Capítulo 59 - Cocei o galo com ternura
Quintus pegou o quarto salgadinho como quem sabe que está se enfiando numa cilada, mas prefere degustá-la com catupiry. As leis universais não mentem: tudo que é bom demais é golpe. E aquilo ali estava bom pra caralho. Leon e Gustavo, os amigos mais suspeitos desde Judas e Barrabás, trocavam olhares de quem sabia de algo.
O jovem Maximus viu, sentiu, e ignorou solenemente. Aquela era uma armadilha deliciosa e, naquele instante, ele só queria se entupir de salgadinho e bebida. Problemas? Que venham depois, se der tempo.
— Tecnicamente falando — disse Gustavo enquanto também enfiava mais uma coxinha na boca — Essa é a melhor coxinha que já provei! E considerando que não pagamos nada por ela, estamos basicamente vivendo o sonho brasileiro: comida, bebida forte e tudo grátis!
Com um palito de coxinha ainda entre os dedos e o catupiry servindo de anestesia emocional, Quintus balançou a cabeça concordando, e já virando o pescoço em busca de mais quitutes.
Em vez disso, seus olhos encontraram algo que parecia ter sido projetado especificamente para destruir sua autoestima já em frangalhos: uma máquina caça-níquel que mais parecia um espelho da alma. Sem luzes chamativas ou música.
Ela era cinza, amarga, e emitia ruídos que soavam, à maneira de suspiros exaustos de quem não esperava mais nada. Quando os rolos giravam, o som lembrava o gemido melancólico de alguém revisitando todas as decisões ruins da vida.
E quando finalmente pararam, não houve nem derrota divertida: só um silêncio constrangedor e a certeza de que você tinha errado até em tentar.
— Pô, nem precisava me representar com tanta fidelidade! — exclamou Quintus, os olhos já fazendo zig-zag entre a máquina e os copos vazios espalhados por uma mesa alheia — Parece com meus dates: tudo começa com promessas de prazer e termina com bloqueio no WhatsApp e reflexões sobre autoestima.
Leon quase engasgou com o próprio drink diante da tirada profunda de seu amigo.
— Você fala isso agora, mas espera a Mirela aparecer. Vai que ela esqueceu o bloqueio emocional hoje — retribuiu Leon, tentando parecer otimista, mas nem convencendo a ele próprio.
— E a professora Nimsay? — completou Gustavo com um sorriso maroto que não enganava ninguém — Por que não tenta a sorte? Acho que dá match, hein!?
Quintus estava organizando mentalmente uma resposta quando sentiu uma sombra mais rica cobrir a sala. À maneira de uma força cósmica entediada decidindo temperar a noite com caos, um homem surgiu: loiro tingido e dentes de comercial de clareamento.
Era o tipo de cara que fazia o jovem Maximus se sentir mal vestido mesmo quando estava usando sua melhor camisa.
— Bem-vindos ao meu humilde refúgio de prazeres civilizados — disse Crimson, piscando um olho na direção de seus dois amigos num gesto típico de quem compartilha um segredo que só eles entendiam — Aproveitem tudo… Porque noites assim não se repetem, e quase sempre cobram mais do que valem.
O estômago de Quintus se contraiu levemente. franziu a testa.
“Será que isso foi uma indireta?” — pensou, enquanto limpava os dedos ainda engordurados de catupiry na calça sem a menor cerimônia.
Sua mente fez um replay instantâneo da noite: Lembrou que já tinha feito a ronda completa nos garçons incontáveis vezes, estocado empadinhas até nos bolsos e ignorado completamente as máquinas e qualquer gasto.
“Talvez ele só esteja sorrindo assim porque sabe que, mais cedo ou mais tarde, alguém vai pagar essa conta e todas as outras…” — foi a epifania etílica mais coerente que conseguiu formular naquela altura.
Antes que a paranoia pudesse se instalar completamente ou que Quintus pudesse responder ou sequer processar completamente o possível sentido da mensagem de Crimson, uma comoção do outro lado do salão explodiu, chamando sua atenção.
Na parte do salão onde começava a se formar uma pequena aglomeração, e para onde Dellos já apontava sua câmera com instinto de predador midiático, estava Lxpe, aparentemente em transe. O jovem albino encarava o telão com olhos vidrados, feito alguém que acaba de encontrar sentido na vida.
Lá, cabras marchavam por uma trilha de terra batida com passos decididos, chifres reluzentes e pelos de catálogo. Tinham o porte de quem sabia o próprio valor. O narrador da transmissão falava em ‘leilão de porteira fechada’, ‘linhagem premium’ e ‘exclusividade Crimson’ com a entonação de quem anunciava peças raras em um leilão de arte sagrada.
Mas para Lxpe, cuja relação com a realidade já oscilava em dias normais, aquilo não era uma fazenda. Era o Olimpo dos ruminantes.
E então, tomado por um chamado ancestral inexplicável, ele saltou para trás, empinou-se tal qual um cavalo em êxtase mitológico, e relinchou como quem acabara de ver deusas… em forma de cabra.
— IIIIIHHHHRRRRR! — o som saiu com tanta força que até as cabras na tela pareceram se assustar — HIIIIIRRRRR!
“Ok!” — pensou Quintus pausando com uma coxinha no meio do caminho para a boca — “Definitivamente não estou bêbado o suficiente para isso.”
Em seguida, Lxpe virou-se e deu dois coices no ar com a precisão de um Mustang selvagem, quase acertando um garçom que passava com uma bandeja de drinks. O pobre homem se esquivou por pouco, fazendo os copos tilintarem perigosamente.
— Senhor! — alertou o garçom profissionalmente — Esta é uma área de alimentação!
Mas sem prestar atenção no garçom ou em na realidade a sua volta, o jovem fanático por bicho continuava cavalgando rumo ao delírio com a convicção de um centauro endemoniado. Coices, relinchos, olhos marejados: o pacote completo.
Dellos, que tinha montado o tripé com precisão cirúrgica e pontualidade de vidente, captou o exato momento em que o telão deu um estalo. As cabras sumiram. E ali, em 4K glorioso, surgiu a figura de Lxpe, com cara de quem acabara de ser possuído por um puro-sangue celestial em rede nacional.
O jovem sedutor de cabras respirou fundo ao se ver exposto em alta definição, com a mesma serenidade de alguém que descobre uma câmera escondida no banheiro. Xingou Dellos com os olhos, espumando por dentro:
“Dellos, seu desgraçado invejoso… Tá querendo minha fama, né? Vai se foder, traidor da espécie!”
Mas era tarde demais. A plateia estava olhando. O telão ainda o mostrava relinchando com uma paixão indecorosa. Sem escapatória, Lxpe ativou o modo sobrevivência social: limpou a garganta, passou a mão no cabelo, num gesto inútil de tentar apagar o passado recente com gel imaginário, e abriu os braços, à maneira de quem tinha armado cada detalhe.
— Como vocês podem ver… — disse, adotando um tom professoral com o fôlego trêmulo de quem ainda ouvia o próprio relincho ecoando na cabeça — Minha reação é uma demonstração visceral do impacto que a superioridade genética causa em um verdadeiro entusiasta caprino! Isso foi… isso foi uma resposta corporal espontânea… de especialista!
“Especialista!?” — refletiu Quintus engasgando com a própria saliva — “É uma palavra interessante para descrever… isso.”
— Vamos começar com o quadro ‘Vlogs sensuais em estábulos abandonados!’ — seguiu falando feito um gênio incompreendido, mas bastou seu cérebro entender o que tinha saído da boca para os olhos de Lxpe se arregalaram — Opa! Desculpem! Me empolguei e citei meu quadro mais… famoso. Mas hoje é o quadro ‘React ao Leilão do Crimson!’
“Vlogs sensuais em estábulos abandonados…” — repetiu mentalmente Quintus quase derrubando o copo — “Ok, agora oficialmente sei mais sobre o Lxpe do que jamais quis saber.”
— Onde vocês vão descobrir… — continuou o ruivo albino, recuperando a compostura com uma paixão suspeita — Que as cabras são os únicos animais que compreenderam a verdadeira arte da sedução! Observem esse caminhar: quatro patas no chão, postura arqueada, ancas em movimento rítmico… Elas descobriram que a evolução final da locomoção não é andar ereto como nós, pobres mortais, mas sim manter essa curvatura perfeita, com a região posterior elevada e os tornozelos firmes como pilares de mármore!
— E vejam esse gesto! — apontou Lxpe também inclinando a própria cabeça, imitando o movimento dos animais na tela — Uma pequena inclinação da cabeça para baixo… É poesia em movimento! É sensualidade ancestral! Essas criaturas dominaram a arte de ser desejáveis sem sequer tentar!
— Meu Deus! — murmurou Gustavo para Leon — ele está… analisando o ‘SEX APPEAL’ de cabras ao vivo.
— E este é apenas o primeiro lote! — Lxpe continuou, os olhos brilhando — Agora vou deixar que essas imagens falem por si mesmas e revelem o verdadeiro valor dessas… deusas de quatro patas. Se eu tivesse dinheiro, arremataria todas elas. Uma diferente para cada dia do ano!
— Para quê, cara? — gritou uma voz confusa do público.
— Para admirar, é claro! — respondeu com a naturalidade de quem explica o óbvio — Estes animais valem muito mais que qualquer lote inicial sugere! Agora vou deixar vocês com a condutora dos lanches do leilão e volto para apresentar as próximas… meninas.
Foi então que Quintus avistou o jovem dos relinchos se afastando das câmeras, caminhando com passos cansados em direção a uma porta lateral do cassino.
O youtuber parecia ter momentaneamente abandonado sua persona hiperativa, arrastando os pés feito alguém que finalmente sentiu o preço da performance teatral. O jovem Maximus seguiu-o com o olhar, curioso para ver onde o ‘rei dos relinchos’ ia quando ninguém estava filmando.
Lxpe empurrou uma porta de vidro fosco com uma placa que dizia ‘ÁREA RESTRITA – FUNCIONÁRIOS’, mas que estava entreaberta. Por alguns segundos, antes da porta se fechar completamente, Quintus conseguiu vislumbrar o interior e quase engasgou com o próprio drink.
Lá dentro, em gaiolas luxuosas dispostas tal qual um catálogo vivo, estavam os galos campeões da semana passada, os mesmos que haviam leiloado durante sua transmissão clandestina de rinhas.
Lxpe se ajoelhou diante de uma das gaiolas, estendeu a mão por entre as grades e começou a acariciar delicadamente as penas de um galo dourado. A mão, guiada por um misto de ternura e loucura, foi subindo devagar enquanto ele sussurrava algo que soava perigosamente como… declarações de amor.
“Meu Deus” — pensou Quintus, o drink parado no meio do caminho para a boca — “Ele não está só fazendo conteúdo. Ele realmente… tem uma relação afetiva com esses bichos.”
Finalmente, a porta se fechou com um clique suave, mas a imagem ficou gravada na sua retina feito um acidente de trânsito: impossível de ignorar, impossível de esquecer. Lxpe, o showman dos relinchos, em seu momento mais íntimo e perturbador, tratando galos de rinha como se fossem… bem, como se fossem muito mais que simples animais.
Foi só quando o silêncio momentâneo substituiu os ecos mentais dos relinchos que Quintus percebeu outra figura familiar. Num canto discreto, afastada do burburinho do salão, a professora Nimsay estava sentada diante de uma mesa de cartas. Seu olhar era de concentração absoluta, mas havia algo mais ali, uma faísca enigmática, impossível de decifrar.
Usava um vestido elegante demais para aquele ambiente, destoando com a graça silenciosa de uma orquídea em meio a girassóis tagarelas. E mesmo dali, a metros de distância, sentiu que aquilo, fosse lá o que fosse, definitivamente não estava no script da noite.
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