Capítulo 58 - Passaram óleo na alma errada
Uma hora depois, Quintus estava parado na frente de uma pastelaria que parecia ter sido decorada por alguém que achava que ‘charme popular’ significava usar todas as cores primárias ao mesmo tempo.
O estabelecimento gritava normalidade de uma forma tão exagerada que chegava a ser suspeita, numa encenação digna de quem se formou com louvor no curso de ‘ser normal’ do Papo Marçal.
“Estou no lugar certo?” — perguntou-se, enquanto relia o endereço. Estava. E isso só deixava tudo ainda mais inexplicável.
— Por que diabos estou de terno numa pastelaria? — resmungou quase sem som, tentando endireitar a gravata que parecia ter feito um pacto com o caos.
A incongruência da situação era tão gritante que ele começou a suspeitar que seus amigos haviam confundido os endereços, ou pior, que estavam testando sua capacidade de constrangimento público.
Leon apareceu na esquina com Gustavo, ambos vestidos com ternos que pareciam ter sido emprestados de seus pais.
Os dois jovens se aproximaram com sorrisos que misturavam satisfação e algo que Quintus não conseguia identificar, mas que disparava seu alarme interno, não o de incêndio, e sim aquele específico para más decisões vestidas de boas intenções.
— Chegou na hora certa! — exclamou Gustavo, ajeitando os óculos com o dedo indicador antes de gesticular teatralmente em direção à pastelaria — O banquete nos espera!
— Banquete? — Quintus franziu a testa, olhando para o estabelecimento — Cara, isso aqui vende caldo de nada, não whisky.
O jovem negro riu com aquela calma zen que sempre usava quando sabia de algo que os outros não sabiam, um sorriso que geralmente antecedia revelações que mudavam completamente o rumo da situação.
— Mano… — disse Leon, consultando o celular com a desenvoltura de quem checava a previsão do tempo — Confia no processo. Nem tudo é o que parece.
— É uma questão de lógica básica! — Gustavo cruzou os braços e inclinou a cabeça no modo sarcástico — O que importa é a localização quando a comida e a bebida são grátis?
Antes que Quintus pudesse processar completamente a filosofia duvidosa do irmão da Mirela sobre prioridades gastronômicas, Leon se aproximou do balcão da pastelaria e sussurrou algo para o atendente, cuja postura sugeria que ele já negara pedidos muito mais perigosos do que um pastel de camarão.
— Viemos buscar o ‘Combo Satanás: pastel, caldo e pecado fiscal’ — disse com naturalidade desconcertante enquanto o jovem Maximus, confuso, se perguntava se tinha entrado num ritual gastronômico secreto que envolvia muito mais do que óleo e açúcar.
O atendente deu um aceno tão solene que parecia estar liberando acesso ao departamento secreto do IBGE onde inventam as estatísticas oficiais do país. Sem dizer uma palavra, deu meia-volta e os conduziu por um corredor tão estreito quanto questionável.
No fim dele, uma cortina vermelha surgiu, abrindo passagem com a imponência de um portal. O tecido oscilava devagar, em um ritmo que lembrava uma respiração, e sons abafados de música e conversas escapavam como dados confidenciais sendo liberados sem autorização.
— Que porra é essa? — Quintus suspirou dramaticamente, passando a mão pelo cabelo bagunçado — Vocês me trouxeram pra uma convenção da maçonaria do salgado?
— Segura aí, cinco minutos. — Leon ergueu a mão, ainda focado no celular — Você vai entender tudo já, já.
— Relaxa, não é seita… ainda. — disse Gustavo, empurrando o jovem Maximus, com a postura de um sacerdote em pleno ritual secreto — Mas se prepara… nem a bola de cristal da Mãe Dináh ia dar conta dessa revelação.
Quando atravessaram a cortina, Quintus sentiu que havia sido tragado por uma dimensão paralela onde as leis da estética tinham sido rasgadas e reescritas num guardanapo engordurado.
O cassino parecia ter sido decorado por uma comissão mista de vendedores de árvores de Natal, fãs de forró eletrônico e um parente distante que jura que cetim é luxo. Claramente alguém cortou o orçamento da decoração pra sobrar mais dinheiro pro bar, ou pros subornos.
Cortinas douradas e vermelhas pendiam do teto tal qual línguas gigantes, luzes de LED piscavam em padrões que mais lembravam uma boate de interior do que um estabelecimento de jogos, e o som de sanfona eletrônica misturava-se com o barulho de fichas, cartas sendo embaralhadas e conversas em diversos tons de desespero e euforia.
“Santo Deus” — foi tudo o que se formou na mente de Quintus, enquanto seus olhos se adaptavam ao ambiente — “Ou eu morri e fui para o purgatório dos viciados em jogo, ou Leon e Gustavo me enfiaram num karaokê temático de delírios psicodélicos.”
Aquilo não era um cassino. Era uma filial disfarçada do INSS em dia de pagamento, só que com mais purpurina: um homem de bigode e blazer fluorescente cochichava para um ás de copas com a formalidade de um advogado instruindo seu cliente, uma senhora que exalava Avon soprava dados com a fé de quem tenta reverter aposentadoria negada, e um magricela encarava o próprio sapato com o mesmo terror de quem descobriu que foi convocado para ‘prova de vida’ e esqueceu como viver.
Quintus não precisou andar: bastou girar os olhos uma vez para entender que estava num lugar onde o exagero era a única regra. O salão era tão grande que ele suspeitou que deviam ter construído tudo sobre as ruínas de alguma obra superfaturada da Copa de futebol.
Havia alas iluminadas iguais a trios elétricos, cartazes com fontes gritantes e uma escada em caracol que levava a um ‘salão de apostas com samba ao vivo’. Em meio ao caos, avistou uma máquina de apostas forrada com adesivos ‘Vai no Tchan’ e concluiu que o conceito de bom gosto havia sido oficialmente deportado.
— Bem-vindos ao paraíso da sorte brasileira! — Leon abriu os braços, com a confiança típica de um anfitrião — Onde o impossível acontece e o dinheiro desaparece com a velocidade da luz!
Antes que Quintus pudesse emitir qualquer opinião, um garçom de colete dourado apareceu, carregando uma bandeja repleta de drinks coloridos que brilhavam sob as luzes néon.
— Drinks da casa, cavalheiros! — anunciou com um sorriso que competia em brilho com as luzes do casino.
Leon pegou três copos e distribuiu com satisfação — Ó, mano! — disse, erguendo o copo, com o orgulho de quem exibe uma vitória — É exatamente disso que eu tava falando! Bebida grátis de qualidade! Isso aqui é que é vida!
— Cara, que diabos tem nessa bebida? — perguntou, sentindo o líquido descer queimando — Parece que misturaram Red Bull com removedor de esmalte!
— É o famoso ‘Quebra-Tudo da Casa’! — riu Gustavo, já no segundo gole — Três partes de álcool, uma parte de cafeína e duas partes de arrependimento matinal!
Ao mover os olhos tentando fugir do gosto de acetona na garganta, Quintus notou uma mesa onde o truco era levado tão a sério que o baralho deveria ter plano de saúde.
E lá estava Nyck, um sujeito magricela com cabelo de quem brigou com o vento, levantou de um salto e subiu na própria cadeira. Estava suando tanto que sua camiseta, decorada com o rosto sorridente de Eloisa, parecia ter entrado em pânico junto.
“Meu Deus…” — gritou sua alma dentro do crânio de Quintus, enquanto seus olhos buscavam uma saída de emergência que não existia — “De todos os lugares, de todas as mesas de truco, eu tinha que trombar justo com esse psicopata ciumento aqui?”
— SEIS! — explodiu Nyck na cara de um, e girou em direção ao outro com a elegância de um jegue possuído pelo espírito da competitividade — E você aí, seu marreco sem vergonha, aceita ou não aceita?! ACHOU QUE IA ME DEIXAR FORA DESSA?!
— Nove, seu filho de uma égua! — rebateu com fúria o adversário.
A mesa explodiu em gritos, fichas voando como se fossem confetes de aniversário e cartas jogadas com a urgência de um ritual tribal. Naquela fração de segundo, Quintus suava frio, revivendo mentalmente todos os traumas causados pelo último encontro com Nyck.
— Sai andando, sai andando, senão ele grita meu nome, com a fé desesperada de quem tenta abrir o portão do paraíso — falou rápido e baixo, puxando os amigos com a urgência de quem viu o demônio do passado materializado em carne, osso e baralho.
Chegaram do outro lado do salão ofegantes, onde uma nova leva de gritos e apostas parecia garantir que o sossego era apenas um conceito teórico naquele lugar.
Diante deles, uma roleta girava freneticamente, mas em vez de números, exibia animais pintados com a mesma intensidade cromática de um carro de escola de samba: galo, burro, cachorro, gato, cobra. Um grupo de apostadores urrava nomes de bichos da mesma forma que se estivessem apostando a própria alma num campeonato de grito rural.
Nesse momento, outro garçom surgiu, desta vez carregando uma bandeja de petiscos que exalavam um aroma que fez o estômago de Quintus roncar tal qual um motor de caminhão velho.
— Salgadinhos da casa! — anunciou, oferecendo bolinhos dourados que pareciam ter sido fritos no óleo dos deuses.
— Cara, olha só! — disse Leon, pegando um punhado, distribuindo e mordendo um bolinho com a expressão de quem tinha acabado de desbloquear um novo sentido da existência — Coxinha de camarão com catupiry!
— Valeu a pena ou não vir aqui? — provocou Gustavo, já com um copo na mão e um sorriso satisfeito.
Quintus estava ocupado demais se apaixonando por uma coxinha de camarão para elaborar qualquer argumento. Só assentiu com a cabeça, já tendo apagado da memória até o nome Nyck, sua existência e qualquer traço de autopreservação.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.