Capítulo 62 - Tráfico humano com nota fiscal
Quintus fitava Crimson com o mesmo entusiasmo de quem acessa o caixa eletrônico e lê ‘saldo insuficiente’, enquanto Leon e Gustavo, que segundos antes gargalhavam, agora estavam sérios feito porteiros de banco em dia de assalto.
“Isso não pode ser bom” — pensou Quintus, enquanto Nyck continuava o abraçando com força suficiente para extrair confissões de qualquer criminoso.
— Meus queridos convidados especiais! — anunciou Crimson, abrindo os braços — Obrigado, Leon e Gustavo, por trazerem nossos… participantes tão… interessantes. Espero que todos aqui aproveitem nossa hospitalidade premium!
Os dois melhores amigos do jovem Maximus trocaram olhares cúmplices, iguais aos de camelô vendendo pendrive de 1 terabyte que, na verdade, só toca três músicas e um vírus.
Enquanto os dois celebravam mentalmente o golpe mais elegante desde o Plano Collor, bem próximo deles, Vento Leste, ainda prensado contra a parede por Lxpe, que continuava sussurrando coisas sobre conexões cósmicas equino-felinas, conseguiu articular um ‘PIKA’ abafado, mais próximo de um pedido de socorro do que de filosofia existencial.
— Hospitalidade? — repetiu Quintus, tentando se desvencilhar do abraço mortífero de Nyck — Eu estou restrito, o cara ali tá sendo assediado por um influencer com fetiche em animais, minha professora tá me olhando como se eu devesse pensão alimentícia, e vocês dois! — apontou para seus dois melhores amigos — Vocês me venderam. Nem disfarçaram.
Leon ajustou o terno com a elegância de quem acabara de fechar um negócio milionário e sussurrou algo no ouvido de Gustavo, que sorriu com malícia suficiente para preocupar até mesmo diabos experientes.
— Na verdade, Quintus… — começou Gustavo, ajustando os óculos com aquele gesto teatral que sempre antecedia suas piores revelações — Nós não vendemos sua alma. Nós a alugamos por temporada, com opção de renovação automática.
Aquilo que o jovem Maximus sempre temeu se tornava real diante de seus olhos: ser rifado igual a um brinde em bingo beneficente pelos próprios melhores amigos, sem culpa nem piedade. Seu coração despencou até o porão do desespero e resolveu morar lá de vez soltando um tão agudo quanto inconformado:
— HUUUUMMM-MEEERRDAAAAA!
— Com esse balançar de cabeça, pareceu um galo dramático!
Não parece um galo dramático de quintal, fazendo pose pra ninguém? — cochichou Leon para Gustavo, rindo tanto que o ‘sussurro’ virou anúncio público.
— Galo Dramático! Nome artístico forte. — completou Gustavo, já enxergando mentalmente o pôster.
Antes que o riso se dissolvesse completamente, Crimson, num entusiasmo quase infantil, bateu palmas duas vezes, e garçons surgiram, carregando tablets reluzentes e sorrisos dignos do atacado da falsidade.
— Senhores e senhoras! — declarou o dono do cassino, radiante tal qual todo bilionário entediado inventando brincadeiras com gente viva — Vocês foram cuidadosamente selecionados para participar do mais inovador experimento de entretenimento já concebido pela mente humana!
— Experimento!? — questionou sonoramente a professora Nimsay que acompanhava tudo de perto.
— Selecionados? — indagou Quintus também, cada vez mais perdido, até que a ficha caiu com a sutileza de uma marreta — EU NÃO ME INSCREVI EM NADA! EU SÓ QUERIA COMER SALGADINHO GRÁTIS encontrar um pessoa aqui que não vem ao caso agora.
— Ah, sobre isso… — Leon tossiu com constrangimento artístico — A questão do ‘grátis’ pode ter sido ligeiramente… interpretada de forma criativa.
Indiferente à reação, um dos garçons se aproximou segurando um tablet, com a solenidade de uma ordem de Xadão recém-publicada no Diário Oficial. Nele, uma lista gritava ‘fuja enquanto é tempo’ em letras silenciosamente ameaçadoras.
— Senhor Quintus Maximus! — anunciou o garçom com a solenidade de quem lê uma sentença de morte — Seu consumo desta noite totaliza R$ 2.125 em petiscos gourmet.
O mundo parou. O ar, solidário, se negou a entrar nos pulmões. A música ambiente silenciou, num reconhecimento tácito de que o trauma financeiro e as dívidas acumuladas já haviam deixado seu cérebro em modo de emergência.
— COMO ASSIM DOIS MIL REAIS?! — berrou Quintus com indignação suficiente para mover montanhas ou pelo menos algumas colinas de tamanho médio — EU COMI UMAS SEIS COXINHAS!
— Vinte coxinhas de camarão com catupiry trufado e caviar beluga — corrigiu o garçom — Oitenta e cinco reais cada unidade, mais taxa de serviço, mais ambiente premium, mais respiração do ar climatizado com essência de eucalipto australiano.
Quintus olhou para Leon e Gustavo com a mesma expressão de quem descobre que os melhores amigos são na verdade aliens coletores de impostos. Os dois evitavam contato visual com a habilidade de políticos em época de eleição.
— Vocês sabiam, não é? Existem limites para tudo, mas pisar em um amigo quebrado é como brigar com a mãe por mistura! — vociferou, sentindo a traição descer pela garganta feito remédio amargo.
— Tecnicamente. — disse Gustavo, fazendo gestos teatrais de defesa — Nós nunca dissemos que a comida era grátis. Apenas mencionamos bebida e petisco. A bebida foi grátis, o petisco foi… uma oportunidade de investimento gastronômico.
Vento Leste, que tinha conseguido se desvencilhar momentaneamente de Lxpe, acenou com a garrafinha e gritou:
— PIKA! Eu bebi sete mil e duzentos reais em drinks! — riu, com a empolgação de quem acabara de descobrir que tinha superpoderes — Mas não tenho dívida porque não tenho dinheiro! É impossível dever o que não existe! PIKA FILOSÓFICA!
A lógica invertida de Vento Leste fez tanto sentido que até os garçons pararam para refletir sobre os mistérios da existência econômica. Quintus, por outro lado, estava à beira de um colapso, daqueles surtos em que a alma tenta renegociar com o destino e só recebe cobrança
— Quintus! — disse ela, despertando ao sentir um sino imaginário ressoar dentro de si ao ver o desespero estampado no rosto do aluno, a voz firme, carregada da nobreza pedagógica que ela só usava em momentos históricos — Não se preocupe. Eu vou quitar sua dívida.
O tempo congelou. O jovem Maximus a encarou, com os olhos de quem vê alguém oferecer o próprio coração ainda batendo em troca de suas dívidas.
A professora retirou da bolsa um envelope amarelado pelo tempo, cujas dobras sugeriam mais décadas de renúncia do que salários, e o estendeu com mãos que sabiam exatamente o peso de cada centavo ali dentro.
— Professora, a senhora não pode! — protestou, genuinamente tocado — Isso deve ser o dinheiro para a sua aposentadoria!
— Vale cada centavo! — murmurou ela, com um sorriso que misturava maternidade com algo ligeiramente mais complicado de explicar para as autoridades educacionais.
Nimsay entregou o envelope para Crimson, que foi contando as notas com a confiança de quem já sabia o valor. Seu rosto, no entanto, começou a murchar lentamente, passando de satisfação empresarial para constrangimento matemático.
— Hum… faltam cinquenta reais.
— CINQUENTA REAIS?! — explodiu a professora, perdendo completamente a compostura professoral — Gastei minhas economias de vinte anos e faltam CINQUENTA REAIS?!
Gustavo se aproximou e deu tapinhas no ombro da professora com o mesmo jeito de quem consola um adulto ao explicar que ‘prometo te ligar’ é só uma figura de linguagem.
— Professora, isso é facilmente resolvível! — declarou com otimismo suspeito — A senhora é inteligente, tem doutorado, conhece probabilidade e estatística, certo?
Nimsay assentiu, ainda processando o absurdo da situação.
— Perfeito! — continuou Gustavo — Ali na mesa de truco, com sua capacidade de cálculo de probabilidades, é impossível perder! São cinquenta tentativas, a senhora só precisa ganhar uma para quitar tudo e sair daqui com o Quintus!
Enquanto esperava por seu querido aluno, a professora havia se arriscado em algumas partidas de brincadeira e vencido todas, o que a fez acreditar que tinha um dom natural para o jogo. Mal sabia ela que aquelas mesas de espera existiam justamente para inflar o ego dos indecisos.
Mas foi quando a palavra ‘Quintus’ foi pronunciada com ênfase suficiente para fazê-la corar tal qual uma adolescente recebendo sua primeira carta de amor que Leon completou o golpe psicológico:
— Além do mais, a bebida continua grátis! Que tal uns sucos de frutas exóticas para relaxar enquanto joga?
Ela nem sabia dizer se foi a palavra “Quintus”, o tom de Leon, ou a mistura de saudade e frustração que veio à tona de uma vida inteira de sonhos não agarrados.
O que sabia é que naquele momento tomou uma decisão: se continuasse sendo a mesma Nimsay de sempre, só colecionaria suspiros e oportunidades perdidas. Era hora de virar alguém diferente, alguém que por um aluno era capaz de jogar truco, beber sucos suspeitos e apostar a própria dignidade numa mesa cercada de homens com bigodes falsos.
Vinte minutos depois, a professora estava na mesa de truco segurando cartas com força demais, completamente embriagada por drinks que ela jurava serem ‘sucos saborosos de frutas estrangeiras’, tendo perdido não apenas os cinquenta reais que faltavam, mas também os mil e oitocentos reais extras que decidiu apostar ‘porque a matemática não mente’.
— Eu só queria um suco… — gemia ela, agarrada a uma carta da mesma forma que se agarra um boletim de ocorrência — Agora tô devendo e emocionalmente comprometida com um valete de espadas.
Crimson passou a mão no queixo, com a elegância de quem já seduziu piores em situações melhores, e suspirou para o teto igual a se fosse um amante decepcionado pela humanidade:
— Ah, os bons tempos quando jovens de 18 anos se endividavam por amor… Agora só consigo atrair veteranas de 25 anos ou mais e que ainda moram com os pais. O negócio está envelhecendo junto comigo.
Palmas soaram novamente, desta vez não na condição de pedido de atenção, mas feito o selo final de um ciclo. Era hora de enterrar o drama e encenar o novo ato.
As luzes tingiram o cassino de vermelho e dourado, e telões despencaram do teto com a sutileza de um palco sendo virado, porque era mesmo isso: a vida, para Crimson, era um eterno palco de estreias com tudo que o dinheiro poderia comprar.
Instantaneamente, um telão gigante se iluminou com um clipe publicitário profissional: imagens dramáticas de ex-milionários catando latinhas, aposentados vendendo joias da família, e jovens descobrindo que a mesada dos pais tinha acabado.
— Em tempos de crise econômica. — narrava o vídeo — Quando até os viciados em jogos estão falidos, quando ex-ricos agora fraudam o Bolsa Família para apostar, surge uma nova modalidade de entretenimento…
O clipe terminou com logo dourado: ‘CASSINO CRIMSON – AGORA REALITY SHOW!’
— Meus queridos inadimplentes! — anunciou o dono do cassino — Tenho uma proposta que não poderão recusar!
— Eu posso e vou recusar! — gritou Quintus, ainda preso nos braços de Nyck, que tinha começado a balançar para os lados em movimentos que lembravam uma valsa.
— Considerando que nosso modelo de negócio tradicional tem enfrentado certas… adaptações econômicas. — continuou Crimson, ignorando solenemente os protestos — Decidimos inovar! Bem-vindos ao Big Brother: Vexame Nacional!
Os telões acenderam em um espetáculo tão exagerado que pareciam preparar o palco não para um anúncio, mas para a execução pública do idiota do mês. A trilha sonora misturava suspense de tribunal com promoção de eletrodomésticos. O jovem Maximus só olhou aquilo e pensou:
“Claro, é aqui mesmo que vou ser socialmente degolado ao vivo perdendo a dignidade em tempo real”
— REALITY SHOW?! — berrou Nyck, com desespero — EU NÃO ASSINEI NADA!
Os dois amigos trocaram olhares e, simultaneamente, tiraram contratos do bolso interno dos ternos.
— Na verdade… — disse Leon, desdobrando papéis com pompa jurídica — Vocês assinaram sim. Como seus representantes artísticos oficiais, temos procuração para decisões de carreira.
— QUANDO EU ASSINEI PROCURAÇÃO?! — Quintus estava chegando em níveis de desespero que nem ele sabia que existiam.
— Lembra do formulário para entrar aqui? — sorriu Gustavo — ‘Nome, idade, assinatura’? Era o contrato de representação artística com cláusula de entretenimento compulsório.
O jovem Maximus fechou os olhos e contou até dez, depois até vinte, depois desistiu da matemática e decidiu aceitar que sua vida tinha se tornado uma piada cósmica de proporções épicas.
— E o melhor… — continuou Leon — É que ganhamos quarenta por cento de tudo que vocês faturarem desempenhando o trabalho de animadores forçados! Somos empresários agora!
A realidade desabou sobre Quintus com a brutalidade de um teto mal construído cedendo. Não apenas estava endividado, sequestrado e ainda sendo abraçado por um obsessivo em crise, mas também havia sido vendido para um reality show por seus próprios amigos, que agora eram seus empresários.
— ISSO É TRÁFICO HUMANO COM CERTIFICADO ARTÍSTICO! — gritou.
— É show business, querido. — corrigiu Leon com naturalidade empresarial — Tudo perfeitamente legal e ligeiramente ético.
Foi quando um telão menor desceu, mostrando Dr. Zaratustra em seu escritório improvisado, vestindo jaleco branco.
Seu cabelo estava mais despenteado que o usual, e ele segurava a prancheta com a solenidade de quem carrega os Dez Mandamentos da loucura moderna, prontos para serem entregues aos próximos surtados do Sinai clínico.
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