Capítulo 6 – Amigos riem, mas nunca salvam
Quintus piscou algumas vezes, tentando focar sua visão no copo de cerveja à sua frente. A sensação de leveza na cabeça e o calor no peito não deixavam dúvidas: ele já estava bêbado. Não o suficiente para esquecer seu próprio nome, mas o bastante para ter certeza absoluta de que a aproximação do gerente e da garçonete não significava coisa boa.
O gerente vinha marchando em direção à mesa deles, com expressão azeda. Era um sujeito baixo e rechonchudo, com um bigode que parecia colado no rosto com fita dupla face. Usava um colete apertado que deixava evidente sua barriga saltando sobre o cinto, e os olhos semicerrados sugeriam que ele já estava de saco cheio da vida em geral.
Ao lado dele, caminhava a garçonete que derrubara os pratos. Vestida com uma fantasia de elfa, ela parecia… grande. Muito grande. Na percepção afetada de Quintus, tudo nela se destacava por linhas retas e ângulos duros, como se fosse um móvel. Uma geladeira. Sim, uma ‘elfa-geladeira’. Definitivamente, ela era uma das elfas mais fortes que ele já vira.
Mas algo mais lhe chamou a atenção: havia uma grande mancha preta ao redor da boca da elfa. Ele piscou, confuso cogitando:
“Seria maquiagem borrada? A iluminação do restaurante enganando sua visão? Ou pior… ela tinha esquecido de limpar em volta de sua boca?”
Enquanto sua mente vagava nessas questões filosóficas, o gerente que se aproximava da mesa, resmungou alto olhando para a elfa:
— Pelo amor de Deus, Magda! Mais cuidado, viu? Você já quebrou mais pratos esse mês do que um terremoto num restaurante chinês!
A garçonete, ou melhor, Magda, abaixou a cabeça, cruzando os braços enormes. Braços que pareciam capazes de erguer um cavalo sem muito esforço.
— Desculpa, chefe… foi sem querer.
— Sem querer? — o gerente bufou — ‘Sem querer’ é uma coisa! Você joga as bandejas no chão como se estivesse treinando levantamento de peso! Vou descontar o prejuízo do seu salário!
Quintus Maximus sentiu pena da elfa musculosa. Afinal, acidentes acontecem. Ele olhou para os amigos, esperando que compartilhassem de sua compaixão, mas ambos estavam imóveis, os olhos arregalados. Não piscavam. Pareciam dois pescadores vendo um peixe prestes a ser fisgado.
Só então o jovem que achava que tinha reencarnado percebeu que o gerente e a garçonete não estavam indo em direção à sua mesa, e um alívio genuíno percorreu seu corpo, dissipando, por um breve momento, a tensão acumulada.
Ele quase riu, sentindo que, pela primeira vez naquela noite, a sorte parecia estar ao seu lado. Melhor assim. Já bastava o histórico de desastres daquele dia, não precisava adicionar mais um à coleção.
No entanto, sua sensação de paz foi tão passageira quanto uma promoção imperdível que nunca dura o suficiente. O gerente continuou seu caminho, indiferente, mas Magda… Magda parou.
Enquanto ele tentava ignorar a súbita inquietação, ela permaneceu exatamente onde estava, como se tivesse acabado de lembrar de algo importante. O problema? O ‘algo importante’ claramente envolvia Quintus.
O olhar dela se fixou nele de um jeito que fez uma grande parte do teor alcoólico em seu corpo evaporar. Com sua visão ainda embargada pela quantidade de bebida, ele não conseguia precisar a cor da íris, mas ainda conseguia prever algo em seu olhar que Não era raiva, nem impaciência. Era pior. Era aquele tipo de olhar que precede revelações que ninguém quer ouvir.
E, naquele momento, Quintus soube que sua paz havia oficialmente acabado.
— Fazia tempo que você não aparecia por aqui — disse ela, com um sorriso largo.
A voz era… grossa. Muito grossa. Provavelmente resfriada, coitada, o que fez ele inclinar a cabeça, piscando devagar.
— Ah… é… eu andei trabalhando muito — respondeu, com um meio sorriso.
Os amigos ao seu lado trocaram olhares desesperados. Gustavo se moveu como quem ia puxar Quintus pelo braço e tirá-lo dali, mas Leon o segurou pelo ombro, murmurando em seu ouvido:
— Não. — ele sorriu de lado — Vamos nos divertir vendo isso acontecer.
Indiferente a tudo e principalmente ao complô de seus amigos, Quintus continuou encarando a elfa musculosa. Por mais que tentasse, ele não se lembrava dela. Mas era claro que ela o conhecia. E seus dois companheiros em sincronia combinada se levantaram repentinamente.
— Vamos buscar uma cerveja no bar — anunciou um deles
— É, direto do barril — reforçou o outro amigo.
Os dois afastaram-se lentamente, deixando Quintus e Magda praticamente a sós. O que o jovem já com a consciência influenciada pelo álcool não sabia era que eles tinham parado a certa distância e que Leon agora estava filmando tudo para posteridade.
E assim, antes que pudesse processar a situação, Magda puxou uma cadeira e sentou-se com um estrondo ao seu lado.
— Cara, que saudade de ver você aqui! — disse ela, dando um tapa amigável na mesa que fez os copos tremerem.
Quintus segurou a cerveja rapidamente, enquanto os dois traidores que não tinham se afastado muito, prendiam o riso.
— Então, como você está? — perguntou, pegando o copo de cerveja dele e bebendo um gole como se fosse dona da mesa.
Estranhamente, a cadeira começou a gemer sob o peso da elfa, ameaçando um colapso épico a qualquer momento. Os amigos de Quintus, que ainda estavam próximos, pararam de beber e se entreolharam. A única coisa mais tensa que a situação era o estado estrutural daquela cadeira.
— E… eu tô bem — respondeu finalmente o jovem que acreditava ter reencarnado, forçando um sorriso e ainda tentando entender o que estava acontecendo.
Por mais que forçasse sua mente já dominada pelos efeitos alcoólicos, o jovem Maximus, por alguma razão desconhecida, sentia que deveria saber quem era essa elfa musculosa ao seu lado.
— Mano? — disse Gustavo cutucando seu comparsa — Essa cadeira não vai aguentar.
— Relaxa — respondeu Leon— Isso só melhora o show.
E, como se obedecendo a uma profecia, um som sinistro de madeira rangendo encheu o restaurante. Magda continuou sorrindo como se nada estivesse acontecendo, mas Quintus já estava preparado para pular para o lado e evitar uma possível explosão de farpas e tecido.
— Tá quente aqui, né? — comentou Magda, se espreguiçando e inclinando ainda mais o peso sobre a cadeira.
O estalo seguinte foi definitivo.
— CRAC!
A cadeira finalmente não suportou. Com um som semelhante ao de um tronco sendo partido por um lenhador furioso, Magda afundou no chão com um estrondo. Silêncio. O restaurante inteiro parou, as atendentes vestidas de elfas congelaram no meio do movimento, um cliente na mesa ao lado derrubou a colher dentro da sopa.
Gustavo soltou um grito abafado de riso, enquanto Leon continuava filmando cada detalhe e acompanhando a atriz principal do drama, levantar-se, nem um pouco abalada, coçando a nuca e rindo.
— Essas cadeiras aqui não são muito resistentes, né?
— É-é… — respondeu o jovem, concordando nervosamente — Acontece…
Mas seu cérebro ainda continuava gritando a todo momento: “QUEM É ESSA MULHER?”
Enquanto Magda pegava uma nova cadeira que era muito mais robusta desta vez, Quintus tentava desesperadamente ligar os pontos. E então, um flash de lembrança veio: um homem forte… alguém que morava perto de sua casa… sempre tentava puxar assunto…
“Por que estou lembrando de um carregador de caixas?” — franziu a testa se questionando — “Não pode ser isso…Só coincidência!”
Gustavo, vendo a expressão de seu quase cunhado, cutucou Leon e disse:
— Ele tá lembrando de algo.
— E não vai gostar do que vai lembrar — respondeu Leon sorrindo e ainda gravando tudo.
Dessa vez, antes desse evento, eles tinham passado mais de um dia inteiro sem receber notícias de mais um evento vergonhoso protagonizado pelo amigo com menos parafusos que juízo, aquele que tinha plena convicção de que havia reencarnado.
Era um feito raro, quase um milagre, e, por um breve momento, chegaram a acreditar que talvez, só talvez, Quintus estivesse aprendendo a se comportar.
Mas agora, com a normalidade restaurada e o caos reinstalado, os dois estavam imóveis, piscando pouco e respirando menos, com a expressão de documentaristas aguardando pacientemente o momento exato em que um predador selvagem daria o bote.
Magda, no entanto, ignorava completamente a tensão ao seu redor. Com a tranquilidade de quem já tinha visto de tudo e não se abalava com mais nada, ergueu o copo com a tranquilidade de um gato derrubando um objeto da mesa, sabendo que ninguém poderá detê-lo.
— Um brinde! — exclamou.
Antes que Quintus pudesse reagir, ela bateu a caneca na dele com tanta força que metade da cerveja transbordou na mesa fazendo os dois ‘documentaristas’ se engasgar de tanto rir.
— Meu Deus, é um titã. — murmurou Leon.
— Então, me conta… — começou Magda depois de tomar um gole enorme e limpar a boca com as costas da mão — tá namorando?
O jovem quase engasgou na própria cerveja e os seus amigos apertaram os olhos, sorrindo maliciosos.
— Vai lá, Quintus! — incentivou Leon ainda de longe — Não vai deixar a moça sem resposta, né?
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