterrada no quintal! — disse Sextus, encenando passos de uma coreografia tão desconcertante que poderia ser usada feito método anticoncepcional, e rindo alto, o que foi o equivalente a assinar sua própria sentença de castigo.
“Explicar que era piada ia ser pior. Eles já tinham decidido que TikTok era uma seita maligna e que eu tava sendo possuído por dancinhas. Melhor calar a boca e aceitar o sermão.” — pensou Quintus, já vendo a cena da mãe dizendo que, no tempo dela, tudo se resolvia com currículo impresso e sola de sapato.
Era igual a se estivessem passando o bastão de um revezamento de julgamentos. Quando Glorizelda parou para respirar, Paulo Costa já estava posicionado na pista, pronto para a sua parte na corrida de críticas.
— E já que estamos fazendo a lista: você dorme demais! Parece que tá treinando pra virar colchão. — disse Paulo Costa, aproveitando que ainda estavam no clima das críticas construtivas — Já pensou em acordar antes das dez da manhã? Como uma pessoa normal?
— Eu tentei. — defendeu-se Quintus, num tom automático de quem já usou essa justificativa outras vinte vezes — Mas meu despertador e eu estamos em fase de mediação. Ele me respeita, igual a um ser noturno.
— Que ser noturno o quê? — explodiu Glorizelda — Você não é morcego! E se fosse, seria o único morcego do mundo que seria atropelado por uma bicicleta parada!
Foi nesse momento que algo dentro de sua mãe pareceu quebrar. Ela olhou para o filho, tal qual se finalmente compreendesse a magnitude do desafio que tinha pela frente, e sua expressão passou por um espectro completo de emoções: frustração, desespero, resignação e, finalmente, uma determinação feroz.
— Você sabe qual é o problema? — disse ela, com uma calma que era mais assustadora que qualquer grito — Suas respostas antes pareciam engraçadas. Agora soam como desculpas de alguém que não quer ver a realidade. Você precisa começar a investir no seu futuro!
— Mas eu já comecei! — protestou Quintus, desesperado para provar que tinha algum senso de responsabilidade — Comprei quatro caixas de figurinha da Copa passada. Vai valorizar igual obra de arte!
— A única coisa que valoriza na sua vida… — disse Glorizelda com uma frieza cirúrgica — é a conta de luz do seu quarto.
— Pelo menos está fazendo algum curso? — perguntou Paulo Costa inesperadamente, numa última tentativa de encontrar algo positivo na situação.
— Óbvio! — disse Quintus, com a naturalidade de quem acha a pergunta absurdamente óbvia — Comecei o ‘Rico não toma café fraco: acordando como um bilionário de Alphaville’. Agora tô só decidindo se viro um gênio dos negócios com ‘Empreender sem ter produto, cliente ou noção’ ou se já publico meu legado com ‘Rico que é rico não lê livro, escreve o próprio’.
— Ele foi pego por um anúncio do YouTube do Papo Marçal, pai. — explicou Septimus com a paciência de quem explica algo óbvio para uma criança.
— Próximo curso… — disse Glorizelda, com um sorriso que não chegava nem perto dos olhos — Vai ser ‘Como sair da minha casa usando apenas uma mala e vergonha na cara’.
— Posso vender ele? — sugeriu Decimus, aparentemente falando sério — Achei um site de adoção reversa para irmãos problemáticos.
— Pode. — concordou Paulo Costa, entrando na brincadeira — Mas avisa que ele vem com dívida emocional e cheiro permanente de miojo vencido.
— E os relacionamentos? — perguntou Paulo Costa, mudando de assunto com a segurança de quem joga a cartada final — Como está a situação amorosa?
Glorizelda endireitou a postura com o entusiasmo de quem enxerga uma última chance de vitória num jogo perdido. Ela não tinha problema com homem, mulher ou qualquer coisa no meio. Só queria alguma pista.
Porque com a indecisão de Quintus, já havia parado de seguir páginas de enxoval e começado a seguir perfis de adoção de gato. Às vezes se pegava quase tricoteando fraldas por instinto, com a leveza de quem já sente um neto no colo.
— Ah, sim! — Disse ela, com a cautela de quem reúne vestígios de um crime sem resposta — Ele parece que tem uma namorada. Ou tinha. Talvez duas. O problema é que em nenhuma das ocasiões ele estava presente. Então ou ele enganou as garotas, ou contratou atrizes. E como é que eu vou planejar um neto se nem sei se o casal existe de verdade?
Quintus sentiu que o chão havia sumido debaixo de seus pés. A informação sobre namoradas inexistentes e pedidos de namoro que ele não lembrava de fazer estava começando a formar um padrão perturbador.
— Mãe! — disse ele, tentando manter a voz firme — Eu juro que não sei do que você está falando. Eu não tenho namorada, não pedi ninguém em namoro, e definitivamente não paguei ninguém para fingir gostar de mim.
— É claro que não sabe! — respondeu Sextus — Porque foi o Quintiliano que fez tudo isso! Sua personalidade alternativa que aparece quando você perde a consciência!
Antes que alguém pudesse rir ou protestar, Glorizelda se levantou com um estrondo de cadeira arrastada e um olhar capaz de fazer até planta murchar.
— Eu já falei que esse assunto está encerrado! — gritou, apontando para Sextus, à maneira de quem expulsa um demônio doméstico — Ninguém mais vai mencionar Quintiliano, dupla personalidade, possessão demoníaca ou qualquer outra desculpa para desmaio criativo com nome próprio!
O silêncio que se seguiu foi imediato e absoluto. Até Paulo Costa, que já se preparava para pigarrear, pensou melhor e disfarçou com um ataque de tosse improvisado.
Glorizelda, ainda de pé como uma imperatriz prestes a decretar uma nova ordem, deixou sua voz ganhar um tom de finalidade que não admitia contestação.
— Presta atenção, porque vou falar uma vez só. Você vai estudar na Illusia, sim, mas antes vai ter que provar que merece essa vaga especial. Vai fazer o ENEM e tirar no mínimo 51%. A Illusia não aceita inútil nem com dinheiro. Em dois dias, quero a escolha do curso. E trate de conseguir um emprego. Alguma responsabilidade tem que aparecer na sua ficha.
Quintus não sabia o que o assustava mais: a menção ao ENEM, o prazo de dois dias ou a ideia de que ‘emprego’ não era uma palavra figurativa.
— E tem mais. — continuou Glorizelda — Você tem exatamente um mês para trazer uma namorada para apresentar para esta família. Uma namorada real, de verdade, que respire e tudo.
— Um mês? — repetiu, sentindo o pânico subir pela garganta com a acidez de uma bile azeda.
— Um mês. — confirmou ela — E não é qualquer uma. Tem que ser alguém decente, que preste, que não seja dessas meninas de hoje em dia que só pensam em selfie e dancinha do TikTok.
— Mãe, isso é impossível! — protestou — Eu mal consigo conversar com garotas sem suar frio e gaguejar!
— Então vai aprender. — disse ela, implacável — Porque é tudo ou nada, Quintus. Universidade, trabalho e namorada. Três coisas simples que qualquer pessoa normal da sua idade consegue fazer sem drama.
— Entendeu? — continuou Glorizelda, cruzando os braços.
— Entendi. — murmurou o jovem Maximus, tomado pela sensação de ter assinado sua própria sentença de morte social.
— Ótimo! — disse ela, batendo palmas com o entusiasmo de quem acredita ter resolvido todos os problemas do mundo — Agora você tem trabalho pela frente. Dois dias para escolher um curso, um mês para arrumar uma namorada, três meses para passar no ENEM e o resto da vida para agradecer por ter uma família que se importa o suficiente para te dar essa chance.
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